POR QUE A LUTA DOS ENTREGADORES É TAMBÉM NOSSA ?

CHARGE DE NALDO MOTTA

As condições de trabalho dos entregadores de aplicativo ganhou visibilidade social nas últimas semanas devido às suas manifestações e ao anúncio de greve de entregadores de aplicativo marcada para quarta-feira, primeiro de julho. Cabe às pessoas solidárias a essa causa procurar buscar a ampliação do entendimento sobre esse fenômeno social. Ele expressa um processo mais ampliado de informalização e precarização do trabalho que atinge bem mais do que somente os entregadores. Atinge a sua vida, a nossa vida. 

Embora este texto não seja acadêmico, busca agir como divulgador de pesquisas que tem sido realizadas em Universidades sobre esse tema. Quero convidar o leitor a pesquisar sobre o Grupo da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR), que entre outras pesquisas, entrevistou entregadores de aplicativo durante a pandemia. As referências do artigo deles vão ficar aqui ao final do texto. Mas chamo atenção para o que me parece ser a principal descoberta dessa pesquisa. 

Durante a pandemia, houve um aumento da demanda das pessoas por entregas, pois esse serviço é essencial em tempos de isolamento.  Isso aumentou a jornada de trabalho dos entregadores, mas reduziu a sua remuneração. Ou seja, aumentou o trabalho, aumentou o risco e reduziu os rendimentos. Esse é um saldo amargo da precariedade que motiva o breque dos aplicativos dessa semana.  

Embora esse seja um primeiro fato que surge nesse movimento, ele é muito mais complexo que isso. A informalidade não se restringe só a entregadores de aplicativo, nem tampouco o problema é só de baixa remuneração. O que está em curso são profundas transformações nas relações de trabalho. Tem se falado na inauguração mesmo de uma nova era, que tem sido chamada de Uberização do trabalhador, pois coincide com a ampliação da atuação da empresa UBER no mundo e particularmente no Brasil, embora não se refira somente às atividades dessa empresa. 

A pesquisadora da UNICAMP Ludmila Costhek Abílio destacou quatro aspectos desse fenômeno mais geral de informalização do emprego mediado por aplicativos, que já atinge 17 milhões de pessoas no Brasil, segundo o Instituto Locomotiva. O primeiro tem a ver com o que pode ser chamado de empresariamento de si, o segundo se refere a um chamado gerenciamento do trabalho por algoritmos, o terceiro se refere a multidão como gerente e avaliadora do desempenho do serviço prestado pelo “colaborador”, e o quarto tem a ver com a conversão de um valor de identidade profissional em um trabalho amador, que eu me permito chamar de institucionalização do bico. 

*Empresário de si, só que não*

A ideia da autonomia da pessoa é a grande sedução do trabalho por aplicativo. Trabalhe a hora que quiser, não tenha patrão, faça o seu tempo. Seja um empresário de si. Essa ideia é potente, e aliada com a falta de empregos formais, tem atraído cada vez mais pessoas para o trabalho com aplicativos. No entanto, essa ideia sedutora esconde uma armadilha e um controle mais perverso do que o já considerado antigo relógio ponto e a exigência de uma carga horaria fixa presencial num local físico definido. 

Para que se possa obter uma remuneração minimamente capaz de sustentar a si e a família, o empresário de si precisa trabalhar longas jornadas. Deve assumir todos os riscos dessa jornada, relacionados a sua saúde e aos equipamentos que precisa usar, como bicicleta, moto, carro. Nessa modalidade, o trabalhador fica com todos os riscos, e uma remuneração cada vez mais diminuta.

*Os algoritmos são os novos gerentes*

A palavra “algoritmo” entrou de vez no vocabulário contemporâneo. Pouco sabemos como funciona, mas tem um poder gerencial enorme nas relações nas redes sociais. e são justamente esses misteriosos algoritmos que passam a gerenciar as atividades dos prestadores de serviço por aplicativo. Esse novo gerente não demite nem contrata. Não exige uma entrevista, ou um concurso para admitir ninguém. Quer aderir? Preencha um cadastro, faça um login. 

