Defensor ardoroso do patriotismo e da instituição familiar, Jair Bolsonaro uniu o útil ao agradável. Ensinou aos seus garotos, desde o berço, o valor do amor à pátria. Assim que cresceram, os rapazes seguiram o exemplo do pai. Casaram-se com a pátria e foram morar no déficit público. De rachadinha em rachadinha, os Bolsonaro fizeram do erário uma prótese de suas casas.
Em visita aos arquivos da Câmara, os repórteres Ranier Bragon e Camila Mattoso descobriram que a folha salarial do gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro tem uma aparência bem rachadona. Nos seus 28 anos de mandato parlamentar, o agora presidente praticou esquisitices insondáveis.
Por exemplo: assessores eram demitidos e recontratados no mesmo dia. Nas rescisões de fancaria, beliscavam 13º proporcional, indenização e férias. Da noite para o dia, remunerações dobravam, triplicavam e até quadruplicavam. Súbito, caíam a menos da metade.
Transferidos de pai para filho, pelo menos nove auxiliares de Bolsonaro viraram assessores do primogênito Flávio na época em que o hoje senador dava expediente como deputado estadual, na Assembleia Legislativa do Rio. Todos tiveram o sigilo bancário quebrado no caso da rachadinha, eufemismo para roubo de nacos de salários pagos pelo contribuinte.
No momento, além de Flávio, também o vereador Carlos Bolsonaro encontra-se sob investigação por suspeita de empregar fantasmas em seu gabinete na Câmara Municipal do Rio. No ano passado, o Globo revelou: desde a década de 90, engancharam-se nos mandatos do patriarca Jair e dos filhos Flávio, Eduardo e Carlos 102 pessoas com algum parentesco entre si, em 32 núcleos familiares.
As perversões se interconectam. Carlos, o primeiro vereador federal da história, empregou parentes da ex-mulher de Jair. Operador da rachadinha de Flávio, o amigo Fabrício Queiroz repassou R$ 24 mil para a hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Os bolsonaristas costumam menosprezar os detritos quando eles aparecem sob o tapete da primeira-família. Perguntam: E a corrupção bilionária do PT? Quando Queiroz virou um personagem de fama nacional, no final de 2018, o general Augusto Heleno disse numa entrevista a Pedro Bial:
“O presidente tá isento disso aí. O que apareceu dele é irrisório, uma quantia pequena, e ele mesmo já explicou.” Referia-se à alegação inconvincente de Bolsonaro segundo a qual os R$ 24 mil gotejados na conta de sua mulher referiam-se a parte do pagamento de um hipotético empréstimo de R$ 40 mil que fizera a Queiroz.
Já se passou mais de um ano e meio. E Queiroz, agora preso em Bangu 8, ainda não explicou por que precisaria pedir dinheiro emprestado a Bolsonaro numa época em que ostentava em sua conta bancária movimentação de R$ 1,2 milhão.
Na prática, o que os bolsonaristas fazem ao tentar defender o mito e seus filhos é sobrepor a imagem do “troco” à dos “bilhões”. O argumento ganha uma ossatura antropológica quando visto sob a ótica de um clássico: o “Sermão do Bom Ladrão”, do padre Antônio Vieira.
Conta Vieira a certa altura que, navegando em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os pescadores.
Alexandre repreendeu o pirata. E ele replicou: “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?”
Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, que serviu em Roma como conselheiro de Nero, Vieira arremata seu raciocínio: se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos —rei, ladrão e pirata— merecem o mesmo nome.
Quer dizer: morder nacos do salário de assessores e desviar bilhões das arcas da Petrobras são irrupções de um mesmo fenômeno. O tamanho do desvio importa pouco. De troco em troco também se chega ao bilhão. E quem se desonra no pouco mais facilmente o fará no muito.
Durante a campanha presidencial de 2018, Bolsonaro imaginou-se numa guerra do bem contra o mal. Cobrou dos adversários um comportamento de mulher de César. Pouco antes de sentar-se no trono, Bolsonaro reagiu ao escândalo da rachadinha assim: “Se algo estiver errado —seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz— que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém.”
Dias atrás, quando ainda encenava arroubos no cercadinho do Alvorada, Bolsonaro proclamou: “Eu sou a Constituição!” Versão tupiniquim do célebre “l’État c’est moi!”, a declaração insinua que o presidente traz o patrimonialismo enterrado na alma. Os Bolsonaro não se sentem homens públicos. A pátria é que lhes atrapalha no gerenciamento do empreendimento familiar.
JOSIAS DE SOUZA ” SITE DO UOL” ( BRASIL)