Bolsonaro quis ser “gauche” na vida se alinhando pela direita contra a democracia
“O Brasil não é para principiantes”, costumava brincar Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, mais conhecido como maestro Tom Jobim. O fato de sermos o 5º país do mundo em extensão territorial e em população, nos coloca à frente em muitas estatísticas e atitudes. Desde que fomos oficialmente descobertos pelos portugueses, em 21 de abril de 1500, somos das populações mais miscigenadas da Terra, com a mistura do sangue europeu (português) com diversas etnias indígenas, africanas, europeias e asiáticas. Há registros da presença de espanhóis no Nordeste antes de 1500. Entretanto, como o Tratado de Tordesilhas, de 1494 (menos de dois anos após Colombo descobrir as Américas para a coroa espanhola) garantia como terras portuguesas a faixa que ia do Pará/Amapá, até o litoral de Santa Catarina, colocamos hoje legendas em português nas séries espanholas.
Não faltaram expedições de nações europeias para ocupar parte do território brasileiro, tão distante da capacidade de defesa de Portugal. Franceses e holandeses chegaram a ter êxitos fugazes. Expulsos do Rio de Janeiro, os franceses se estabeleceram do Maranhão ao Pará. De olho na riqueza da cana de açúcar, vinda da Índia e que plantada nas terras nordestinas virava açúcar (primeira grande commodity da era das navegações), os holandeses tentaram invadir o Nordeste em 1624 e se assentaram em 1630 em Pernambuco, estendendo os domínios à Bahia e ao Ceará. Foram expulsos definitivamente em 1654. Aliados dos portugueses, os ingleses foram mais hipócritas: contrataram piratas (corsários do Rei ou da Rainha) para pilhar navios espanhóis ou portugueses com ouro ou prata das terras do Novo Mundo desbravadas com a mão de obra escrava vinda da África, face à recusa dos povos locais de se submeter ao domínio dos europeus. Somos altivos e independentes, mas temos muitos erros na história e temos de nos penitenciar.
Boa parte da cobertura vegetal que cobria a chamada Mata Atlântica no território limitado pelo Tratado de Tordesilhas foi devastada pela exploração do Pau Brasil e pela derrubada das florestas e savanas para ocupação dos ciclos da cana-de-açúcar, depois pelo café, do gado, do fumo e do algodão e ainda o cacau (já no século 19). Se a Floresta Amazônica foi preservada, muito se deve à demora de sua ocupação, entre o final do século 19 e o começo do século 20 com o ciclo da borracha. A duração foi curta. A fonte da riqueza murchou quando mudas da Hevea (nativa no Acre) foram contrabandeadas para a Malásia e a Indonésia, no sudeste asiático, onde seu cultivo se deu de modo intensivo.
A ocupação (e devastação) da Amazônia e do Planalto Central se intensificaram após o governo JK, que mudou a capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central e quis interligar, por estradas de rodagem, a capital do país às capitais dos principais estados, tendo a Belém-Brasília como marco. Nos governos militares, para mitigar os efeitos da seca sobre a população do Nordeste, o general Médici quis atrair os nordestinos para ocupar terras às margens da Rodovia Transamazônica (que nunca terminou) e depois a Perimetral Norte (que mal saiu do papel). Mas a semente de cobiça e devastação da Amazônia foi plantada, até com incentivos fiscais para grandes grupos empresariais comprarem terras no Sul do Pará e Mato Grosso (antes da divisão). A Volkswagen foi uma das indústrias multinacionais aquinhoadas. Bancos e seguradoras tiveram sua parte.
Nossa pátria mãe gentil ficou notabilizada no século 19 por ter sido o último país do mundo a abolir a Escravidão, em 13 de maio de 1888. Mas vale lembrar que a pressão exercida pela Inglaterra, desde a vinda da Corte portuguesa para o Brasil Colônia, em janeiro de 1808, o suporte bélico do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, nos transformara em um dos principais parceiros comerciais do país que desenvolvera a Revolução Industrial. Pela lógica das relações diplomáticas e comerciais, a escravidão estava com os dias contados desde a Lei Eusébio de Queiroz (de 4 de setembro de 1850), que, por pressão da Inglaterra, que queria nos vender manufaturas, proibia o tráfico mão de obra escrava da África para as terras brasileiras.
Embora sendo um território importante, o Brasil sempre esteve a reboque das grandes nações europeias nas suas relações diplomáticas. Perseguido por Napoleão Bonaparte, D. João VI arrumou o casamento de seu filho que viria a ser o 1º Imperador do Brasil (a partir de 7 de setembro de 1822) com Maria Leopoldina da Áustria, em 1817. Enlace de conveniência diplomática, pois a Casa de Habsburgo-Lorena, do império Austro-Húngaro, era das poucas que poderiam fazer frente a Bonaparte. Leopoldina incentivou os movimentos de independência do Brasil de Portugal. Vale lembrar que a independência das 13 Colônias inglesas da América do Norte do Reino Unido, em 4 de julho de 1776, veio da revolta contra a cobrança em série de impostos, que – com o do chá – transbordou a paciência dos colonos. E gerou a guerra de Independência. Só reconhecida pela Inglaterra (perdedora) seis anos depois, em 1783.
Dependente da Inglaterra, o Brasil fez o reconhecimento após isso. Mas o movimento de independência americano deixou sementes no Brasil. A reação dos mineiros contra o quinto ou os 20% de impostos de Portugal sobre o ouro, que teve em Tiradentes o grande mártir, se inspirou na independência americana. Quando o Brasil ficou independente de Portugal, em 7 de setembro de 1822, os Estados Unidos da América do Norte foram o primeiro país a reconhecer a nossa atitude. Nasce daí a afinidade entre os dois países. Mas isto não quer dizer alinhamento automático.
Na diplomacia, a arte de evitar (no passado) guerras pela boa convivência entre vizinhos ou nações fronteiriças ou próximas e nos tempos modernos pelos principais parceiros comerciais, exige pragmatismo e independência, com visão estratégica de longo prazo. Historicamente, laços culturais e comerciais nos ligaram mais às nações europeias. Com a hegemonia americana, já em meio à 2ª Guerra Mundial, ficamos mais atrelados aos Estados Unidos. Senhor das organizações multilaterais surgidas paralelamente à Organização das Nações Unidas (24 de outubro de 1945), como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, o Brasil ficou dependente do aval dos EUA e dos banqueiros americanos. O surgimento do mercado paralelo do eurodólar (nos anos 60 e começo dos anos 70) nos liberou um pouco. Mas a crise do petróleo de 1973 mostrou que nossa independência econômica era restrita.
Coube ao governo do general Ernesto Geisel (março de 1974 a março de 1979) gerenciar, com pragmatismo diplomático, o ajuste da balança comercial brasileira à dependência do petróleo importado [desde o começo deste século somos virtualmente autossuficientes em petróleo, mas então, a Petrobrás produzia apenas 15% das nossas necessidades]. Nos aproximamos dos países árabes. O Iraque chegou a superar a Arábia Saudita como maior fornecedor. O Irã, já com os aiatolás, virou o 2º exportador ao Brasil. Mas na guerra Irã-Iraque (em fins de 1979, que provocou novo choque do petróleo) tivemos de escolher um lado. Na diplomacia e no comércio exterior, os interesses falam mais alto que a amizade, e o Brasil ficou com o Iraque de Saddam Hussein.
Hoje, os países árabes pesam mais como compradores de nossos alimentos (carne de frango, açúcar, suco de laranja, soja e milho são os principais produtos) do que como fornecedores de petróleo e derivados. Na lista dos 20 países mais importantes para o comércio exterior brasileiro, a China desbancou os EUA como o principal mercado neste milênio. De janeiro a outubro deste ano o Brasil exportou US$ 174 bilhões, sendo US$ 58,4 bilhões para a China, de longe nosso principal comprador e responsável por saldo comercial de US$ 31 bilhões (65% do saldo comercial global de US$ 47 bilhões).
