
Ibrahim Sued, que fez nome no colunismo social, costumava terminar suas edições diárias com o velho ditado árabe “Os cães ladram e a caravana passa”, para autocelebrar a ascensão social de “um turco pobre”, como gostava de se classificar. Outra máxima diz: “Cão que ladra não morde”. Pois eu, que já tive cachorros de todos os portes no sítio, quando me perguntavam: “Morde?”, dizia: ”Não, só quando fecha a boca”… O presidente Jair Bolsonaro e sua caravana de seguidores fanáticos precisam rosnar para causar medo. Mas, quando encontram uma reação à altura, se calam e ficam mansos.
Há duas semanas, antes de o Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição Federal, deflagrar, com anuência do Procurador Geral da República, Augusto Aras, os mandados de busca a apreensão junto a 30 seguidores do chamado Grupo dos 300, Bolsonaro insistia em animar sua claque com os brados de “ACABOU, porra”. No fim de semana passado, o acampamento dos 300 foi removido dos gramados da Esplanada dos Ministérios pela PM do Distrito Federal, no dia seguinte à vigília de parte do grupo que atirou fogos contra o STF. Vale dizer, atentaram contra a Constituição Federal.
Coincidência ou não, domingo passado não houve manifestação em Brasília com apoio ou comparecimento ao vivo do presidente. Duas semanas antes, insuflado por pareceres de juristas que interpretavam o Artigo 142 da CF, garantindo ao chefe do Executivo a prevalência sobre os demais poderes (Legislativo e Judiciário) na convocação das Forças Armadas, Jair Bolsonaro sobrevoou a Praça dos Três Poderes trazendo a bordo o ministro da Defesa, general de Exército Fernando Azevedo e Silva. Desceu e, ainda na euforia, montou um cavalo da PM do DF.
Coube ao decano do STF, Celso de Mello, liderar a reação em defesa da Constituição que foi defendida por grupos que saíram às ruas, antes supostamente monopólio dos apoiadores bolsonaristas que ignoravam, como o mentor e mito, as medidas de isolamento social. Tanto bastou para o presidente chamar os defensores da democracia de “terroristas”.
Durou pouco, porém, a reação raivosa. À medida que eram detidos os apoiadores do grupo bolsonarista que incitaram ações contra os membros do Supremo Tribunal Federal, como a ativista Sara Geromini, aquela cheia de convicções que em menos de cinco anos deu uma guinada de 180 graus – de ativista remunerada do grupo Femem virou bolsonarista de cartucheira e revolver a tiracolo, mas sem as máscaras obrigatórias no DF – esfriava o ímpeto do grupo. Mesmo quando o braço pesado da Justiça fechava o cerco sobre os 300 que eram 30 ganhou a irresponsável adesão do ministro da Educassão, o notório Abraham Weintraub, alvo de duas investigações do STF.
Coube ao próprio presidente reconhecer que não foi de bom alvitre (e Weintraub lá sabe o que é isso?) o comparecimento ao ato do ministro que se ocupava de tudo, menos de aplicar, nos 17 meses à frente da pasta, um programa para melhorar os níveis deploráveis da educação brasileira. Foi uma pisada na bola de Weintraub, que levou multa de R$ 2 mil do governo do DF.
O que são R$ 2 mil para quem pode ser indicado (após sua demissão na pasta só ser publicada no Diário Oficial da União de sexta-feira, quando já se encontrava em solo americano, em Miami, livre, temporariamente) para ocupar uma diretoria executiva no Banco Mundial, com salário de R$ 115 mil? No ministério, o salário básico era de quase R$ 31 mil.
Só que a alegria de Weintraub pode durar pouco. Primeiro, precisa ser aprovado pelos governos de oito outros países que são representados pelo Brasil, a saber: Colômbia, Equador, Trinidad e Tobago, Filipinas, Suriname, Haiti, República Dominicana e Panamá, em substituição a Fábio Kanksuck, que vai ser diretor de Política Econômica do Banco Central. A falta de apreço pelos negros e povos indígenas, atingidos em um de seus últimos atos como ministro, como a portaria que revoga o sistema de cotas para essas minorias em cursos de pós-graduação nas universidades federais, pode lhe custar caro.
Um grupo de 300 personalidades, lideradas pelo ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente embaixador Rubens Ricúpero, enviou carta às embaixadas destes países lembrando algumas posições deploráveis defendidas pelo postulante a representar o Brasil e nações onde o homem branco sempre foi opressor das populações nativas e dos negros escravizados. Se Weintraub conseguir, seu desempenho belicoso não recomendará a recondução ao posto.
A saída de Weintraub do governo tira pedra do sapato de Jair Bolsonaro, cortando uma frente de atrito, mas está longe de amolecer a mão pesada do Judiciário sobre as maracutaias da família presidencial. As prisões desta semana de assessores ligados ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), quando ainda era deputado estadual pelo Rio de Janeiro, culminando com a detenção, quinta-feira, 18 de junho, do ex-PM e faz tudo da família, Fabrício Queiroz, em sítio em Atibaia (SP). Seria triste se não fosse trágica a atração que Atibaia exerceu tanto para Lula como, indiretamente, para seu êmulo…
Queiroz estava sumido há quase um ano e tanto Flávio Bolsonaro, como seu pai, o ex-deputado federal Jair Bolsonaro, diziam não saber do paradeiro. Mas a Polícia de São Paulo, que executou a ordem do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do TJ-RJ, o encontrou num sítio que era também a “sede” de um escritório de advocacia de um personagem que diz advogar para ambos. Frederick Wassef circulava com desenvoltura tanto pelo Palácio do Planalto quanto pelo Alvorada, onde era recebido por Jair Bolsonaro nos fins de semana. Escritórios de advocacia, teoricamente, não devem ser alvos de ações policiais de busca e apreensão de documentos, porque atuam na confidencialidade de segredos de clientes. A delegada que chefiava o grupo disse que a casa tinha aparência de tudo, menos de escritório de advocacia, álibi que a placa ostensiva no muro pretendia servir para afastar a polícia.
O clã Bolsonaro parece ter sentido o baque. Enrolado ao extremo, o 01 Flávio tentou dizer que tudo era para atingir seu pai. O 02, vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), e o 03, deputado federal Eduardo Bolsonaro, se retraíram nas redes sociais. Na quinta-feira, um presidente abatido participou, constrangido, da gravação do “imprecionante” Weintraub, que queria sair por cima do governo e ainda pediu “um abracinho”. O abatimento prosseguiu na live de quinta-feira e ficou claro quando saiu em alta velocidade do Alvorada, na manhã de sexta-feira, 19 de junho, sem parar junto ao cercadinho de apoiadores. Vale dizer que, depois que a grande imprensa abandonou o papel de claque do circo, o presidente já ouviu palavras duras de ex-apoiadores.
A mudança de postura sexta-feira era para valer. O presidente se reuniu às pressas com os ministros da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, e da Advocacia Geral da União, José Levi, e os despachou para São Paulo, para uma reunião de armistício com o ministro Alexandre Moraes. Moraes é responsável, no STF, pelos inquéritos das “fake news” e das manifestações radicais que pedem o fechamento do Congresso, do STF e a convocação das Forças Armadas para a “missão”.
Até duas semanas, munido de interpretações do Artigo 142 da CF que dariam ao presidente da República a primazia sobre os demais poderes na convocação das Forças Armadas (o que só se aplica em Estado de Guerra), nas demais circunstâncias democráticas de cumprimento da Lei e da Ordem, tanto Judiciário como Legislativo podem requisitar as armas da República, Bolsonaro falava grosso escudado no suposto apoio das forças militares. Pareceres encomendados pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o 3º na linha de sucessão, e as falas do colegiado do STF desautorizaram a versão.
Entretanto, foram os fatos posteriores, como a troca do comando da Política Federal, que levaram à saída de Sérgio Moro do MJSP, que provaram que a fala raivosa da reunião (2) ministerial de 22 de abril – quando Bolsonaro afirma “eu não vou esperar f#+*&r minha família toda para trocar segurança, chefia da segurança ou ministro” – tinha como preocupação básica barrar as investigações contra a família e os inquéritos das “fake news” e dos apoiadores (que podem remeter à própria lisura da campanha de 2018) que esvaziaram a linha de argumentação presidencial.
Os ministros militares e os militares da reserva que andaram apoiando o presidente em atos, manifestações e abaixo assinados a favor do ponto de vista presidencial sobre a aplicabilidade do Art.142 ficaram até envergonhados quando a bola rolou no estádio vazio (perdão, das ruas) e o serviço de alto falantes informava: substituição em campo: “sai o artigo 142 da CF e entram em campo os artigos 312 e 171 do Código de Processo Civil”.
Os dois artigos podem se aplicar ao caso Flávio Bolsonaro:
Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa.
Artigo 171 – mais conhecido como “crime de estelionato, define o crime em obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, com artifício, ardil ou meios fraudulentos.
Os militares têm como disciplina servir à pátria e nisso são impecáveis, embora não tenham, como alguns pensam, o monopólio do patriotismo. Mas eles sabem perfeitamente que o ditado “Amigos, amigos, negócios à parte”, não pode servir para colocar no mesmo patamar os negócios do Estado e as questões pessoais e/ou de família. E mais de 50 mil vidas contam, não cabe mais “o daí?”.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)