Nos meses seguintes, o medo destruiu Serra. Pediu demissão do Ministério das Relações Exteriores, para o qual fora indicado por Michel Temer. Teve ataques de depressão. Às vezes apresentava melhoras, coincidindo com ofensivas do MPF barradas em outras instâncias.
Peça 1 – Verônica conhece Marcos Galperin
Em fins dos anos 90, Verônica Serra, a filha de José Serra, apareceu no mercado paulista trazendo a tiracolo o argentino Marcos Galperin. Era novata no novo mercado de tecnologia e não aparentava conhecimento maior sobre a área.
Galperin chegou ao Brasil cheio de ideias. Inicialmente, apresentou um projeto de cidades inteligentes. Não avançou. Tempos depois, desenvolveu um banco eletrônico, o Patagon. Sempre com Verônica como assessora para contatos políticos e de mercado.
Surpreendentemente, o Banco Santander – que havia acabado de adquirir o Banespa – ofereceu pelo banco a inacreditável quantia de US$ 750 milhões.
Na época, um dos sócios do Patagon, que possuía 10% do capital, preparava-se para pedir US$ 7 milhões por sua parte. Antes que fizesse a oferta, Bottin ofereceu US$ 75 milhões.
Não fazia sentido. Patagon era apenas um sistema de computador. Não tinha clientela considerável. Além disso, o próprio Santander já dispunha de um sistema desenvolvido, o Open Bank. Qual a lógica?
Peça 2 – o Santander mantém as contas públicas no Banespa
Na época, o Santander havia comprado o Banespa. Mas havia um empecilho no seu caminho. A legislação determinava que contas públicas só poderiam ser administradas por bancos públicos. Com a privatização, o Banespa deixara de ser banco público.
Em fins de novembro de 2000, escrevi em minha coluna na Folha:
Banespa e Santander
Um dos grandes mercados do Banespa são as prefeituras de São Paulo. Ocorre que a Constituição é clara. No parágrafo 3º do artigo 194, diz que: “As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no BC, e as dos Estados, Distrito Federal e municípios, em instituições financeiras oficiais”.
Por esse artigo, não poderia manter sequer as contas dos salários do Estado e da prefeitura. Na época, fui procurado por Miguel Jorge, diretor de relações institucionais do banco, que marcou um almoço com o presidente. Nele, ficou clara a preocupação do Santander com a possibilidade de perdas das contas públicas.
Dois pontos chamaram a atenção.
- O Santander não iria adquirir o Banespa sem a garantia de manutenção das contas públicas.
- A única garantia poderia ser dada pelo governo federal.
- Pouco antes, adquiriu a Patagon por US$ 750 milhões.
- A Patagon era assessorada pela filha de José Serra, Ministro do Planejamento de Fernando Henrique Cardoso e figura maior no PSDB.
- Pode ser coincidência. Mas não há outra explicação até agora para o lance de US$ 750 milhões pela Patagon. Algum tempo depois, o Santander pagou R$ 5 milhões para os argentinos receberem a Patagon de volta.
Hoje em dia, a Patagon repousa em um computador desligado em um banco de investimento de São Paulo.
Peça 3 – o início do Mercado Livre
Com o dinheiro pago pelo Santander, Galperin turbinou sua aventura mais bem sucedida, o site de vendas Mercado Livre, criado em 2 de agosto do ano anterior. Verônica entrou na operação como consultora e saiu como investidora. Tornou-se sócia e diretora do Mercado Livre.
Em depoimento posterior a uma publicação argentina, Galperin recordava o início difícil em 1999, quando ele era um amador negociando com profissionais, com muitas dúvidas se conseguiria sobreviver e atrair capitais.
Este ano, a revista Forbes estimou sua fortuna em US$ 4,2 bilhões. Mérito próprio, de quem se tornou o mais bem sucedido homem de tecnologia da América Latina. Mas o tiro de partida foi a venda da Patagon.
Peça 4 – a lavagem de dinheiro
Há tempos se sabia do uso de Verônica por José Serra. No final de seu governo, em São Paulo, Serra transferiu para a Serasa-Experian o Cadin estadual. No início do ano seguinte, Verônica se tornou sócia da Virid, um portal de e-mal marketing. Pouco depois vendeu para a Experian – grupo inglês que havia adquirido a Serasa, por 6 vezes o valor pago. O valor final chegou a R$ 120 milhões.
Com ações na Bolsa de Londres, a Experian se negou a informar oficialmente o preço pago, alegando que o valor era sigiloso.
Anos atrás, quando foi confiscado o celular de Marcelo Odebrecht, a Lava Jato de Curitiba vazou sua agenda, mas com uma tarja preta em cima de um dos compromissos. O trabalho foi mal-feito e permitiu que, pela Internet, alguém raspasse a faixa e espalhasse a agenda suprimida. Justamente uma reunião de Serra e Marcelo Odebrecht no escritório de Verônica.
Tempos depois, a Suíça identificou depósitos de Serra por lá e pediu informações ao Ministério Público Federal. O procurador Rodrigo De Grandis manteve o pedido em sua gaveta por muito tempo, gerando um escândalo na época.
Depois, decisões do Supremo Tribunal Federal e parecer da então Procurador Geral Raquel Dodge consideraram prescritos os casos.
Mas o MPF de São Paulo continuou tentando obter os documentos suíços. Ao mesmo tempo, avançavam as delações da Odebrecht, chegando a Pedro Novis, o contato de Serra na Odebrecht.
Segundo relatou a repórter Bela Megale, de O Globo, em 2016 houve uma reunião em que Serra desmanchou-se em lágrimas, implorando para não concretizar a delação, pois “destruiria a minha vida”.
Nos meses seguintes, o medo destruiu Serra. Pediu demissão do Ministério das Relações Exteriores, para o qual fora indicado por Michel Temer. Teve ataques de depressão. Às vezes apresentava melhoras, coincidindo com ofensivas do MPF barradas em outras instâncias.
Até que explodiu a autorização para busca e apreensão em sua casa, na da ex-esposa, nas de Verônica e do banqueiro Ronaldo César Coelho, considerado desde sempre seu tesoureiro informal de campanha.
Segundo a denúncia do MPF, havia uma rede de offshores intermediadas por José Amaro da Silva Ramos. Ele se tornou o principal lobista do PSDB por relações pessoais com Fernando Henrique Cardoso, de quem foi colega na USP. Atuava como representante da indústria de armas francesa e também como lobista do submarino nuclear brasileiro.
A Odebrecht admitiu que parte dos pagamentos para Amaro se destinava a Serra.
Peça 5 – o envolvimento de Serra
Aqui, trechos da denúncia:
O conhecimento de JOSÉ SERRA acerca dos diversos interesses da ODEBRECHT no Estado de São Paulo ficam evidentes nos e-mails trocados por executivos da ODEBRECHT, nos quais estes, por diversas vezes, levaram a SERRA problemas enfrentados em assuntos relacionados à DERSA, tendo tratado várias vezes sobre questões específicas do Rodoanel com os altos executivos da empreiteira.
(…) 5.3. Segundo Pedro Novis, nesta oportunidade, JOSÉ SERRA entregou-lhe em mãos o número de uma conta (em nome da offshore CIRCLE), indicando que seria por meio dela que deveriam ser pagos os valores acordados6 .
(…) 6. Tais pagamentos mostraram-se uma contrapartida ao atendimento de interesses diversos da ODEBRECHT naquele período, atinentes a diversas obras que a empreiteira realizava no Estado de São Paulo. E dentre esses interesses atendidos, em específico, estava a repactuação do contrato n° 3584/2006, relativo às obras do Rodoanel Sul de São Paulo, de maneira a minorar o impacto do decreto estadual nº 51.473, bem como o não oferecimento de dificuldades no curso da execução da mesma obra.9
(…) 6.1. Segundo os colaboradores Arnaldo Cumplido, Benedicto Barbosa da Silva Júnior, Carlos Armando Guedes Paschoal, Luiz Eduardo da Rocha Soares, Roberto Cumplido, Fábio Andreani Galdolfo e Pedro Augusto Ribeiro Novis10 as empreiteiras ANDRADE GUTIERREZ, CAMARGO CORRÊA, CR ALMEIDA, GALVÃO ENGENHARIA, MENDES JUNIOR, OAS, QUEIROZ GALVÃO, SERVENG CIVILSAN e a própria ODEBRECHT estabeleceram, entre 2004 e 2005, um cartel voltado a fraudar o caráter competitivo da licitação pertinente à construção do Rodoanel Sul paulista, por meio da prévia divisão, entre elas, dos cinco lotes dessa obra.
(…) 6.6. Após a publicação do edital de qualificação, as cinco empreiteiras originalmente cartelizadas decidiram conversar, também, com as demais interessadas na obra (nomeadamente, a MENDES JUNIOR, a SERVENG, a CR ALMEIDA, a CONSTRAN e a GALVÃO ENGENHARIA). E feito o convite, foram formados consórcios em duplas, capitaneadas pelas cinco empreiteiras do cartel originário13 .
(…) 6.10. De fato, no começo de 2007, PAULO VIEIRA DE SOUZA, que já era Diretor de Relações Institucionais da DERSA e viria, logo depois, a suceder MÁRIO RODRIGUES JÚNIOR na Diretoria de Engenharia da estatal, procurou Roberto Cumplido e informou que JOSÉ SERRA, recém-empossado Governador do Estado, expedira um decreto determinando a renegociação de todos os contratos públicos firmados na Administração anterior, o que imporia uma discussão em torno, entre outros, dos contratos relativos ao Rodoanel Sul.
(…) Ou seja, além da propina arrecadada para si, PAULO VIEIRA era, também, um emissário de agentes políticos no Estado de São Paulo, chegando a ter dado evidências de que agia em nome de JOSÉ SERRA e subordinados seus, como ALOYSIO NUNES FERREIRA. Por exemplo, segundo Carlos Henrique Barbosa Lemos (então executivo da OAS)16, ao ser posto em dúvida quanto a sua real interlocução com o alto escalão do governo, PAULO VIEIRA agendou uma reunião das empreiteiras no Palácio dos Bandeirantes, da qual ALOYSIO NUNES também participaria. E nela, ALOYSIO NUNES acabou seguindo exatamente a ordem de assuntos que PAULO VIEIRA DE SOUZA antecipara às empreiteiras que seria seguida, com o que todos se convenceram de que ele, de fato, era um emissário, e assim passaram a realizar os pagamentos por ele solicitados.
Peça 6 – o envolvimento de Verônica Serra
Uma das maneiras de Serra lavar dinheiro era através de obras de arte. Pessoas que o visitaram em sua casa ficavam impressionadas com a quantidade de obras existentes.
No relatório do MPF, há a seguinte menção:
26.1. Por exemplo, a HEXAGON TECHNICAL COMPANY S.A.61, ligada a JOSÉ AMARO, realizou uma transferência, e m 31/03/2006, de nada menos que 326.000,00 euros em favor da DORTMUND INTERNATIONAL (com a chamativa anotação “Four Portinari Acquisitions”)62 .
Através de Dortmund se chegou a Verônica Serra.
Pelo levantamento minucioso enviado pelo Ministério Público da Suíça, descobriu que a Sofidest Fiduciare SA, sócia da Circle, tinha como sócio José Amaro Ramos.
Há uma enorme relação de pagamentos feitos pela Circle para o Dortmund, através do Corner Bank.
O inquérito apurou que a Dortmund International Inc era controlada de fato por Verônica Serra. Foi criada no Panamá, em 05.12.2003 e era representada por um uruguaio, Herrera Villareal.
As investigações mostraram que o Banco Arner – onde se davam as transações – tratava Verônica Serra como “pessoa politicamente exposta no Brasil”, devido ao seu parentesco com José Serra.
A Dortmund era uma empresa com capital de apenas US$ 10.000,00, e atuava como segunda camada de lavagem de dinheiro. Entre 2006 e 2007 recebeu 936 mil euros de três empresas de José Amaro Ramos – que, por sua vez, recebia os valores da Odebrecht.
A última camada de lavagem foi a empresa Ficus Capital e a Illumina Capital Management SA, e, finalmente, para a Citadel Financial Advisory, em uma cadeia que se estendeu até 23 de setembro de 2014.
Peça 7 – antes tarde que mais tarde
A investigação só foi possível porque, antes dela, já havia se encerrado a era José Serra. O que comprova que a Lava Jato, através de suas diversas instâncias, se valia de um fator essencial de atuação política disfarçada: o fator tempo.
No caso de Serra, as investigações só avançaram no bojo da delação da JBS, a partir da qual o Procurador Geral Rodrigo Janot resolveu partir para quebrar, incomodado com as críticas severas que recebia de figuras referenciais do Ministério Público Federal, escandalizadas com o facciosismo das investigações.
Assim como Serra, Aécio Neves manteve-se blindado. Dia desses, Fernando Henrique Cardoso repetia, em um canal de TV, que o PSDB tinha também seus defeitos mas não houve nenhum caso de enriquecimento ilícito.
Agora, falta apenas Aécio Neves. FHC foi poupado pelos mesmos “crimes” imputados a Lula. A partidarização da Lava Jato o salvou.
Antes da morte política de Serra, chegava ao fim o modelo político pós-constituinte, pelo fracasso absoluto das principais lideranças, tanto Serra, Aécio e FHC, aderindo ao discurso de ódio, quanto Lula e Dirceu aderindo à real politik do presidencialismo de coalizão.
Gnomos que nem Michel Temer, pigmeus como Sérgio Moro, a Hidra de Lerna do bolsonarismo, foram apenas parasitas que cresceram nas entranhas de um modelo político que havia apodrecido.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)