Costumávamos dizer que não haverá golpe nos Estados Unidos, porque lá não existe embaixada norte-americana. Agora, de forma surpreendente, o risco é discutido abertamente na mídia e na própria política norte-americana.
Os Estados Unidos costumam se reivindicar ser o berço da democracia contemporânea. Enquanto na Europa sobrevivem, em vários países, monarquias, os EUA se orgulham de não ter um passado feudal e monárquico, de ter passado de país colonizado que derrotou a maior potencia colonizadora da época, para se tornar uma grande democracia.
Como todo país liberal, reivindicam igualdade e democracia por ter um sistema político supostamente baseado na igualdade. Acontece que nem isto é verdade. As eleições presidenciais não se baseiam no voto direto e no princípio de cada pessoa um voto.
Para contemplar estados do Sul, racistas, no final da guerra civil se decidiu dar-lhes privilégios, com o sistema do Colégio Eleitoral. Por este, cada estado tem um numero de eleitores em um Colégio nacional, em que quem vence as eleições em cada estado, leva a representação de todos os eleitores do estado. As minorias em cada estado ficam sem representação.
Dessa forma, Hilary Clinton teve cerca de 2 milhões de votos a mais do que Trump, mas este foi eleito presidente pelos votos no Colégio Eleitoral, vencendo em alguns estados decisivos. Não adianta nada a vitória arrasadora em estados como a Califórnia ou a Flórida, porque quem vence tem todos os votos do estado.
Mesmo na eleição de Bush contra Gore, os impasses jurídicos na Flórida levaram a decisão da recontagem de votos para o Supremo Tribunal, onde havia maioria de juízes republicanos, que decidiram pela vitória de Bush. Gore desistiu de seguir a controvérsia jurídica, que poderia se prolongar.
Nestas eleições, Trump questiona o sistema eleitoral como um todo, especialmente os votos por correio, tradicionais nas eleições norte-americanas, mas que desta vez deve ter uma proporção muito alta de votos. Os democratas devem ser os que em bem mais alta proporção apelem a esse voto.
Trump denuncia previamente a legitimidade desse tipo de voto, alertando que os democratas estariam preparando uma fraude, para lhes roubar a vitória eleitoral. Trump mudou o diretor dos Correios, o que já teve como consequência, um processo muito mais lento de circulação dos votos. O que pode fazer com que, no dia da eleição, uma grande proporção de votos por correio ainda não tenha sido apurada, tendo como resultado eventual, uma maioria favorável a Trump, que pode imediatamente cantar vitória e reiterar que os democratas querem roubar seu triunfo.
Em cada estado pode haver questionamentos das apurações. Trump já anunciou que o resultado vai desembocar no Supremo Tribunal. Para se garantir, nesse caso, Trump se vale da morte da juíza mais adepta das posições dos democratas, para nomear uma juíza republicana no seu lugar, garantindo uma maioria de 6 a 3 votos, que pode ser decisiva no resultado final.
Se trata, de qualquer forma, de uma maneira de Trump não reconhecer uma eventual derrota, fazendo manobras para desconhecer o resultado das apurações e fazer depender o resultado final de uma instancia jurídica na qual ele tem maioria. Trump já disse que não aceitaria um resultado desfavorável para ele que, como também disse ha quatro anos, atrás, só seria possível por uma fraude dos democratas.
Seria, inequivocamente, um golpe. Os democratas, vários parlamentares republicanos e organizações da sociedade civil norte-americana estão alarmadas e qualificam as manobras de Trump como uma ruptura da democracia, como um golpe. Por isso os democratas dizem que essas eleições são as mais importantes da história norte-americanas, porque podem representar um golpe duro à democracia.
Seria um acontecimento de consequências imponderáveis ainda, inclusive, consequências no plano internacional e no papel dos EUA no mundo, acelerando sua crise de hegemonia global. Um acontecimento que se dará daqui a pouco mais de um mês e, qualquer que seja o resultado – um golpe de Trump ou sua derrota – terá enormes consequências nos EUA e em todo o mundo.
EMIL SADER
Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros