O reencontro político de duas lideranças da dimensão de Lula e Ciro Gomes, como revelado por reportagem de Sérgio Roxo no jornal O Globo desta quinta-feira 29 de outubro, é alvissareiro para o Brasil. A dimensão da agenda destrutiva de Jair Bolsonaro e dos talibãs bolsonaristas, determinados a disseminar o ódio por onde passam e a converter em ruínas tudo o que tocam, é gigantesca. Só o entendimento do personagem de biografia colossal como Luis Inácio Lula da Silva com Ciro, eterno aprendiz do jogo dos titãs da política, é capaz de mudar o patamar da reação à tragédia que destrói o País.
O diálogo entre eles sempre careceu de catalisadores que os levassem a desinflar os respectivos egos, arquivar ansiedades recíprocas por protagonismo e sentar diante de uma agenda pragmática de avanços.
Candidato a presidente pelo PPS em 2002, Ciro tentou se converter em alternativa do centro político à polarização do PT com o PSDB, que tinha José Serra à frente da chapa situacionista. Na última semana de julho daquele ano, as pesquisas de intenção de voto demonstravam ser possível a missão à qual se impôs o ex-governador cearense. Entretanto, vítima de erros cometidos por ele mesmo – xingar um eleitor negro, com imprecações racistas, durante uma entrevista ao vivo e desdenhar de forma sexista da contribuição da companheira Patrícia Pillar na campanha –, Ciro foi se distanciando das chances de vencer o pleito. Integrando o núcleo central da campanha de Ciro Gomes, vi de perto o desmonte de uma alternativa política com imenso potencial. Conto essa história em detalhes no terceiro volume de “Trapaça – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro” que estou escrevendo e devo lançar até abril de 2021.
Quanto mais se via frustrado em seu objetivo eleitoral, em 2002, mais Ciro se convertia em peça preciosa para Lula no tabuleiro da campanha. Na manhã do derradeiro debate do primeiro turno, na TV Globo, fui procurado logo cedo pelo publicitário Duda Mendonça. Preocupado com armadilhas potenciais que a campanha José Serra poderia armar naquela noite, Duda perguntou se eu intermediaria um acerto entre nossos clientes. Claro que me dispus a executar a tarefa. Mal conhecia Duda. Lula fora uma fonte jornalística convertido em amigo. Vaidoso e irritadiço, Ciro refutou a abordagem direta e não quis conversar com o adversário antes de os dois irem para o Projac, onde seria o embate final dos candidatos. Quando chegamos aos estúdios da Globo, Duda e o então deputado Luiz Gushiken fizeram nova investida. Disseram-me ter certeza que Serra faria uma pergunta a Lula, sobre “Economia”, destinada a revelar que o petista não conhecia os meandros da administração pública e, consequentemente, não estaria preparado para governar. Sondei Ciro sobre as chances de ele sair em defesa de Lula. “Sim”, respondeu monossilábico. “Mas ele que venha até aqui”. Lula não foi, porém mandou Gushiken – o que, àquela altura, era a mesma coisa. Ciro despachou o irmão, Lúcio Gomes, para tratar com o deputado petista. Entenderam-se e, no debate, Serra de fato fez uma pergunta em economês com o objetivo de emparedar Lula. Dizia respeito à Cide – Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico – cobrada sobre o preço de combustíveis. O candidato do PT, que viria a ser presidente, não sabia do que se tratava. Ciro saiu em seu socorro e melou a estratégia de Serra. Lula e o candidato do PPS despediram-se do Projac com uma piscadela cúmplice d’olhos.
A parceria, sempre tecida com a dificuldade inerente às tramas mais perfeitas da crocheteria do Ceará, repetiu-se no início da noite de 6 de outubro de 2002, quando saíram os resultados iniciais das urnas do primeiro turno da eleição presidencial vencida por Lula.
Deprimido, pois nossas pesquisas internas o projetavam em quarto lugar, Ciro votou no início da tarde em Fortaleza e se recolheu ao apartamento onde morava no bairro Meireles. Comeu pouco, tomou dois comprimidos de Lexotan, algumas doses de uísque, um trago de cachaça e trancou-se no quarto. Apagou. Ao esquadrão avançado da campanha, restava-nos articular o momento certo para Ciro declarar apoio a Lula. “Tem de ser o primeiro a fazê-lo”, eu dizia. “Para que pressa? Espera dois ou três dias”, ponderava Einhardt Jácome, o marqueteiro e cunhado do candidato. “Não precisa declarar apoio”, advogava Roberto Freire, presidente do PPS, que tentava levar o partido para o palanque de Serra.
Antes de o Jornal Nacional ir ao ar, José Dirceu me ligou e perguntou se podia falar com Ciro. Meu cliente estava incomunicável – não respondia às batidas de porta no quarto. “Diga-lhe para ser o primeiro a declarar apoio, porque sai no JN. E ele terá o tratamento especial que merece no nosso palanque”, recomendou Dirceu, coordenador político da campanha vitoriosa. “Não ligo”, disse-me Ciro. “Ele que ligue para mim”. Dei o recado a Dirceu, que me respondeu: “Lula disse que o derrotado liga para cumprimentar o vitorioso. Lula não vai ligar”.
O Jornal Nacional rodou sem a novidade, até que José Dirceu ligou de novo e propôs: eu, telefone em punho, diria que era Lula ligando; ele, ao lado do petista, diria o contrário – para o petista, era Ciro quem ligava. Assim fizemos e passamos as ligações, sem que nenhum dos dois quisesse ser o elemento ativo do telefonema de entendimento. Os dois se falaram e o cearense hipotecou apoio ao pernambucano nas primeiras horas de apuração. Ato contínuo, telefonei para Josias de Souza, à época secretário de redação da Folha de S Paulo, e passei o furo do telefonema de ambos. Josias levou a notícia para a manchete do UOL e garantiu a primeira página do jornal. No dia seguinte, possesso, Roberto Freire desembarcou em Fortaleza querendo fazer Ciro voltar atrás. Atropelado, Freire regressou para Recife imprecando contra seu ex-candidato e até hoje conta mágoas da união imediata – e relevante para a vitória consagradora do petista – de Lula e Ciro no segundo turno de 2002.
Em 2010, Lula pediu a Eduardo Campos, governador de Pernambuco e presidente do PSB, partido ao qual Ciro Gomes estava filiado, para que pusesse o guizo no pescoço do cearense e o informasse que os socialistas apoiariam Dilma Rousseff. Campos chamou Ciro a Recife junto com Walfrido dos Mares Guia, ex-ministro do Turismo e amigo dos três. Em 2002, liderança emergente no PTB, Mares Guia integrou o board político da campanha de Ciro Gomes.
Numa conversa dura no Palácio do Campos das Princesas, o governador pernambucano disse que não daria legenda ao cearense, que estrebuchou e desceu de escadas os dois andares até os jardins palacianos. Mares Guia correu atrás dele e ofereceu uma carona em seu jato particular até Fortaleza. Ciro topou. No voo, resmungou e imprecou. Mas, ao desembarcar, ligou para Lula e perguntou: “aonde posso ajudar?”. Dilma venceu, Ciro depois abriu uma dissidência e até hoje tenta se reconstruir como um político nacional.
Em 2018, à guisa de bons conselheiros, Ciro errou nos momentos finais do primeiro turno e sumiu dos palanques no segundo turno. Se tivesse arregaçado as mangas e trabalhado pela Frente Ampla que agora tenta construir com Lula e com o PT, talvez o Brasil não tivesse de pagar um preço tão alto como o que ora pagamos. A aliança entre Lula e Ciro é alvissareira, é uma boa notícia. Mas, contemplando a destruição de cima das ruínas do que foi o Brasil, temo que tenha ocorrido tarde demais.
LUIS COSTA PINTO ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)