Brás Cubas, o universal personagem de Machado de Assis, queria mais (ou menos) do que um remédio com seu emplasto. Queria ver seu nome impresso se espalhando pelo Rio antigo. Ao lembrar da cloroquina, a articulista traz o emplasto machadiano para nossos dias, descrevendo as semelhanças de um personagem fictício e outro real
A ironia fina e sofisticada de Machado de Assis ajudaram-me, mais uma vez, a refletir sobre os complexos problemas que nos circundam e que refogem à minha compreensão.Publicidade
A literatura sempre nos salva.
Os acontecimentos recentes fizeram-me lembrar de Brás Cubas, o famoso personagem de Machado de Assis, aquele que teria escrito suas memórias após a própria morte. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é considerado por muitos críticos como o primeiro exemplo do realismo fantástico no Brasil.
Brás Cubas, o defunto-autor, passara a vida obstinado pela criação de um medicamento, o seu emplasto, o emplasto Brás Cubas, aquele que seria criado para acabar com o mal da humanidade, o mal estar da civilização: a melancolia.
O emplasto salvaria nossa melancólica humanidade.
Obcecado por esta ideia fixa, Brás Cubas passara a vida a buscar o estrelato que adviria de seu miraculoso emplasto. A fama, a glória e o reconhecimento finalmente viriam e a humanidade se curvaria ao seu invento e aos seus pés.
Em suas reflexões post mortem, Brás Cubas finalmente confessaria ao público os verdadeiros, recônditos e inconfessáveis desejos por trás da ideia fixa do emplasto. Diria ele: “O que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas e, enfim, nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas”.
Simples assim.
Diante da singeleza de tal afirmativa, empenhei-me a perscrutar quais seriam as verdadeiras origens da obsessiva insistência na adoção do protocolo da cloroquina para os portadores da Covid-19.
O que levaria alguém a insistir na ideia de um protocolo não recomendado pelas mais diversas autoridades em saúde, passando pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho Federal de Medicina (CFM)?
Sem embargo dos sempre possíveis interesses econômicos que usualmente transitam em torno dessas drogas milagrosas, fico aqui especulando qual seria a sua verdadeira história, aquela que repousa subjacente à obstinada ideia.
A hipótese de salvamento da humanidade fica desde já descartada. É evidente a pouca disposição, por parte da figura pública que incentiva o uso do remédio, pela compaixão, pela alteridade ou pela sensibilidade. Basta citar o elucidativo episódio do jet-ski no dia em que as estatísticas demonstravam a ocorrência de mais de 700 brasileiros mortos no país e, portanto, 700 famílias marcadas pela dor e desamparo.
Experiência própria bem-sucedida, apesar dos exames negativos realizados sob pseudônimos? É uma possível linha investigativa.
Desejo de fama, eternidade, poder, glória, reconhecimento para compensar o vazio de uma existência? Em outras palavras, narcisismo, tal como admitira Brás Cubas?
Fica a reflexão.
O desenrolar das estatísticas e as previsões de mortes decorrentes desse vírus avassalador não são nada estimulantes. As opiniões dos especialistas mais abalizados indicam o caráter duvidoso e pouco seguro do uso da referida droga no tratamento da doença.
Tudo nos leva a crer, portanto, que uma ideia fixa nos levará à adoção do novo protocolo. A ciência, contudo, não o recomenda. Ninguém assegura o êxito em seu uso. Nada de concreto o avaliza. Teremos o ‘protocolo fantasma’. A missão é impossível. O futuro, macabro.
Brás Cubas ao menos teve consciência – tardia – do rastro destrutivo de sua obstinação.
Saindo do campo da ficção não temos como esperar tal sensatez.
Fica apenas uma certeza: parafraseando Machado, não queremos sofrer o legado dessa miséria.
ELIANE RIBEIRO ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada, vinculada ao Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.publicidade