Os EUA, 2º parceiro, venderam mais do que compraram, gerando déficit de US$ 2,9 bilhões. Só foi superado pela Alemanha, que, além do 7 x 1 de 2014, nos infligiu déficit de US$ 3,8 bilhões até outubro. Os europeus, liderados pela Holanda (US$ 5,3 bilhões de saldo a favor do Brasil) e a Bélgica (US$ 1,087 bilhão), que distribuem pelos portos de Roterdã e Antuérpia mercadorias para toda a Europa, garantem o 2º mercado (considerando a União Europeia) para o Brasil. Destaque para os fortes saldos com a Espanha e déficits com França e Itália. Em escala global, o 3º superávit se dá com a pequena Cingapura, para onde a Petrobras exporta muito petróleo e bunker, combustível para navios.
Dentro do critério de que um bom comerciante deve atender às preferências e exigências dos clientes, as relações comerciais entre nações não se travam de pessoa a pessoa. Mas com visão de longo prazo. Pessoas passam (mesmo os ditadores longevos) e os países ficam como mercados e importantes aliados. Por isso é inaceitável a postura assumida pelo presidente Jair Bolsonaro, estimulada por seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, de resistir a cumprimentar o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, como o presidente eleito dos Estados Unidos.
Mais de uma semana se passou desde que Biden superou o limite dos 270 delegados conquistados no Colégio Eleitoral no sábado 7 de novembro (na 5ª feira, 13 de novembro consolidou a vantagem com a conquista dos 11 votos do Arizona e mais 16 na 6ª feira com vitória na Geórgia, somando 306 votos o mesmo número de Trump em 2016). A diferença é que Biden exibe 5,5 milhões de votos a mais que Donald Trump, que perdeu na contagem geral em quase 3 milhões de votos para a candidata democrata, Hillary Clinton, em 2016.
Imaginar que há pouco mais de uma semana o chanceler brasileiro disse a uma turma de formandos no Instituto Rio Branco, a escola de formação de diplomatas do Itamaraty, que era “preferível ser pária se for para ficar com a democracia”. Não pude deixar de lembrar do famoso “Poema das Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade: “Quando nasci, um anjo torto me disse: Vai, Carlos! Ser “gauche” na vida”. Isso sempre me inspirou a contestar as verdades absolutas, que é uma das máximas do bom jornalismo e de quase tudo na vida. Pois Bolsonaro quis ser “gauche” na vida se alinhando pela direita contra a democracia. Virou representante de um país de maricas e pária da democracia ao defender o alinhamento automático com Donald Trump. Resiste a admitir o óbvio na companhia do próprio Trump e a ditadores como Wladimir Putin (da Rússia) e Kim Jong-um (da Coréia do Norte) e do populista de esquerda Manoel Lopes Obrador, presidente do México. Este tem dívidas com Trump, que ameaçou erguer mas não terminou o muro separatista.
Na única manifestação sobre a eleição, Bolsonaro já criou ruído com o presidente eleito Joe Biden invocando declaração dele em campanha contra o descaso brasileiro com os incêndios na Amazônia. Pragmático, o vice-presidente Hamilton Mourão, coordenador do Conselho da Amazônia, disse 6ª feira, no Encontro Nacional dos Exportadores Brasileiros, que “campanhas difamatórias” abrem caminho para “levantarem barreiras injustificáveis” contra o setor do agronegócio brasileiro, principal responsável pelos US$ 174 bilhões exportados em 10 meses. E acrescentou, num mea-culpa: “Os crimes ambientais deixam o nosso país vulnerável a campanhas difamatórias, abrindo caminho para que interesses comerciais levantem barreiras injustificáveis contra o agronegócio brasileiro”, afirmou, acrescentando que o governo tem “como prioridade imediata” o combate ao desmatamento ilegal. “Como se não bastasse o prejuízo ao patrimônio material brasileiro, isso prejudica a nossa imagem no cenário internacional e afeta os mais variados setores da economia.” Simples assim. Cabe desenhar para Bolsonaro e o chanceler.
Bolsonaro já criou ruído com o presidente eleito Joe BidenDonal Trump e Jair Bolsonaro conversam em Washington
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)