A FALTA QUE O AUDÁLIO FAZ À DEMOCRACIA E A NÓS

CHARGE DE MARIGONI

Faz dois anos hoje que morreu o jornalista e escritor Audálio Dantas, um dos grandes brasileiros do século 20 e símbolo da resistência à ditadura militar.

O filósofo popular Carlito Maia, contemporâneo de Audálio nas lutas pela redemocratização do país, costumava dizer que tem dois tipos de gente no mundo: os que vêm a passeio e os que vêm a serviço.

Audálio, com certeza, veio a serviço, não só do jornalismo de combate, mas das causas humanitárias, inconformado com as injustiças e as desigualdades sociais do país.

Morreu aos 89 anos, muito contra a vontade, depois de comer uma jaca, seu último desejo, pouco antes da eleição de Jair Bolsonaro.
Parece que ele pressentia esses tempos canalhas que viriam pela frente. Sobrevivente de duas ditaduras, censuras e torturas, trabalhou até os últimos dias, não por beleza, mas por precisão. Fazia mais trabalhos voluntários do que remunerados, incansável palestrante em sindicatos e escolas. Não sabia dizer não a quem o chamava.

Alagoano de Tanque D’Arca, cidadezinha do sertão que hoje tem 6 mil habitantes, veio para São Paulo com a cara e a coragem e arrumou um emprego no laboratório fotográfico da Folha. Autodidata juramentado, logo passou para a redação e fez carreira como repórter nos principais veículos do país.

A vida toda foi, acima de tudo, um repórter, daqueles que estão sempre em busca de uma boa história, onde quer que ela se esconda.

Quando lhe perguntavam o que é ser repórter, tinha uma resposta singela: “Repórter é um ser que pergunta”.

Publicou tantos livros que nem ele sabia quantos foram. Presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ganhou notoriedade nacional ao arrostar os generais do regime para denunciar que Vladimir Herzog não se suicidou no DOI-CODI, como diziam as notas oficiais, mas foi assassinado sob tortura.

Lembro de tudo isso assim de memória porque outro dia me ligou uma filha dele, a Juliana Dantas, também competente jornalista, para perguntar o que o Audálio, se estivesse vivo, pensaria ou faria hoje diante da grande tragédia brasileira, para um programa especial do podcast “Finitude”, lembrando os dois anos da morte dele.

Pego de surpresa, na hora nem consegui falar muita coisa, porque sou mais de escrever, como era o próprio Audálio. Podcast nem existia na nossa época, mas o trabalho da Juliana, apresentadora do programa criado por Renan Sukevicius, me fez viajar por um outro tempo em que a gente tinha orgulho de ser brasileiro.

Ao ouvir agora os depoimentos de 33 jornalistas, amigos e familiares falando sobre Audálio, fiquei emocionado várias vezes e me deu muita saudade dele e do Brasil.

“O que vocês fizeram com o nosso país?”, perguntaria o repórter Audálio, assustado com esse cenário de destruição, estupidez, grosseria, intolerância, ignorância e demência de um governo que cultua o conflito e a morte, tudo exatamente na contramão do Brasil que Audálio, um apaixonado pela vida, sonhava.

Para nós, Audálio Dantas faz muita falta, sobraram poucos como ele. Mas acho que foi melhor assim. Do jeito que era, não aguentaria ficar tanto tempo confinado em casa, vendo pela televisão o Brasil se acabando. Morreria de tristeza.

Foi muito bom ter sido teu amigo de fé e de cachaça, parceiro de tantas viagens e debates para falar da melhor profissão do mundo, sem nunca esquecer que estávamos a serviço.

A gente fazia o que gostava e ainda ganhava por isso para pagar as contas no fim do mês. Era o que nos bastava.
Até qualquer hora, mestre Audálio.

Vida que segue.

RICARDO KOTSCHO ” BALAIO DO KOTSCHO” ( BRASIL)

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