No Brasil, indígenas têm suas terras protegidas, os incêndios estão sendo controlados, o desmatamento vem sendo revertido, o combate ao racismo é uma prioridade, as mulheres têm espaço privilegiado, a democracia é sólida, as instituições funcionam, a sociedade civil é livre, jornalistas são protegidos e a resposta à pandemia é exemplar.
Esse é o país que o governo de Jair Bolsonaro vende em informes, cartas confidenciais e discursos em reuniões internacionais.
Se as mentiras do presidente brasileiro na ONU (Organização das Nações Unidas) ocuparam menos de 20 minutos, somando seus dois discursos durante os últimos dias, a realidade é que a estratégia de omitir problemas, transformar a realidade, distorcer fatos e atacar informações já virou marca do Brasil nos organismos internacionais.
Dentro da ONU e entre as delegações estrangeiras, o comportamento do governo brasileiro de negar a realidade e atacar autores de informes é comparado a ditaduras que não toleram críticas.
“Em muitos aspectos, o governo brasileiro atua hoje de uma forma muito parecida ao que a Venezuela fazia no início de sua crise”, revela um experiente negociador internacional.
Segundo fontes que estiveram em reuniões com a delegação de Caracas na ONU, o tom do governo de Nicolas Maduro foi sempre o de culpar ONGs, a imprensa e buscar um bode expiatório no exterior. “Foi exatamente isso que Bolsonaro fez em suas duas intervenções na ONU neste ano”, comentou o negociador.
Os delegados não comparam a situação brasileira à crise venezuelana, considerada como a mais grave da história recente das Américas. Mas a postura negacionista de ambos os líderes diante de seus desafios é repetida de forma insistente pelos observadores estrangeiros.
Tiro no pé
Entre os diplomatas, a postura do Brasil é vista como um “tiro no pé”.
“O mundo inteiro sabe que os problemas são graves no Brasil e, portanto, insistir que eles não existem desmancha a credibilidade do país”, disse um chefe de uma delegação de um país latino-americano.
Além dos discursos, cartas e informes, estrangeiros ainda apontam como o comportamento da chefe da delegação brasileira na ONU confirma tal postura negacionista.
Numa reunião em outubro de 2019 na sede da organização, a embaixadora do Brasil, Maria Nazareth Farani Azevedo, disse que o país era “exemplo e fonte de inspiração para todos em termos de direitos humanos”.
Na sala, muitos riram, enquanto pelo menos um embaixador foi até a diplomata para confronta-la diante da declaração.
Ela não hesitou e repetiu a frase. Convicta de um país imaginário e, agora, sem credibilidade.
Esforço consciente
Dentro do Itamaraty, a ordem para as missões do Brasil pelo mundo é a de responder a todos os questionamentos sobre o governo e não deixar nenhuma denúncia passar sem um contra-ataque. O resultado, porém, não tem sido o reconhecimento dos problemas, mas a afirmação de um país que, segundo os diplomatas estrangeiros e peritos da ONU, simplesmente não existe.
Bolsonaro chocou a comunidade internacional ao culpar indígenas pelos incêndios no país, em plena tribuna da ONU.
Mas aquele é apenas um trecho de um vasto programa de desinformação.
Nesta semana, durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a entidade Artigo 19 apresentou um levantamento no qual acusava o governo de Jair Bolsonaro e seus filhos de realizar 449 ataques contra a imprensa. Mas, em seu direito de resposta, o Itamaraty garantiu que “defende a liberdade de imprensa” e que existem mecanismos para proteger jornalistas no Brasil.
Indígenas
Dias depois, o governo voltou a ser confrontado com acusações de abusos contra indígenas. Rebateu dizendo que o país tem a maior área de reservas indígenas do mundo e que existe um compromisso de proteger essas comunidades.
O Itamaraty omitiu os ataques às terras indígenas, os cortes orçamentários e as acusações realizadas pelo próprio presidente contra esses grupos.