Essa facilidade também esconde uma perversidade. O usuário do aplicativo, que não foi contratado, não sabe também quando irá trabalhar, nem quando será dispensado. Isso cria cenas lamentáveis como jovens que ficam dormindo em praças públicas das grandes cidades esperando que os algoritmos lhe ofereçam uma entrega para ganhar uns trocados. Ou motoristas de carros que ficam horas esperando uma corrida, e assim por diante. A gestão por algoritmos acaba sendo uma faceta perversa dessa realidade imposta ao mundo do trabalho. 

*As estrelinhas que podem bloquear*

A lógica introduzida nas redes sociais das interações por meio de curtidas ou manifestações de desaprovação de uma postagem, são convertida em método de avaliação da qualidade de um serviço prestado. É comum nas grandes cidades avaliar o serviço prestado por aplicativos com as famosas estrelinhas. Outra ideia sedutora dessa modalidade de economia. O consumidor avalia o serviço prestado, isso parece bom. Mas novamente essa ideia sedutora esconde sua face de perversão. 

Essa avaliação do consumidor é usada pelo aplicativo sem critérios transparentes e o prestador de serviço pode simplesmente ser bloqueado de receber serviços com base nessa avaliação. Isso é pior do que a demissão. Muitas vezes, a pessoa simplesmente passa a não receber mais entregas ou corridas, tendo ficado horas parada esperando até perceber que algo errado aconteceu. Tentará saber o que aconteceu, e receberá respostas automáticas, por robôs sem rosto. Terá sido descartado sem possibilidade de defesa. Justiça? Critérios? Nada disso. O trabalhador vira um número, que sera usado e descartado a qualquer momento, ao sabor de critérios que ninguém sabe ao certo como funcionam.

*A novidade é o bico*

Por fim, essa lógica de adesão sem formalidade introduz a ideia do elogio do amadorismo, ou do popular “bico”. A ética de uma identidade profissional, que demanda preparo para o exercício de uma atividade, muitas vezes em longos anos numa Universidade ou outros centro de formação, passa a ser descartada. Não requer prática nem tampouco habilidade. Quer aderir, venha. Isso também é sedutor, mas é outra face da perversidade. O “novo normal” é criar uma multidão de pessoas prestando serviços sem um treinamento mínimo, ganhando pouco e podendo ser descartadas a qualquer momento? Esse é  futuro que queremos para nossa sociedade?

As questões levantadas aqui procuram ampliar o entendimento geral sobre debates que já ocorrem nas Universidades e são vividas cotidianamente por milhões de pessoas, e que se apresentam como um futuro aparentemente sedutor, mas que esconde precariedade para o mundo do trabalho. A greve dos entregadores de aplicativo que ocorre essa semana é um sinal de alerta sobre um fenômeno de imensa gravidade, que atinge muito mais gente do que somente os entregadores de aplicativo. A chamada uberização vem se afirmando como uma nova lógica de gestão do trabalho, estendida para a maioria dos profissionais. Preste atenção. A luta dos entregadores é também a nossa luta. Entender essa conexão é fundamental para travar a luta de classes no século XXI.

Referências: 

ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

ABILIO, Ludmila. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, abr.2020.

ABÍLIO, Ludmila  Costhek;  ALMEIDA,  Paulo  Freitas;  AMORIM,  Henrique;  CARDOSO,  Ana  Claudia  Moreira;  FONSECA, Vanessa Patriota da; KALIL, Renan Bernardi; MACHADO, Sidnei. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, EDIÇÃO ESPECIAL – DOSSIÊ COVID-19, p. 1-21, 2020.

IGOR PEREIRA ” BLOG 247″ ( BRASIL)

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Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestrando em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.

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