Jair Bolsonaro não é dado ao hábito da leitura. Costuma ralhar com auxiliares que ousam lhe entregar relatórios com mais de uma página. Mas parece guiar seus movimentos por uma célebre máxima do escritor italiano Giuseppe di Lampedusa, autor do romance O Leopardo: “Se você quer que as coisas fiquem como estão, as coisas terão que mudar.” Para manter inalteradas as suas idiossincrasias e transgressões, Bolsonaro muda o que for preciso.
Neste final de semana, o capitão voltou a praticar o seu esporte predileto: pedaladas sanitárias. No sábado, provocou aglomerações numa padaria e ao redor de um carrinho de cachorro quente. Neste domingo, prestigiou mais um daqueles já tradicionais ajuntamentos de devotos que cultuam objetivos antidemocráticos —fechamento do Congresso e do Supremo, por exemplo. Tudo como antes, exceto pela ausência de contraponto.
Bolsonaro ejetou da poltrona de ministro da Saúde dois médicos: o ex-deputado ortopedista Henrique Mandetta e o empresário oncologista Nelson Teich. Ambos reconhecem que, na falta de uma vacina, o isolamento social é o único remédio eficaz contra o avanço desenfreado do coronavírus. Tornaram-se incômodos. Constrangidos pelo convívio com um presidente que prega a volta a uma normalidade inexistente, Mandetta e Teich se deram alta do governo.
Aferrado inconscientemente ao ensinamento de Lampedusa, o capitão delicia-se com a interinidade de um general, Eduardo Pazuello, no comando do Ministério da Saúde. Como comandante em chefe das Forças Armadas, Bolsonaro pode fazer o que bem entende sem o risco de ser surpreendido por um muxoxo ou uma reclamação de auxiliar. O ministro agora apenas bate continência e diz “sim, senhor” para as ordens que recebe do chefe.
A fórmula de Bolsonaro parece perfeita. Mas desconsidera um detalhe: a pandemia muda o mundo tão rapidamente que um governante que diz que alguma coisa não pode ser feita é geralmente surpreendido por outros que estão fazendo esta coisa. No futuro próximo, quando tiver que tomar uma decisão, o eleitorado pode incluir nos seus cálculos políticos o número de cadáveres do coronavírus.
Nessa hipótese, o dono do voto tende mudar até o significado das palavras na eleição de 2022. Democracia passa a ser o regime em que as pessoas têm ampla e irrestrita liberdade para exercitar a sua capacidade de fazer besteiras por conta própria. O voto vira um direito do eleitor renovar seus equívocos de quatro em quatro anos. Em contato com a urna, alguns dos 57,7 milhões de eleitores que optaram por Bolsonaro em 2018 podem concluir que a mudança é o melhor caminho. Nem que seja para cometer um erro diferente.
JOSIAS DE SOUZA ” SITE DO UOL” ( BRASIL)