Deltan Dallagnol deixa a força-tarefa. É função do jornalismo prestar atenção à linguagem e à coreografia política que acompanham essa renúncia, chamando à memória conteúdos objetivos, saídos das pontas dos dedos do próprio procurador. Os encômios sobre o seu esforço e denodo ficam sob a responsabilidade e literalmente por conta do Ministério Público Federal. Nessa hora, fala a corporação. Os elogios são imerecidos. Dallagnol contribuiu para desmoralizar o combate à corrupção.
Mas a esse falso heroísmo se junta um drama pessoal: pessoa de sua família estaria com problema de saúde, a requerer a sua atenção. Como deve continuar a trabalhar, devemos entender que a coordenação da Lava Jato cobra dele, na versão oficial, um tempo extra que estaria roubando de sua própria família, num sinal de que o combate à corrupção exige da personagem esforço quase além da força humana. E é certamente por nós e pelo Brasil que ele sacrifica sua própria vida privada. Um herói!
Que tudo se dê pelo melhor para a pessoa da família de Dallagnol que tem problema de saúde. O fato é que é ninguém é obrigado a misturar lances da vida privada com sua persona pública. Trata-se de uma escolha. E de uma escolha que não deve ser feita, a menos que o drama pessoal decorra de um erro ou de uma falha de política pública. E, como se sabe, não é o caso.
Estamos, portanto, diante de uma escolha política feita por um homem público que tem ambições… políticas.
“Mas ele tem, Reinaldo, ou isso é ilação sua?” Reproduzo trecho de reportagem do site The Intercept Brasil. Volto depois:
O procurador Deltan Dallagnol considerou durante mais de um ano se candidatar ao Senado nas eleições de 2018, revelam mensagens trocadas via Telegram e entregues ao Intercept por uma fonte anônima. Num chat consigo mesmo, que funcionava como espaço de reflexão do procurador, ele chegou a se considerar “provavelmente eleito”. Também avaliou que a mudança que desejava implantar no país dependeria de “o MPF lançar um candidato por Estado” — uma evidente atuação partidária do Ministério Público Federal, proibida pela Constituição.
As mensagens indicam, ainda, que a candidatura não era meramente um plano pessoal de Dallagnol, mas, diante de um “sistema político derrubado”, um desejo de procuradores que ia além da Lava Jato e do Paraná. Em mais de um momento, ele afirma que teria apoio da força-tarefa caso decidisse concorrer, o que indica que isso foi tema de debates internos.
O procurador também dá a entender ter tratado da candidatura com figuras como o jurista Joaquim Falcão, professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, ex-presidente da Fundação Roberto Marinho e membro da Academia Brasileira de Letras.
Apesar de ver a política como “algo que está no meu destino”, Dallagnol decidiu no final de 2017 permanecer procurador da República, mas não abandonou a ideia de ver seu retrato nas urnas eletrônicas.
“Tenho apenas 37 anos. A terceira tentação de Jesus no deserto foi um atalho para o reinado. Apesar de em 2022 ter renovação de só 1 vaga e de ser Álvaro Dias, se for para ser, será. Posso traçar plano focado em fazer mudanças e que pode acabar tendo como efeito manter essa porta aberta”, escreveu, em 29 de janeiro de 2018, numa longa mensagem enviada para ele mesmo.
A referência é ao senador paranaense Álvaro Dias, do Podemos, aliado da Lava Jato e poupado pelas investigações da operação, cujo mandato termina em 2022. Dallagnol havia recebido um convite para ser candidato ao Senado naquele mês — justamente pelo partido de Dias — entregue por outro procurador da Lava Jato, Diogo Castor de Mattos. Poucos dias depois, fez a longa ponderação em que pesava os prós e contras de uma aventura política, também em um texto que enviou pelo Telegram para si próprio.
Na reflexão, ele se via dividido entre três opções. A primeira era se candidatar ao Senado, pois julgava que seria “facilmente eleito” e via “circunstâncias apontando possivelmente nessa direção”, entre elas o fato de que “todos na LJ apoiariam a decisão” de apresentar seu nome aos eleitores, em suas próprias palavras.
(…)
RETOMO
Leiam a íntegra da reportagem do TIB.
Tudo indica que estamos assistindo ao início da saída supostamente heroica de um procurador da República, que tão precocemente atingiu o estrelato, e ao nascimento da pré-candidatura de um postulante ao Senado.
Em 2022, como ele mesmo deixa claro, há apenas uma vaga para essa Casa legislativa. Parece que o lava-jatista Álvaro Dias pode começar desde já a planejar o seu futuro, buscando um outro emprego.
Como se nota, Dallagnol considerava que, se candidato, poderia prejudicar a reputação a Lava Jato. Não mais, né?, se estiver fora da força-tarefa e caso se consolide a versão de que saiu porque incomodava os corruptos.
Resistiu à candidatura em 2018, mas notem que o projeto ficou para ser repensado em 2022.
E tanto melhor se Sergio Moro disputar a Presidência. Como se sabe, o ex-juiz é candidato à candidato. De todo modo, as respectivas postulações são independentes.
Eis no que deu a suposta maior operação do mundo de combate à corrupção e que tantos desastres trouxe ao Brasil. A eleição de Bolsonaro é apenas a mais sacrílega, mas não a única.
REINALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)