“Nosso compromisso com os direitos indígenas está enraizada na Constituição, que dedica especial atenção a seus direitos e deixa para trás a assimilação natural”, justificou o Itamaraty. Nenhuma palavra foi dita sobre o discurso de Bolsonaro de que indígenas querem civilização e nem a impunidade diante dos crimes.
Racismo
A mesma estratégia foi adotada quando o Brasil foi questionado na ONU sobre o “racismo sistêmico” no país. A resposta eloquente da delegação apontou que o assunto é “prioridade” no governo.
“O Brasil está comprometido com a igualdade racial e a luta contra o racismo. Tomamos medidas para incentivar a participação de afrobrasileiros na vida política, econômica e social do país”, disse o Itamaraty, que omitiu os ataques de Bolsonaro contra a política de cotas ou as declarações da atual liderança da Fundação Palmares.
A narrativa do Itamaraty no exterior é ainda de que “quilombos merecem atenção especial na agenda política no Brasil”, uma contradição diante dos famosos comentários de Bolsonaro, que já mediu quilombolas em arrobas.
Meio ambiente
Na área ambiental, a recusa em aceitar a ideia de uma ação multilateral, com participação mundial, vem acompanhada por garantias de que as leis no Brasil são exemplares.
Num discurso numa reunião na ONU, o Itamaraty indicou que “regras ambientais fortes” existem no país e que existe “controle social de abusos”.
Uma vez mais, uma omissão escancarada das medidas do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de desregulamentação visando ao setor econômico e de suas referências a “passar a boiada”.
“Liberdade de opinião” sobre torturadores
A versão fantasiosa da realidade brasileira também consta de cartas do governo aos diferentes mecanismos da ONU.
Numa correspondência enviada por Brasília em agosto, o Itamaraty justifica os afagos do presidente a torturadores como o direito do chefe de Estado à “liberdade de opinião”.
Segundo peritos, as leis internacionais não lhe conferem direito a ter “opinião” diante de crimes.
Elogios à democracia, e à ditadura
No mesmo documento, o governo apresenta o Brasil como uma “democracia sólida, com suas instituições em pleno funcionamento, governado por princípios constitucionais e garantias baseadas nos mais altos padrões do Estado de direito”.
Em 2019, uma comunicação do governo para a ONU sobre a ditadura militar (1964-1985) no país indicou que o “presidente (Bolsonaro) reafirmou que não houve um golpe de Estado, mas um movimento político legítimo que contou com o apoio do Congresso e do Judiciário, assim como da maior parte da população”.
Relatórios “fake”
Outra estratégia do governo ainda tem sido a de submeter informes desatualizados às Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos no país.
Alguns deles deveriam ter sido entregues há anos. Mas o que Brasília fez foi submeter as informações à ONU, evitando dar detalhes de como ocorrem os programas a partir de 2019.
Pelo menos dois informes foram apresentados aos diferentes comitês da entidade em meados de 2020, mas com informações que terminavam em 2018 ou mesmo 2017. Muitos dos programas não existem mais, foram esvaziados em termos de orçamento ou têm sido questionados internamente. Mas, se a ONU levar em conta os documentos, terá um raio-x de um outro país.
Oficialmente, o Ministério da Família, Mulheres e Direitos Humanos alega que não houve tempo para incluir os dados da atual administração, já que os textos foram produzidos ainda em 2019.
Na ONU, nenhum dos peritos comprou a versão e o gesto foi interpretado como um ato deliberado de não dar informação sobre o que ocorre atualmente no país. Membros da sociedade civil chegaram a denunciar o governo por apresentar “relatórios fake”.
Talvez como Pinóquio, boneco de madeira que queria se tornar um menino, o governo brasileiro acredite que, inventando a realidade, possa se tornar um país “de verdade”.
JAMIL CHADE ” SITE DO UOL” ( GENEBRA / BRASIL)