Hoje no Brasil há somente duas posturas na política; ou se está a favor da vida ou contra os que brincam com ela
Hoje no Brasil há somente duas posturas na política; ou se está a favor da vida ou contra os que brincam com ela. Nada mais deprimente para um político do que se gabar de ser limpo e consequente com suas ideias e depois se degradar por ideologia e covardia.
Eu me refiro à conversão da deputada Janaina Paschoal, que passou de afirmar em 16 de março de 2020 que “as autoridades precisam se unir e pedir a renúncia de Bolsonaro” e acrescentou: “Fomos invadidos por um inimigo invisível. Precisamos de pessoas capazes de conduzir a nação”. A deputada reclamava porque o presidente havia participado, um dia antes, de protestos incentivando que as pessoas saíssem às ruas.
Quem pedia à época a união de todos para tirar Bolsonaro do poder hoje zomba das forças que estão se unido para exigir a saída de Bolsonaro. E mais, chega a ironizar o que ela hoje chama em sua conta do Twitter de “uma tal Frente Ampla entre os que sempre dominaram esse país e ainda continuam dominando-o”.
Para tentar não aparecer como bolsonarista quando já havia pedido a saída do presidente do Governo, acrescentou: “Seguirei crítica a Bolsonaro, pois não sou baba ovo de ninguém”.
Janaina, que foi a maior protagonista do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, hoje escreve no Twitter: “Não vejo elementos para um impeachment de Bolsonaro”, algo que desmente a evidência de um clamor entre juristas e até na opinião popular que exigem a cada dia com mais força a abertura de um processo criminal contra o Presidente. Por genocídio e por seu negacionismo sobre a pandemia e seu sarcasmo em minimizar o perigo do vírus que causou mais de 200.000 mortes como Eliane Brum acaba de demonstrar em seu texto.
Sempre apreciei a militância da deputada Janaina Paschoal, sua linguagem aberta que destoava da velha política. E ainda que não concordasse com suas ideias, sempre apreciei uma das mulheres na política que demonstrava não seguir o rebanho.
Não aceitou ser vice de Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais, algo que poderia prejudicá-la. Como política conhecia bem os antecedentes do Bolsonaro misógino, golpista e amante da tortura. Janaina, bem preparada em Direito e a deputada estadual mais votada do país, teve um papel fundamental no impeachment de Dilma e no mundo da velha política apareceu como uma mulher que não aceitava compromissos.
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Foi uma lutadora aberta contra os Governos do PT, algo que é normal no jogo político.
E, entretanto, hoje parece ter jogado tudo pelos ares opondo-se a um possível impeachment de Bolsonaro, algo mil vezes mais grave do que o de Dilma pelo que tanto lutou. Nesse caso há um clamor popular e um consenso cada vez maior do mundo dos juristas para abrir um processo contra um Presidente tachado de genocida, de insensível aos mais de 200.000 mortos pelo vírus e considerado responsável por tanta dor que este país já tão castigado economicamente poderia ter economizado.
Existem poucos crimes maiores do que o atentado contra a vida de inocentes e por motivos bastardos de baixa política. Por mais que Janaina diga que ela não se vende a ninguém é uma deputada suficientemente inteligente e preparada juridicamente para entender o que não só a maioria dos brasileiros como boa parte do mundo já sabem, que o Presidente despreza a vida e cultua a violência e a morte. Em seu coração não há espaço para a dor alheia.
Janaina, que se opõe ao impeachment de Bolsonaro com a desculpa de que já não há tempo e parece justificá-lo pelo fato de que com isso o PT voltará, joga pelos ares todo o respeito que sua independência e sua luta contra a corrupção infundiam. É de espantar que uma mulher como ela pareça estar negando e traindo suas antigas crenças.
Criticar como está fazendo o que chama depreciativamente de “Uma tal Frente Ampla” para se opor à política de morte de Bolsonaro significa renegar o melhor de sua biografia. E o fato de ser mulher choca ainda mais com sua aparente insensibilidade diante da tragédia vivida pelo Brasil onde já não há lágrimas para chorar tanta morte. E se opor a um impeachment de Bolsonaro que sonha somente em dar o golpe para poder governar como quer revela uma falta de humanidade e insensibilidade que acabam anulando suas posturas de independência.
É patético ficar feliz por ter contribuído para tirar o PT do poder para justificar sua recusa a um impeachment de Bolsonaro. Ela sabe muito bem, como política habilidosa que é, que o PT precisa de uma refundação profunda para tentar voltar a governar. Mas comparar o perigo de um PT desgastado com a política nazista demonstrada por Bolsonaro significa que a deputada perdeu todo o seu capital político.
Hoje, um Governo que brinca e joga com a vida das pessoas é muito mais perigoso até mesmo para a economia de um país que o presidente confessa que está quebrado.
Pior que a degradação de um senador escondendo dinheiro sujo nas partes baixas é a hipocrisia na política e a insensibilidade diante da morte de inocentes. Janaina perderá sua dignidade e sua imagem de política e mulher sem complexos e conivência com a velha política corrupta, se hoje não colocar o mesmo ímpeto e coragem que demonstrou no impeachment de Dilma para derrubar Bolsonaro do poder.
Hoje Janaina joga por terra seu velho capital de credibilidade se negando a ficar do lado dos que acham que Bolsonaro ultrapassou todos os limites da dignidade e revelou, além de ser incapaz de governar um país da envergadura do Brasil, sua espantosa insensibilidade em relação aos frágeis e abandonados pelo poder.
Não vale a pena trair a própria dignidade por um prato de feijões, mesmo que não saibamos ainda que preço esses feijões podem ter para mandar pelos ares o que defendeu com tanta coragem.
A soberba e a traição às próprias ideias são a maior imoralidade na política e na vida.
JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.