Que o presidente Jair Bolsonaro é ciclotímico e se comporta meio que como a biruta, mudando de estado de espírito conforme o vento sopra, já sabíamos desde sua primeira eleição, em 1990, a deputado federal pelo PDC-RJ (1991-95). Na reeleição seguinte já vestiu a camisa do PPR-RJ). Transitou pelo PTB, 2003 – 2005; PFL, 2005; PP, 2005 – 2016; PSC, 2016 – 2018; PSL, 2018, pelo qual foi eleito presidente, mas deixou a sigla em novembro do ano passado para fundar seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil. Recorro a essa rápida biografia partidária, caro leitor, para colocar em dúvida a mudança de comportamento do presidente da República, de lobo para cordeiro, em 30 dias.
De um presidente agressivo e raivoso, assumiu um comportamento calmo. Há uma semana aceitou, resignado, a demissão de Abraham Weintraub. Sua permanência à frente do Ministério da Educação ficou insustentável quando, mesmo após censura de todos os membros do Supremo Tribunal Federal às suas absurdas manifestações na reunião (?) ministerial de 22 de abril, tornada pública em 22 de maio, participou há dois domingos, sem máscara, de um ato em Brasília que pedia o fechamento do Congresso e do STF.
Vale lembrar que na véspera de deixar o cargo, em 18 de junho, e se evadir para Miami no rocambolesco episódio de entrada nos Estados Unidos, onde pretende ocupar em nome do Brasil, uma diretoria do Banco Mundial, Weintraub assinou portaria revogando as cotas para negros, índios e deficientes em programas de pós-graduação nas universidades federais. Uma semana depois, Bolsonaro empossa no MEC o professor Carlos Alberto Decotelli, o primeiro negro a ocupar uma vaga de ministro em seu governo.
Aparentemente, a troca de um soldado das hostes ultraradicais de Olavo de Carvalho, o guru de Virgínia (EUA) que era cultuado por Weintraub e os filhos 02 (o vereador Carlos Bolsonaro, Republicanos-RJ) e 03 (o deputado federal Eduardo Bolsonaro, PSL-SP) por alguém que mais do que a aceitação dos ministros militares teve o peso do aval explícito do ministro da Economia, Paulo Guedes. A importância do “Posto Ipiranga” como cabo eleitoral de Bolsonaro, foi inegável. Ajudou a vencer resistências dos liberais na campanha.
E, na montagem do governo, trouxe um trunfo para o ministério: a aceitação do convite, feito por Guedes, para o juiz da Lava-Jato, Sérgio Moro, assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública. O tempo mostrou que a convivência entre Moro e Bolsonaro nunca foi pacífica desde os primeiros meses de 2019. De um lado porque os ex-alunos online de Olavo de Carvalho, liderados pelos filhos 02 e 03, sempre viram em Moro uma futura sombra política para ameaçar o projeto de reeleição. De outro, por que sua recusa em submeter a Polícia Federal aos caprichos presidenciais criou praticamente um fosso entre Moro e a família Bolsonaro, direta ou indiretamente investigada, em várias frentes pelo MP do Rio de Janeiro e sua Polícia Civil, a PF e a PGR, acionada pelo STF.
A reunião de 22 de abril deixou claro que Bolsonaro “não estava para brincadeira” e que “não ia esperar f@§#%&* só de sacanagem minha família e amigos”. Moro caiu. Mas os inquéritos conduzidos no STF por Alexandre de Moraes contra as “fake news”, financiadores de blogs e manifestações radicais de bolsonaristas seguiram em frente”. No dia seguinte à uma razia da PF contra o grupo, com busca e apreensão de documentos que atingiram até deputados da base aliada, Bolsonaro pronunciou o que seria a célebre frase como um ultimato ao STF, com o suposto aval das Forças Armadas. Na mesma noite da ação da PF, o filho 03 chegou a cogitar, em “live”, a necessidade de medida enérgica” por parte do pai e falou em “momento de ruptura”, dizendo que a questão não é de “se”, mas de “quando” vai ocorrer.
No dia seguinte, em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro criticou fortemente a operação. Em um dos momentos, disse que “as coisas têm um limite”. “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações”. E acrescentou ameaçador: “Estou com as armas da democracia nas mãos”. Na visão do presidente as decisões do STF deviam ser tomadas pelo conjunto dos ministros, e não por um único.
No modo isolamento, desrespeitado pelo primeiro mandatário da República, que sempre emitiu sinais contrários às medidas de distanciamento social para combater o Covid-19 e evitou o uso de máscaras, o prolongamento da agonia da pandemia e dos seus reflexos na economia, no desemprego e na dramática perda de renda por boa parte da população, nos fazem perder a noção do tempo. Isso se reflete nas sucessivas extensões do isolamento (envolvendo até recuos, como em São Paulo e Belo Horizonte, mas não irresponsavelmente no Rio) porque novos casos e mortes não param de crescer. Ao tentar evitar a crise, negando isolamento, Bolsonaro a agravou e prolongou os efeitos da pandemia.
A agressiva fala de Bolsonaro completa exatamente um mês neste domingo. Os fatos posteriores mostraram coesão muito forte dos 11 ministros do STF, sobretudo após ameaças absurdas a Alexandre de Moraes e sua família. Houve progressivo recolhimento de linguagens e atitudes belicosas da parte do clã Bolsonaro, à medida que colecionavam reveses. Detenção de blogueiros e militantes radicais e a mais espetaculosa de todas as ações: a prisão do ex-faz-tudo da família Bolsonaro, o ex-PM Fabrício Queiroz, com notória ligação às milícias policiais no Rio de Janeiro, elogiadas pelo clã.
Seus serviços foram transferidos pelo pai ao filho mais velho, Flávio Bolsonaro e Queiroz virou lugar tenente do gabinete do deputado estadual (PSC-RJ). Lá montaram o esquema das rachadinhas, no qual funcionários nomeados com altos salários, mas sem exigência de cumprir expediente, devolviam boa parte dos vencimentos ao gabinete para uso diverso. Inquérito do MP-RJ, conduzido pelo juiz da 27ª Vara Criminal do TJ-RJ, viu no caso desvio de dinheiro público e possível estelionato. Mas o hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) conseguiu vitória esta semana no TJ-RJ, quando dois desembargadores consideraram que o caso deve ser remetido à 2ª Instância (o colégio de 25 desembargadores do TJ-RJ). A família comemorou discretamente. Uma súmula do STF foi ignorada por 2 x 1 na decisão da 3ª Câmara Criminal do Tribunal. E o pedido de anulação das provas já colhidas em 1ª instância foi negado. Há risco, portanto, de o processo voltar à 1ª Instância.
A bomba-relógio que deixou a família pianinho foi o encontro de Queiroz em Atibaia (SP) – sim no município do sítio que levou a uma condenação de Lula (em 2ª Instância) – numa casa do advogado Frederick Wassef, que alardeava ser defensor de Flávio e de Jair e era recebido até nos fins de semana no Palácio da Alvorada. Destituído, após a detenção, como advogado de Flávio (a vitória parcial no TJ-RJ foi dos novos defensores, advogados Rodrigo Roca e Luciana Pires), nem por isso o boquirroto Wassef calou a boca e vem contando histórias entre rocambolescas e assustadoras. Para a família.
Por esses fatos ou pelo empenho de Paulo Guedes, que chegou a cogitar abandonar o barco, mas esta semana deu várias demonstrações de renovar o seu aval ao governo Bolsonaro (bem visto pelos arredios investidores internacionais que consideram inadmissível o desprezo do governo ao Meio Ambiente), um 3º ministro da Educação, alheio à influência de Olavo de Carvalho, foi empossado. Carlos Alberto Decotelli conviveu com Guedes na privatização do Ibmec, no Rio de Janeiro, nos anos 90, num grupo integrado pelo atual presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco. E Guedes, cujas previsões para a economia falham desde o ano passado, se animou a dizer que o FMI vai errar na previsão da queda de 9,1% para o PIB do Brasil em 2020. Tomara que desta vez acerte e o estrago seja menor.
Na “live” semanal de 5ª feira, 25.06, Guedes deu força à ideia de Bolsonaro de prorrogar por mais três meses o Auxílio Emergencial, com redução mensal de R$ 100 frente aos atuais R$ 600. O impacto do AE foi tanto na sustentação da popularidade do presidente em rincões onde Lula e Dilma surfaram na onda do Bolsa Família, que Jair Bolsonaro deseja criar um programa de reforço à renda para chamar de seu, o Renda Brasil, com valor ainda em discussão. Trata-se de uma guinada tremenda em relação às convicções ultraliberais de Guedes, uma heresia para os cânones da Escola de Chicago.
Mas nestes tempos sombrios, o melhor é se agarrar a tábuas de salvação. E a mais promissora e possivelmente mais concreta é a da vacina contra o novo coronavírus, que está em desenvolvimento para ser reconhecida pela OMS. Ontem, o Brasil anunciou a assinatura de contrato de US$ 127 milhões para começar a produzir na Fiocruz uma vacina experimental desenvolvida pela AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford (Inglaterra). A Fiocruz produzirá inicialmente cerca de 30 milhões de doses da vacina, metade sendo entregue em dezembro e o restante em janeiro. É um alento para o 2º país mais afetado pela pandemia, com quase 1,3 milhão de casos (mais de 40 mil em 24 horas, com quase 700 mil recuperados) e mais de 56 mil mortos.
A propósito, fui pesquisar uma das possíveis razões para Jair Bolsonaro deixar o Ministério da Saúde sem um médico na chefia desde a saída em Nelson Teich, em 15 de maio, e entregar os cargos-chave da pasta a militares, chefiados do secretário-executivo, general Eduardo Pazuello.
Parece ser questão de coerência. Ao buscar projetos do então deputado Jair Bolsonaro encontrei a PEC 215 (Proposta de Emenda Constitucional), de 2003, que “possibilita aos militares dos Estados, Distrito Federal e dos Territórios a acumulação remunerada de cargo de professor, cargo técnico ou científico ou de cargo privativo de profissionais de saúde”. O alvo eram os bombeiros-militares que atuam em salvamento de emergência. E daí…
GILBERTO MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)