Em busca de legitimação social, os militares procuram apresentar-se como expressão da vontade coletiva, mas elaboram suas próprias interpretações da sociedade; impulsionam inovações, mas temem mudanças sociais e preservam marcas antigas.
Este Xadrez foi montado em cima de um texto clássico do historiador baiano Manoel Domingos Neto, “Sobre o patriotismo castrense”.
Peça 1 – o Poder Militar e impeachment de Dilma
As Forças Armadas brasileiras são instituições estabelecidas e nenhum ingênuo chega ao posto de general. Ao estimular o impeachment, o militar atuou sabendo dos prejuízos que causaria à defesa nacional, que pressupõe corporações respeitadas, coesão social, sólidos e profundos laços de amizades com os vizinhos e relações estreitas com o outro lado do Atlântico. Se, apesar disso, apoiou Bolsonaro, cabe pensar detidamente em suas motivações.
Peça 2 – os resultados da modernização militar
Domingos começa seu raciocínio buscando as raízes da modernização militar, que surge em duas guerras do século 19, a Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865) e a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871).
- A tropa passou a ser composta por cidadãos remunerados. O recrutamento obrigatório sinalizou para a sociedade o novo protagonismo do militar como braço do aparelho do Estado moderno.
- A composição do corpo de oficiais deixou de lado a seleção por castas ou origem de classes e valorizou a formação profissional em escolas especializadas.
- Os Exércitos passam a dispor de grandes unidades operacionais, consagrando a interoperabilidade, exigindo o comando de oficiais superiores.
- Os comandantes puderam contar com serviços de estado maior, um colegiado de assessoramento formado por especialistas capazes de estabelecer de forma autônoma as bases doutrinárias da corporação. Por “doutrina” se compreende a definição da finalidade das Forças Armadas, sua finalidade, organização, formas de treinamento, regras hierárquicas e disciplinares. A unidade de doutrina é peça-chave para a eficácia militar.
- O poderio militar está estreitamente à capacitação científica, tecnológica e industrial, ou seja, a renovação permanente de armas, equipamentos, meios de locomoção, instrumentos de observação, serviços médicos e possibilidades logísticas.
- O militar moderno distanciou-se da sociedade, em virtude da autonomia corporativa requerida pela complexidade da organização corporativa, mas desenvolveu expedientes para interferir direta ou indiretamente em todos os domínios da vida social, da economia ao ordenamento sociopolítico, incluindo o estabelecimento de princípios e valores que, no seu modo de ver, assegurariam a coesão social.
Por exemplo, a estreita relação da competitividade industrial com a pesquisa de ponta desenvolvida por interesse da defesa; a segurança de rotas comerciais e dos sistemas de comunicação, fundamentais para a sociedade contemporânea e para a economia, dependem de dispositivos militares; o controle social em situações extremas, de caos generalizado e de calamidades naturais, tem no militar o derradeiro instrumento de Estado.
Peça 3 – as formas de intervenção militar
Em busca de legitimação social, os militares procuram apresentar-se como expressão da vontade coletiva, mas elaboram suas próprias interpretações da sociedade; impulsionam inovações, mas temem mudanças sociais e preservam marcas antigas. O militar moderno revela apego a valores ancestrais, inventa e cultua “tradições”, mas está ciente de que a obsolescência é sua ruína.
A incorporação de novidades combina-se com o conservadorismo político e comportamental. A preservação da estabilidade e da ordem, sendo irrelevantes os níveis de iniquidade e vilanias que encerre, está no cerne da cultura integrante da corporação armada regular. Aparentemente esdrúxula, tal combinação faz parte da formação das identidades corporativas.
Peça 4 – o militar em país sem domínio da tecnologia militar
- A modernização dos exércitos em países sem capacidade científica, tecnológica e industrial avançada representa uma forma de dominação astuciosa e eficaz das grandes potências.
- O militar moderno em “país arcaico” tende a ser mais narcísico que o dos países desenvolvidos: é propenso a desejar uma sociedade digna de si e torna-se fator permanente de instabilidade política.
- A modernidade militar em ex-colônias alimenta dilemas identitários nas corporações, notadamente quando a ruptura com a metrópole ocorre sem o envolvimento de vastos contingentes sociais em confrontos sangrentos.
- O militar moderno que depende de fornecimento e instrução de estrangeiros desenvolve índole neocolonialista dissimulada pelo “patriotismo castrense”, que demanda a elaboração de leitura histórica própria.
Corporações militares modernas em países não desenvolvidos se relacionam diretamente com os fornecedores e entram facilmente em desalinho com propensões majoritárias das sociedades que lhes sustentam; podem não manter sintonias com o poder civil na eventualidade do estabelecimento de política externa envolvendo aspectos aparentemente distantes do interesse puramente militar, como a pauta de exportações, a cooperação científica e mesmo acordos de natureza cultural;
Além disso, tensões frequentes no meio militar são motivadas por iniciativas de “âmbito interno” capazes de afetar a vida corporativa, como a contenção de gastos públicos e reformas sociais que incidam sobre o sistema de recrutamento militar, a promoção hierárquica e a inserção social dos oficiais.
Peça 5 – o patriotismo
O militar brasileiro, a exemplo de diversos de seus similares estrangeiros, exigiu do constituinte que inserisse a defesa da pátria como sua missão precípua, mas não definiu o que era pátria nem o constituinte lhe perguntou. A Constituição outorgou ao militar um poder imensurável: a pátria é o único ente poderoso o bastante para pedir a qualquer um que morra ou mate em sua defesa.
A segmentação entre o “social” e o “nacional” amesquinha demandas dos “de baixo” que os “de cima” não querem atender. Lutar pelo “interesse nacional” separadamente do “interesse social” é uma manobra para imprimir respeitabilidade aos desígnios dos que detêm ou querem deter a hegemonia no Estado, entre os quais se destaca o estamento militar. Este procedimento lastreia o “nacionalismo corporativo”, que estou designando como patriotismo castrense.
A tendência do patriota castrense é tomar como grande inimigo os nacionais empenhados na luta por mudanças sociais. Os militares dos países europeus e latino-americanos que adotaram regimes autoritários no século XX elegeram os comunistas e reformistas sociais como inimigos a exterminar.Leia também: Eleições municipais e políticas públicas de esquerda: para não esquecer a política cognitiva, por Renato Dagnino
As manifestações patrióticas crescem no ritmo da negação de princípios e valores consagrados pela modernidade, como a tolerância, o reconhecimento de direitos humanos, a preservação do meio ambiente e o direito à autodeterminação das sociedades reconhecidas como nacionais.
Observando em perspectiva histórica, tudo indica que vivemos o transe do assentamento de uma nova hegemonia na ordem global. A pretensão da unipolaridade por parte dos Estados Unidos teve vida curta. Seu enterro está previsto, mas ainda sem data marcada. Certamente, não ocorrerá sem brutalidades.
Estas são as circunstâncias em que ocorre o crescimento de tendências políticas extremistas que arrebatam as massas com o mais poderoso argumento conhecido na modernidade: a bandeira da pátria. Impressiona a velocidade dos acontecimentos. Poucos anos se passaram para que o Brasil perdesse a condição de respeitável país emergente para a triste situação em que se encontra, de nação subalterna e desatinada.
O patriotismo castrense contribuiu decisivamente neste processo cujo final é imprevisível. O retorno ao regime de força parece não combinar com a realidade, mas é uma possibilidade que não deve ser descartada.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)