QUANDO MENINOS E MENINAS SÃO MAUS

CHARGE DE SPACCA

Na cartilha da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a advogada Damares Alves (que, data vênia ministras Carmen Lúcia e Rosa Weber, almeja substituir o decano Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal!), meninos vestem azul e meninas vestem rosa. Os primeiros devem ser ativos e justos e as meninas, boazinhas e do lar. Mas, no clima global, tanto o menino (El Niño) quanto a menina (La Niña) podem gerar estragos graves, como furacões e tornados. E o aquecimento (causado pelo El Niño) ou esfriamento (causado pela La Niña) das águas do oceano Pacífico na zona do equador pode ter influência no regime de chuvas e causar sérios problemas à agricultura em todo o mundo.

A grande seca que afetou a produção agrícola do Brasil e dos Estados Unidos (maiores celeiros do mundo) em 2015/16 tem a ver com a mais severa manifestação do El Niño em 20 anos, segundo a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA em inglês), órgão do Departamento de Comércio dos EUA que há 50 anos estuda os fenômenos atmosféricos nacionais e globais que afetam o clima dos EUA (país com duas costas, nos oceanos Atlântico e Pacífico, e mais o Alasca), com impacto na pesca, na agricultura, na aviação e na vida dos 329 milhões de americanos em diversas cidades.

A NOAA absorveu estruturas que controlam a pesca e as marés desde 1807, quando o presidente Thomas Jefferson fundou o US Coast and Geodetic Survey (o Survey of the Coast) para fornecer cartas náuticas à comunidade marítima para entrada e saída segura nos portos americanos, ao longo da extensa costa. Em 1870 foi criado o Weather Bureau e, um ano depois, foi fundada a Comissão de Pesca dos Estados Unidos. Em 1970, esses e outros órgãos se fundiram para acompanhar as mudanças climáticas do aquecimento global. O fenômeno El Niño começou a ser estudado pela NOAA em 1982. La Niña foi depois. A NOAA celebra ter antecipado os grandes furacões em 1997.

Pois na sexta-feira, 11 de setembro, a NOAA distribuiu alerta importante: a La Niña já pode ser considerada ativa e, mesmo com fraca intensidade, tem influência em todo o planeta. A menina foi considerada ativa porque foi comprovado que a temperatura do oceano Pacífico Equatorial estava mais fria do que a média há algum tempo. Para piorar, os ventos reagiram a esta mudança de temperatura do oceano. A junção dos dois fatores é chamada pelos meteorologistas de acoplamento do oceano com a atmosfera. Os ventos Alísios estão soprando mais fortes por causa do resfriamento do oceano. No Brasil o efeito será a melhora das condições para chuva no Nordeste e no Norte. Entretanto, o efeito será contrário no Sul, onde as chuvas ficarão mais esparsas. No Sudeste e no Centro-Oeste, a maior influência será na temperatura, que tende a ser mais amena nos anos de La Niña, em comparação com o seu irmão El Niño, que tem efeito oposto.

Num momento em que a alimentação pressiona a inflação, o Climatempo fez projeções que podem afetar os maiores celeiros agrícolas do país – os estados do Centro-Oeste, liderados por Mato Grosso que hoje concentra a produção de mais de 40% da soja, milho e algodão do Brasil, o Paraná e o Rio Grande do Sul, além da faixa sul dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e o noroeste da Bahia (o MA-TO-PI-BA). Do Rio Grande do Sul ao Paraná devem escassear as chuvas, o que prejudica o plantio de arroz (RS e SC são grandes produtores), soja, milho e feijão no RS, Paraná, Santa Catarina e São Paulo. No Centro-Oeste e no Matopiba, os sistemas eletrônicos das colheitadeiras têm de monitorar o tempo do plantio à colheita. Falta de chuvas no início e no meio compromete a produção; excesso na colheita, idem.

As funções da NOAA nos EUA vão muito além do nosso mais importante sucedâneo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, centro de previsão de tempo e pesquisas climáticas, que também usava satélites para acompanhar o desmatamento e as queimadas na Amazônia e outros biomas. Como na história antiga, quando os tiranos matavam os mensageiros de más notícias, como se fossem os responsáveis, o governo Bolsonaro trocou a cúpula do INPE e enfraqueceu sua credibilidade, reconhecida mundialmente. Nem por isso as más notícias deixaram de chegar. Fenômenos climáticos têm de ser observados com antecedência. As consequências vêm depois.

O El Niño causou séria crise na economia do Peru, baseada na pesca e na produção de rações animais a partir da farinha de peixe, e apressou o fim da ditadura populista do general Velasco Alvarado (1968 a 1975). Alvarado fez várias reformas, como a agrária. Sem os resultados esperados, criou o Ministério da Alimentação, que foi coordenar a importação de alimentos. Também estatizou a atividade pesqueira, criando o Ministério da Pesca. Mas o El Niño aqueceu as águas do Pacífico e afastou os cardumes de anchoveta. Mas foi isso, e não a estatização, que afetou a base da indústria de pesca do Peru.

Os “irmãos” são fenômenos distintos. O El Niño é mais frequente e impactante. No Brasil, provoca redução das chuvas no leste e norte da Amazônia, aumentando a probabilidade de incêndios florestais; no Nordeste, causa estiagem de diversas intensidades nas áreas centrais e norte da região, com a seca sendo mais acentuada nas áreas do sul e do oeste ((hoje, além de água potável, falta verba para os carros-pipa); no Centro-Oeste não há efeitos pronunciados nas chuvas e na temperatura, só mais chuvas e calor no sul do Mato Grosso do Sul; no Sudeste, as chuvas não se alteram tanto, mas a temperatura sobe; no Sul, as chuvas ficam bem acima da média histórica, com maior temperatura.

Quando predomina La Niña, a situação quase se inverte. O Climatempo prevê que o Norte terá estação chuvosa duradoura na Amazônia, com cheias expressivas de rios; no Nordeste, pode haver chuvas acima da média (bom para os agricultores), e enchentes nas cidades ribeirinhas do litoral; no Centro-Oeste, não haverá muitas mudanças nas chuvas e na temperatura, mas o celeiro do Brasil corre o risco de estiagens (a deste ano causa seca e incêndios recordes no Pantanal); no Sudeste pouco muda nas chuvas e na temperatura; mas no Sul, o Climatempo prevê estiagem geral, principalmente no inverno. Isso pode afetar a próxima safra de arroz, bem como as de soja e milho. Uma má notícia quando os preços dos alimentos já estão em alta este ano.

No severo El Niño de 2015/2016, a inflação no Brasil, medida pelo IPCA, calculado pelo IBGE nas principais cidades do país, disparou. Saltou dos 6,41% de 2014 (praticamente no teto extremo da meta que era de 6,5%) para 10,67% em 2015, com alta de 12,03% no item Alimentação e Bebidas, devido à quebra da safra de grãos, e retornando a 6,29% em 2016 (alta de 8,62% em Alimentos e Bebidas). No período, o Brasil teve a maior recessão de sua história até o impacto atual da pandemia da covid-19, com queda de 3,6% no PIB em 2015 e de 3,3% em 2016. Com a melhora do regime de chuvas, a safra de grãos cresceu 30% em 2017 e os preços de alimentos e bebidas tiveram deflação de 1,87% em 2017, reduzindo a inflação para 2,95% no ano.

Mas a hiperinflação de 2015 em meio à grande recessão não veio só dos alimentos. Já tinha ganhado impulso com o reajuste de 18% nos preços administrados pelo governo (congelados desde 2013) e liberados tão logo a presidente Dilma foi reeleita em outubro de 2014 (a conta de luz, reduzida em 2013, subiu 44% e a gasolina aumentou 26% em 2015, num claro estelionato eleitoral), além da disparada do câmbio (o dólar subiu 48,9% em 2015). A seca nas regiões produtoras de alimentos foi apenas um combustível extra.

Quando era ministro da Fazenda no governo Médici (1969-março de 1974) e tinha todos os instrumentos de intervenção na economia à mão, como o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, Delfim Neto, quando estava na velha sede do ministério, no Rio de Janeiro, acompanhava pela janela como estavam as nuvens na serra de Teresópolis e Nova Friburgo. É que a região era e continua a ser o grande cinturão verde de abastecimento da Guanabara (a capital federal virou estado com a mudança para Brasília em 1960 e voltou a ser apenas a capital do Estado do Rio de Janeiro com a fusão ao antigo RJ em 1975). A inflação era calculada pela Fundação Getúlio Vargas, com peso de 60% dos preços no atacado e preços ao consumidor (30%) só no Rio. Delfim manipulou a inflação oficial de 1973 (14,43%, a real foi quase o dobro).

O cálculo da inflação saiu da FGV para o IBGE, em fins de 1979, após Delfim, que era ministro da Agricultura de Figueiredo, passar a comandar a economia na pasta do Planejamento, com a renúncia de Mário Henrique Simonsen, em agosto daquele ano (em meio à elaboração do Orçamento Geral da União para 1980), por não sentir o governo comprometido com a austeridade fiscal. Hoje, o IBGE faz coleta de preços em 16 capitais. Só estão de fora as capitais do Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima e Mato Grosso (justamente o maior produtor agrícola do país).

Em 2020 até agosto, enquanto a inflação média do país alcançou 0,70% e a alta dos alimentos e bebidas foi de 4,91%, a capital com maior carestia foi Campo Grande (MS) com inflação de 2,13%, sendo de 4,87% a alta dos alimentos e bebidas. No Rio de Janeiro, o IPCA acumula alta de 0,51%, com escalada de 2,83% nos preços dos alimentos e bebidas. Em São Paulo, principal centro consumidor e distribuidor de alimentos do país, o IPCA subiu 0,86% e a alimentação e bebidas, 4,96%. É verdade que o aumento de 124% no poder de compra com o Auxílio Emergencial de R$ 600 para as famílias que recebiam o Bolsa Família (celebrado por Bolsonaro com o aumento da sua popularidade) turbinou o consumo de alimentos e de bens duráveis em bolsões de pobreza do Norte, Nordeste e Sudeste.

Mas, nem o Ministério da Economia, nem o da Agricultura (que acompanham mais a produção que o abastecimento) explicaram à Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e de Segurança Pública – com aval do presidente da República quando a alta de preços passou a incomodar – por que estados produtores agrícolas como o Rio Grande do Sul, tiveram alta de 3,88% na alimentação, com subida de 14,55% em cereais (arroz e milho) e grãos (soja e feijão) e 19,75% em óleos e gorduras (sobretudo óleo de soja). No Paraná, a alimentação ficou 4,56% mais cara, com alta de 22,84% em cereais e grãos, 35,04% em tubérculos, raízes e legumes (culpa da batata inglesa), enquanto os óleos e gorduras subiram 12,15%.

Minha experiência de 48 anos acompanhando a economia diz que a alta dos preços seguiu as cotações internacionais das commodities em dólar, que subiu mais de 33% este ano e estimulou as exportações. A alta foi de tal ordem que a isenção de impostos para importar arroz, feijão, leite em pó e soja fica quase inócua. Resta a nós e ao presidente Bolsonaro, que nem sempre controla os seus meninos, torcer para que a menina e o menino aprontem menos.

GILBERTO MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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