Na véspera do meu aniversário de 72 anos, em março, minha filha Carolina, com ar muito preocupado, veio aqui e me deu a ordem: você não vai sair de casa nem receber visitas até passar o perigo.
“Estou falando sério, não dá para brincar com isso. Esse vírus pode matar. Você me promete que vai fazer isso?”
Prometi, e cá me encontro, já faz 150 dias, sem botar os pés no elevador, nem encontrar ninguém.
É como se a minha vida tivesse sido congelada entre quatro paredes.
Se fosse só a minha, paciência, pois tem gente que passa anos trancado numa cadeia ou num hospital, esperando a soltura ou a alta, sonhando com o que gostaria de fazer quando pudesse voltar à rua.
Mas, pelas notícias que me chegam de fora, começo a sentir que o país inteiro parece anestesiado, inerme, conformado, bestificado, só esperando a vacina ou a morte chegar.
Silenciaram os panelaços. Não me pedem mais para assinar manifestos. As lives e videoconferências se tornaram repetitivas.
Os grupos de zap-zap foram murchando, os telefonemas e e-mails rareando, as más notícias se multiplicando, meus amigos morrendo, sem sinais de terra à vista.
Se não fossem os sons das motos dos entregadores zunindo de um lado para outro , a trilha sonora da quarentena que virou centocinquentena , das crianças brincando no jardim do prédio vizinho, dos aviões passando aqui por cima, do caminhão de lixo da meia-noite, da polifonia da televisão, acho que eu iria enlouquecer, achando que eu caí do mundo.
É o que ainda me mantém ligado à vida, assim como essa coluna, que continuo escrevendo todos os dias, porque vivo disso, e para mostrar que ainda estou vivo.
Confesso, porém, que já não sei mais nem o que dizer diante das tantas barbaridades diárias que se transformaram no “novo normal”, o conjunto de sandices e mentiras de um tempo anormal.
Nesse meio tempo, tudo virou fake, irreal, surreal, banalizando o absurdo, um filme de terror sem fim.
São muitas pandemias ao mesmo tempo _ sanitárias, políticas, econômicas, sociais _ sem deixar espaço para a esperança.
Os dias são todos iguais, sem graça, só cumprindo tabela. A esperança cansou de esperar.
Até o futebol perdeu o encanto, com os estádios vazios, como se fosse um jogo de videogame.
Os robôs e os algoritmos ocuparam o lugar das pessoas de carne e osso.
Aqui mesmo no Balaio, pela primeira vez em 12 anos no ar, siglas, senhas, alcunhas e codinomes ocuparam o lugar dos nomes dos leitores. Já não sei mais com quem estou falando.
Se e quando minha filha Carolina me autorizar a sair do cativeiro, tenho medo desse novo mundo que vou encontrar na rua.
Sou de um tempo em que as pessoas se abraçavam e se beijavam sem medo, sem máscaras e proteções de acrílico.
Estou começando a achar que meu tempo passou e não tem mais volta.
E o que estão achando de tudo isso os caros leitores e leitoras?
Vida que segue. .
RICARDO KOTSCHO ” BALAIO DO KOTSCHO” ( BRASIL)