Zuza estava sentado em um sofá quando passou uma moça que, de repente, trouxe-lhe à mente o amor do passado. Não conversou com a moça. Apenas sentiu uma eletricidade no ar. Tempos depois, descobriu que era a filha da amada.
Falecido há pouco, só quem conheceu aproveitou a doçura de Zuza Homem de Mello, não apenas o musicólogo fantástico, mas a pessoa, generosa, atenciosa, educada, sensível.
Mas só os antigos de Poços de Caldas souberam da história do grande amor não completado. Zuza apaixonou-se por uma poçoscaldense linda, filha de família de posses, mas pé no chão. Dona Tereza, minha mãe, muito crítica em relação à sociedade poçoscaldense, sempre teve palavras de admiração pela mãe da moça, e pela moça.
De minha parte, lembro-me da moça, já senhora, nos anos 70, quando juntávamos nossa turma para tocar paródias contra os políticos de Poços no Castelões, o restaurante onde eles se reuniam.
No fundo do restaurante havia salas fechadas, onde praticavam um carteado familiar. Na época, eu tinha montado um jornal em Poços, e fazia oposição aos pessedistas da cidade. Eles se juntaram, então, e compraram a parte dos meus sócios, me obrigando a vender a minha e encerrar o derradeiro elo que mantinha com a cidade.
A vingança foi terrível. Compunha marchinhas com paródias sobre a situação política da cidade e, sempre que ía a Poços, ensaiávamos no Castelões. Fazia sucesso tal que, quando o jornal local anunciava minha chegada, o prefeito se licenciava e saía da cidade, para não saber da nova paródia. O refrão preferido era: “Acharam petróleo em Campos / vão achar em Cascadura / mas aqui em Poços, tem um poço mais rico / no porão da Prefeitura”.
Na hora do jogo, os casais passavam pelas nossas mesas, interrompíamos educadamente as paródias, e a moça, agora senhora, sempre tinha um olhar simpático e divertido para a rapaziada que vivia de atazanar seu marido.
E não menciono o nome dos personagens em atenção ao mestre Antônio Cândido. Nas minhas crônicas de domingo, na Folha, contava histórias dos antigos da cidade, conforme me eram relegadas por Miguel Carvalho Dias, ex-prefeito da cidade no início dos anos 50. Cada crônica que publicava, Antonio Cândido me ligava: “Luis, não cite nomes porque os bisnetos estão vivos”.
O marido era boa gente, um dos herdeiros do primeiro coronel dono da sesmaria, onde se ergueria a futura Poços. Mas era secarrão, com ar de bravo, fazendo o contraponto aos irmãos, que eram de uma irritante simpatia pessedista. E digo irritante lembrando do meu avô Issa Sarraf, udenista nas campanhas eleitorais da minha infância. Mas mesmo meu avô, nas nossas recordações de Poços, elogiava sua vocação política e sua amizade.
Por trás da carranca, havia um passado dolorido. Casou-se com uma moça, filha de um médico conceituado. A viagem de núpcias foi em um cruzeiro para a Europa. No meio da viagem, a moça conheceu uma cafetina, largou o marido e mudou de vida. Mais tarde, ele conseguiu anular o casamento no Supremo Tribunal Federal (STF), mas se tornou um lobo ferido, solitário, triste.
Enquanto isto, a moça vivia a plenitude de um amor com nosso Zuza. Até que um dia veio a Poços para rever a família, encontrou-se por acaso com o político, e entendeu que era o amor da sua vida. Nem voltou para se despedir de Zuza.
Zuza viveu o inferno dos apaixonados desiludidos. Semanalmente ia à casa de dona Elza Valim, nascida Moreira Salles, para telefonar para Poços, na esperança de demover a amada. Não sei se na época as ligações eram complicadas, daí pedir o telefone emprestado, ou se Zuza pedia emprestado o ombro amigo de dona Elza.
Foi em vão.
Zuza era a doçura e a sensibilidade; o velho lobo era rude como os antepassados coronéis rurais. Zuza era todo sorriso, o outro só sisudez. Zuza era homem da paz, o outro calejado nas guerras da política.
Mas a moça descobriu no velho lobo uma sensibilidade impressentida. Caram-se e, dali em diante, sua presença fez renascer o velho lobo. Formaram um casal apaixonado, ele sisudo, ela sorridente, ele radical, ela sociável, sendo o ponto de equilíbrio do amado.
A paixão durou décadas, Terminou no início dos anos 90 com a morte da moça em um vazamento de gás em sua casa, semanas depois de um diagnóstico de câncer.
Pouco depois, no carnaval de 1990, dei um mergulho dolorido nas lembranças de Poços. Dona Tereza tinha falecido meses antes. Juntamos o grupo de música e ficamos tocando marchinhas de carnaval em um restaurante do amigo Dirceu, em frente às Thermas. Do meio das brumas das lembranças, surgiu uma dona Tereza, mas de sobrenome Amaral, que conhecia todas as marchinhas de minha mãe, era sua amiga e tornou-se sogra de uma moça que minha mãe imaginava para nora. Passamos horas cantando marchinhas e colhendo lembranças.
No segundo ou terceiro dia, no fim de noite chegou o velho lobo, sentou-se em uma mesa próxima e me olhou como para testar minha reação. Levantei-me e fui sentar com ele, dei meus pêsames, falei do carinho de minha mãe por sua amada, dos elogios do meu avô para ele. E ele falou da admiração pelo meu avô e por meu pai.
Não tocamos nas mágoas do passado, que ficaram no passado. Lembramos apenas as histórias de Poços, dos tempos do meu avô, dos tempos presentes, com ele derramando lembranças sobre a amada.
Tempos depois, no Maksoud Plaza aconteceu o episódio final da história de amor de Zuza, conforme me foi contado por dona Elza. Zuza estava sentado em um sofá quando passou uma moça que, de repente, trouxe-lhe à mente o amor do passado. Não conversou com a moça. Apenas sentiu uma eletricidade no ar. Tempos depois, descobriu que era a filha da amada.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)