QUEM PODE CONTER A DANAÇÃO EXTERNA DO BRASIL ?

CHARGE DE DUKE

Na cúpula virtual do Mercosul, nesta quinta-feira, Bolsonaro recaiu em sua autenticidade conflitiva, que no plano interno vem trocando pela forçada fantasia de “moderado e contido”, ao lançar farpas contra o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, que em tom conciliador, pregara a união dos vizinhos “acima das ideologias”. Sabemos que o figurino moderado pode ser descartado a qualquer hora, e que ele passou a envergá-lo para salvar seu governo da rejeição crescente, do fracasso sanitário-econômico-social e dos riscos de impedimento por crimes diversos.

Há um drama particular em relação à política externa de Bolsonaro-Araújo: se a sociedade e as instituições foram capazes de repelir as ameaças golpistas, se Congresso e Supremo têm atuado “freios e contrapesos” para conter abusos e corrigir erros em várias áreas, o mesmo não tem sido feito em relação à política externa.

Esta observação vem do ex-chanceler Celso Amorim, consternado com a destruição das tradições diplomáticas do Brasil e com a degradação da imagem externa do país.

Na cúpula desta quinta-feira, os parceiros Uruguai, Paraguai e Argentina foram generosos com o Brasil (e indulgentes para com Bolsonaro), poupando referências, no documento final,  ao descontrole sanitário do Brasil, segundo epicentro global da pandemia, embora estejam assustados e lutando nas fronteiras contra a propagação do vírus.  Já Bolsonaro não deixou de cutucar Fernandez, que hostilizou quando era candidato, tendo criticado o “erro” do povo argentino por elegê-lo. Na posse, mandou Mourão depois de ensaiar uma ostensiva ausência do Brasil.

No primeiro tête-a-tête que tiveram, embora virtual, num encontro com forte ênfase na cooperação para enfrentar as agruras de agora e as que ainda virão, Bolsonaro fustigou Fernandes primeiramente ao criticar o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, que a Argentina reconhece como presidente legítimo, ao passo que o Brasil reconhece o governo autoproclamado de Juan Guaidó. Lamentou ainda que a presidente imposta pelo golpe na Bolívia contra Evo Morales, Jeanine Arbez, não tenha participado mais intensamente dos trabalhos do Mercosul nos últimos meses, lembrando que Morales está exilado na Argentina. O governo de Fernandez, além de abrigá-lo, não reconhece o governo de Arbez. A Bolívia, entretanto, é apenas membro associado do Mercosul, e para tornar-se membro pleno, enfrentaria o  questionamento argentino no tocante à cláusula democrática.

E assim caminha a política externa: conflitos com o principal vizinho e parceiro comercial na América do Sul, servidão aos Estados Unidos, reprovação global à política ambiental, sanitária e de direitos humanos, com riscos para aprovação do acordo Mercosul-União Europeia, sem falar na ridicularização  do próprio Bolsonaro, por seu negacionismo, seu golpismo latente e sua rusticidade.

Assim segue a política externa, que ninguém controla, que não depende do Congresso, que não é objeto de recursos ao STF, como diz Amorim.

“Como ex-chanceler em três mandatos presidenciais e como diplomata com cinquenta anos de carreira sinto-me  especialmente preocupado. É que nessa frente,  ao contrário do que ocorre em relação a outros temas, não parece funcionar minimamente o que nos resta dos célebres “pesos e contrapesos” (checks and balances), que, bem ou mal,  têm podido conter parte do furor anticivilizatório do atual governo. Não há, em relação aos desmandos na área internacional, o equivalente à devolução, pelo presidente do Senado, de uma medida provisória que viola a autonomia universitária. Ou a uma decisão do STF que restabelece a autoridade de governadores e prefeitos em matéria de política sanitária. Só me recordo de uma exceção a esta regra: a suspensão da expulsão dos diplomatas venezuelanos por um ministro do Supremo, em resposta a um habeas corpus impetrado pelo Deputado Paulo Pimenta. Mesmo assim, porque, além da violação de normas do Direito Diplomático, estavam em jogo graves questões humanitárias, decorrentes da pandemia”.

Sobre este último ponto ele recorda que “nem mesmo a decisão, totalmente contrária ao senso comum, que precedeu a tentativa de expulsão dos diplomatas venezuelanos  –  a retirada de nossos diplomatas da Venezuela, deixando desprotegidos nossos concidadãos que lá estavam ou lá vivem (sem falar em nosso interesse em evitar conflitos na nossa fronteira) -, foi confrontada com alguma ação legislativa ou judicial”.

O conjunto de atitudes, ações e declarações do atual governo, no campo das relações bilaterais ou multilaterais, que solapam a confiança no Brasil, diz Amorim, “inevitavelmente terá consequências para nossa economia, para o bem estar do nosso povo, ameaçando a vida de milhares de brasileiros”. 

Quando o pesadelo passar,  diz ainda, nossos diplomatas vão se deparar com uma realidade que nunca enfrentamos antes, nem mesmo após a ditadura militar. Diferentemente daquele período sombrio, não haverá desculpas para explicar nossa anomalia: nem guerra fria, nem autoritarismo oriundo de um golpe de força. “A destruição, proclamada pelo presidente e por ele levada a cabo, com a participação ativa do seu ministro das Relações Exteriores, terá alcançado seu objetivo e tido seu efeito devastador.”

O trunfo maior de um país na área internacional é a credibilidade. E esta, diz Amorim, implica em coerência de princípios, respeito pelos interlocutores e pelas normas, firmeza de atitudes e, sobretudo, independência na tomada de decisões. “São necessários anos para construir uma reputação, através do reconhecimento destes atributos. Por isso a reconstrução será árdua e lenta”.

Em 2009, o jornalista especializado em política externa David Rothkofp escreveu o já muito citado artigo na revista Foreign Policy, em que chamou Celso Amorim de “o melhor chanceler do mundo”. Depois de enumerar feitos diplomáticos que mudaram a percepção internacional do Brasil – como a construção dos Brics, do G-20 e da relação estratégica com a China, entre outros – e de reconhecer o papel de Lula, com sua “energia, disposição, carisma, intuição e um senso comum tão eficaz, sem que a falta de educação formal fosse empecilho”  – ele justifica o elogio a Amorim: “É difícil pensar em outro chanceler que tenha tão eficazmente orquestrado uma mudança tão significativa no papel internacional de seu país. E se alguém pedisse hoje que eu votasse no melhor chanceler do mundo, meu voto provavelmente iria para Celso Amorim”.

Não sei se o voto dele iria para Araújo, se lhe fosse pedido para votar no pior chanceler do mundo. Nos últimos dias, circularam rumores de que Bolsonaro, depois de livrar-se de Weintraub, que tanto mal fez à Educação, estaria pensando em trocar o ministro das Relações Exteriores e também o do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

O último, entretanto, tem mais chances de ser defenestrado. Ele mesmo estaria dizendo-se cansado da pasta e externando o desejo de ocupar outra função no Governo. Sabe que a má reputação do Brasil em matéria de política ambiental chegou ao fundo do poço. Tanto é que, na cúpula virtual do Mercosul, Bolsonaro prometeu que o governo fará um trabalho intenso para “corrigir as opiniões distorcidas” sobre o Brasil, mostrando o que tem sido feito pela Amazônia e pelos índios. Índios que, por sinal, o governo está deixando morrer como moscas, atacados pela Covid19, sem uma política específica de proteção.

E falava isso aos parceiros do Mercosul porque o bloco pode ter o acordo comercial com a União Europeia, que custou 20 anos de negociação, comprometido pela postura criminosa do Brasil em relação ao desmatamento. Macron, presidente da França com quem Bolsonaro já brigou, é um dos que se opõe à assinatura final se o Brasil não tomar jeito. Irlanda, Áustria e Holanda são outros países cujos parlamentos podem não chancelar o acordo. Fundos globais que controlam mais de três bilhões de dólares também emitiram comunicado sobre a dificuldade em investir no Brasil diante de suas condutas ambientais. E Salles é visto, mundialmente, como o maior responsável pelo desastre, principalmente depois que ele propôs que o governo passasse a boiada, desregulando o setor, enquanto imprensa e sociedade estavam ocupados com a pandemia.

Em relação ao meio ambiente, as reações e represálias começam a funcionar como uma espécie de controle externo.

Já em relação à política externa, Amorim tem razão: se as instituições internas não têm interferido na marcha insensata, a comunidade internacional pode apenas ir rebaixando o conceito e a credibilidade do país. Se Bolsonaro não vai cair antes de 2022, como hoje a conjuntura indica (embora ela possa mudar), ate lá os danos causados pela política externa podem se tornar diluvianos. 

TEREZA CRUVINEL ” BLOG 247″ ( BRASIL)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *