Na semana passada, o ministro Luiz Fux tomou posse como presidente do Supremo Tribunal Federal. Muitos me perguntaram sobre isso, em entrevistas, aulas e em conversas informais (tudo em Zooms e Teams e lives, claro; o mundo hoje virou uma grande live!).
Conheci Luiz Fux nos anos 90, no Hotel Glória, onde o juiz e professor James Tubenchlack fazia o maior congresso de Direito do Brasil (Instituto de Direito). Figuras presentes em todos os Congressos, dentre outros: Calmon de Passos, Carmen Lúcia, Yussef Cahali, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Jacinto Coutinho, Cesar Bitencourt, Mirabete, Amilton Carvalho, Barbosa Moreira, Lenio Streck e aqueles que James chamava de “Meninos do Rio” — Fux, Nagib e Capanema (recentemente falecido e a quem rendo minhas homenagens, com saudades daqueles dias memoráveis, do tempo em que não havia celular e das fitas DVD que James vendia logo após o término das palestras). James fazia disputa para saber quem seria mais aplaudido. Vinha gente de todos os cantos. Salão cheio e mais dois telões. Lembro dos cafés com Calmon.
Passados mais de 20 ou 25 anos, o ministro Fux toma posse como presidente do STF em um momento muito delicado de nossa República. Todos sabem disso. Negar seria mentira. O STF, queira ou não, goste ou não, está e estará no centro do debate nacional, num período de constante crise no âmbito dos diálogos institucionais.
Dia desses, brinquei que o Tribunal está sofrendo num estado permanente de contempt of court, o desrespeito à Corte. No Brasil, esse país que desafia a própria lógica, o contempt of court consegue, ao mesmo tempo, virar crime permanente e continuado. Nesse sentido, quero começar por manifestar meu apoio ao ministro presidente Luiz Fux e à ministra vice-presidente Rosa Weber (cujo voto nas ADCs 43 44 e 54 foi histórico, à altura da ocasião!) no que pertine ao papel Institucional da Suprema Corte.
Manifesto meu apoio porque, em estado permanente de ataques ao STF, sustentar a institucionalidade da República é a primeira pauta do dia para os juristas democratas.
Vou além: a tarefa primeira de qualquer democrata. Parafraseio o grande Lord Bingham, que também foi presidente de Suprema Corte — no caso, a britânica. Você pode não gostar deste ou daquele ministro; pode não gostar desta ou daquela decisão do STF. Muito bem. Você pode. Agora, imagine um país sem Suprema Corte. Sem Judiciário forte. Se você gosta mais desse cenário, então não gosta de democracia. Tertius non datur.
Falar sobre isso é meu dever republicano institucional. É meu dever epistêmico como teórico do Direito que entende a tarefa do teórico como uma tarefa normativa: quem faz teoria do Direito direito tem de dizer a que vem, tem de se engajar na discussão interpretativa, tem de se preocupar com a decisão judicial. É um dever epistêmico porque o melhor que o Direito pode ser não pode prescindir do caráter institucional do fenômeno. É um dever republicano porque o Direito segura a democracia. O Direito tem de segurar e filtrar a política e não o contrário.
Nesse sentido, e nesse estado permanente de contempt of court, é bom lembrar do paradoxo: quanto mais o STF cumpre a Constituição, mais é atacado. No Brasil, parece que cumprir a lei é feio. Opinionismo jurídico: soltou o réu, é ruim. “Tem de prender”, gritam. Todo mundo. O que diz a lei? Não importa. Bingo. Na era do emotivismo — tão denunciado por MacIntyre —, quando o Direito oferece os critérios para resolvermos nossos desacordos… emotivizam o critério. Isso: no Brasil emotiviza-se o critério.
Por isso é importante falar sobre tudo isso. Porque o novo presidente do Supremo terá de assumir esse ônus: o ônus de presidir o guardião da Constituição num país em que aplicar a Constituição virou crise política.
É fantástico isso. Lembro de quando, na Dacha, zapeando a televisão e descansando a cabeça depois de vinte e sete lives, vi aquele grupo de militantes, os Meia Dúzia pelo Brasil, atirando fogos de artifício contra a Corte. Brinquei com Rosane: “O Supremo deve ter feito alguma coisa certa”.
Esse é o momento difícil em que assume o ministro Luiz Fux. Como sempre digo, sou amicus da Corte. E não inimicus. É tarefa de todo jurista democrático. Ser amigo da Corte. Ela já tem inimigos demais.
Como amigo da Corte, trago algumas sugestões para a nova presidência que conta e contará com todo meu apoio.
Este é o momento de resistir. Como? Aplicando a Constituição do Brasil e fazendo valer os princípios que a estruturam. Essa é a tarefa do STF. Aplicar a lei não é feio.
Fazendo valer a coerência e a integridade do Direito, para além de maiorias eventuais e de pressões de atores que confundem diálogo institucional com ameaças anti-institucionais.
É momento de rejeitar os ativismos, mas de atuar com firmeza quando necessário. Entre o juiz herói que quer salvar o mundo e o juiz inerte, ativista ao contrário, que não entra em cena nem quando é chamado, fico com o juiz intermediário, que eu chamo de Juiz-Hermes (não o do F. Ost): não, não um juiz semideus; um juiz que tem a hercúlea tarefa de aplicar o Direito sob sua melhor luz. De agir por princípio.
É momento de encarar os fogos de artifício. São de artifício.
Há carros circulando pelo Brasil afora com o plástico “Supremo é o povo”. Bah (expressão gaúcha). Os carros, esses com o plástico, são do mesmo tipo de gente que solta fogos sobre o STF. Perigosíssimo. Supremo cuida da Constituição, que é justamente o remédio contra maiorias. Temos de preservar as Instituições. São elas que fazem a intermediação entre o povo e o Estado. E o STF é o guardião da Constituição.
A tarefa, Ministro Fux, é muito difícil.
Mas é muito fácil também. Basta cumprir a lei, com coerência e integridade. Tão simples, tão complexo.
Os amicus da Corte estão aqui. Para cobrar. Mas, sobretudo, para oferecer apoio epistêmico.
E, se o novo Presidente me permitir, vai aqui um pedido metafórico (ou alegórico): fazer como os generais romanos, que quando voltavam de uma batalha, levavam, na boleia da biga, um escravo ao lado, que, a cada 500 jardas, dizia, puxando-lhe a suntuosa capa: “lembra-te que és mortal”. Era lei: um escravo conduzia a biga e o segundo sussurrava a frase a 500 jardas.
Mutatis, mutandis, sugiro — metaforicamente — que o Presidente do STF escale um estagiário (dessa valente classe que algum dia assumirá o poder — afinal, eles são numerosos e indispensáveis) que diga a cada início de jornada ou levante uma placa em julgamentos e cerimônias:
“— Excelência, lembre-se da Constituição”.
Aliás, cada membro do Poder Judiciário e do MP deveria fazer isso. Lembrar-se a cada 30 minutos que cada um só é o que é… por causa da Constituição Federal.
POST SCRIPTUM: Do ferimento da isonomia e igualdade de tratamento para presos sob risco de Covid
A propósito, li a alteração da recomendação CNJ sobre possibilidade de prisão domiciliar em face da pandemia. A partir de agora, benefícios como reavaliação de prisão provisória e concessão de regime domiciliar não podem ser concedidos a pessoas envolvidas com orcrim, lavagem de dinheiro, crimes contra a administração pública, crimes hediondos e violência doméstica.
Permito-me dizer que não pode haver hierarquização de vidas. Uma vida é igual a uma vida. O fato de alguém ter cometido crime contra a administração, por exemplo, não o torna menos vulnerável à Covid.
Isso fere à isonomia e à igualdade. Portanto, a nova Resolução (íntegra aqui), embora seja apenas uma recomendação, fere a Constituição.
LENIO LUIZ STRECK ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito