O BRASIL NÃO É FRANQUIA DA KOPENHAGEN

CHARGE DE AROEIRA

Governar é quase uma permanente “escolha de Sofia”, da qual espera-se que o bom senso prevaleça em favor da maioria, respeitando-se os princípios da democracia [que inclui o direito das minorias], das leis e da negociação política, já que os recursos são parcos. Por isso, as decisões devem ser devidamente instrumentadas por dados e pesquisas técnicas providos por pessoas competentes e capazes. Esse é o mundo ideal.

Mário Henrique Simonsen, um dos mais competentes economistas brasileiros, quando foi ministro da Fazenda no governo Geisel (1974-1979), logo após a crise do petróleo de 1973 virar a economia mundial de pernas para o ar e pegar o Brasil vulnerável, com produção de apenas 15% das suas necessidades de petróleo, confidenciava aos amigos sua máxima para exercer o poder: “eu alterno o cudum com o cudoutro”. Dividia os ônus para ser respeitado…

Jair Bolsonaro&filhos estão longe da sofisticação de Simonsen. Pensam e agem com a experiência militar, funcional, empresarial e política que viveram. Paulo Guedes &cia passam perto, mas sempre foram mais seguidores dos gurus da Escola de Chicago, como Hayek, Von Misses e Milton Friedman. Uma escola de pensamento que sempre privilegiou a redução do papel do Estado e a liberação das forças de mercado. Esse era o plano de Paulo Guedes. Até que surgiu a pandemia do novo coronavírus, o Covid-19, pondo o mundo numa era de incertezas, sem horizonte definido de término e alcance.

O comportamento dos governos tem sido errático. Como não se tem cura à vista e percepção do alcance dos danos em vidas humanas, países e regiões que demoraram a tomar duras medidas profiláxicas, como o isolamento e os testes em massa, sobretudo das pessoas que caem doentes e dos médicos e enfermeiros que estão na linha de frente do combate, estão contabilizando contaminados às centenas de milhares (600) e mortos já na casa das dezenas de milhares (quase 30 mil). Com a ressalva de que a subnotificação grassa em todo o mundo. Portanto, as vítimas temporárias e fatais podem ser muito maiores, o que torna o vetor silencioso da contaminação ainda mais exponencialmente perigoso.

Boris Johnson e Donald Trump desdenharam do vírus. Trump, que tem uma eleição marcada para 3 de novembro (as prévias democratas foram interrompidas quando o atual presidente era unanimidade entre os republicanos), chegou a anunciar a volta da normalidade no país “antes da Páscoa”, em 7 de abril. Ambos atropelados pelos fatos (as mortes e registros não eram “fake news”), ‘arrecuaram os arfes para evitar a catastre’, como dizia aquele treinador de várzea após ver seu time, que se lançou ao ataque, levar 3 x 0 em 20 minutos. O primeiro-ministro britânico, infectado pelo Covid-19, se recolheu em Downing Street, 10, a residência oficial. O príncipe Charles, herdeiro da rainha Elizabeth II, também foi atingido. Por sinal, os festejos dos 94 anos da soberana, dia 21 de abril, foram cancelados. O Reino Unido reforçou o isolamento total.

Nos Estados Unidos já são mais de 100 mil casos e o país, de 329 milhões de habitantes, já superou os registros de Itália, China e Espanha e tende a ser o mais funesto em casos fatais. A maior economia do mundo – que há dois meses travava uma guerra comercial de dois anos com a China – deixou de lado a preocupação com a hegemonia no mundo dos negócios e tratou de abrir os cofres do Tesouro em US$ trilhões para manter empresas e os empregos. Trump força as indústrias de eletrodoméstico e automobilística (que parou as linhas de produção por excesso de estoques nos pátios e nas revendedoras de todo o país) a redirecionarem as máquinas para fazerem aparelhos de ventilação, respiradores e tudo o que possa mitigar os danos à saúde. Idem centros de pesquisa/laboratórios e a indústria químico-farmacêutica.

Esta semana se entendeu com o primeiro ministro chinês, Xi Ji Ping, para garantir suprimentos destes bens, incluindo princípios químicos, máscaras, uniformes e sistemas de testes à China. O presidente americano ignorou as versões que circulam na rede social de que o Covid-19 foi uma criação chinesa para facilitar ao país de 1,4 bilhão de habitantes a liderança do PIB mundial, por ter ‘supostamente’ se curado primeiro (com o isolamento total da província de Hubei, onde fica Wuhan, centro de propagação do vírus) e ficar esperando para comprar o controle de empresas globais na bacia das almas. Na crise de 2008 (nascida no seio do capitalismo financeiro de Tim Sam) isso não ocorreu.

No Brasil, salvo raras exceções como uma cuidadora de idosos no Rio de Janeiro e uma família paulista, cujo pai, porteiro, também foi contaminado pelo contato com os patrões infectados, as mortes estão circunscritas às classes mais abastadas, de São Paulo, Brasília e Rio (boa parte dos 850 associados do Country Club, de Ipanema, foi contaminada em festa de casamento no começo de março, no Jardim Botânico) que viajaram para o exterior e trouxeram, sem perceber, o vírus que já circulava pela Europa e Estados Unidos. O grande temor é o impacto nas comunidades carentes das grandes metrópoles brasileiras como São Paulo, o Grande Rio, Salvador, Recife, Fortaleza, Belo Horizonte e Brasília, além de Porto Alegre, a cidade com maior concentração de idosos no país e sujeita a frio e umidade no outono/inverno.

Na Itália, o prefeito de Milão já fez a penitência pelas mortes elevadas no Norte do país, onde o jogo entre o Atalanta (de Bérgamo) X Valência (Espanha), dia 23 de fevereiro no Estádio San Siro, em Milão, com vitória de 4 X 1 dos italianos, teria sido a bomba de propagação antes, durante e após as comemorações da partida, com 48 mil espectadores. Não por acaso, Itália e Espanha lideram contaminações e mortes na Europa.

Mas há muita gente no Brasil que acredita na conspiração chinesa (vide a popularidade destas versões na rede social). Empregados e empregadores, justamente preocupados com o destino de seus empregos e de seus negócios estão aflitos e ajudam a propagar essas versões que calaram fundo junto aos apoiadores e Jair Bolsonaro e mobilizaram seus filhos. A ideia da campanha “O Brasil não pode parar”, abortada por decisão de juíza federal do Rio de Janeiro, a pedido do Ministério Público Federal, nasceu dessa preocupação.

Desde a grande recessão causada por Dilma Roussef, que começou em maio de 2014 mas não evitou a sua reeleição porque os dados estavam mitigados (assim como os primeiros casos do Covid-19), milhões de brasileiros perderam os empregos (o IBGE chegou a coletar mais de 14 milhões de desempregados e mais de 26 milhões de subaproveitados). Muita gente foi à luta ou ao Uber e montou seu próprio negócio – de franquias de grandes marcas a improvisadas cozinhas para produzir quentinhas. Pena, tudo está parado há duas semanas.

Errático, o governo ora se apresenta todo de máscaras e prega o isolamento (o que teve grande impacto na retração da população, à parte as medidas de redução da circulação aplicadas por alguns governadores e prefeitos) e, no outro dia, o presidente e seu ministro da Saúde dispensam as máscaras e já admitem flexibilizar. Mas as medidas tomadas na área econômica (enquanto o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, fazia autoisolamento em casa, em Ipanema) comprovam a falta de uma diretriz.

Está certo que para todos os setores ligados ao turismo (na Europa, Estados Unidos e Brasil), o vírus foi um desastre que não estava no radar. O fechamento das mais variadas atividades de comércio e serviços, a começar pelos shoppings, onde muitos apostaram suas economias no aluguel de lojas para franquias pode ser fatal. Por isso, embora o Banco Central e o Tesouro tenham aberto os cofres, com créditos para as folhas salariais nos próximos dois meses, teme-se que o fôlego seja curto. Cada dia com sua agonia.

Há uma aflição principalmente nos que têm no chocolate uma fonte de negócios. Apesar das jogadas de marketing para popularizar o uso da guloseima no Natal, com os chocotones, a atividade tem na Páscoa o pico dos negócios (cerca de 60% em alguns casos). Quem irá à Cacau Show ou à Kopenhagen numa hora dessas? O que será dos estoques? Outros negócios deixam de existir temporariamente se as portas estão fechadas, como salões de beleza e barbeiros, restaurantes e boates. Há que se pensar no todo, as pessoas em primeiro lugar, como dizia o então candidato a prefeito Marcelo Crivella, que prometeu “cuidar das pessoas” [foi mal o exemplo…].

Exemplo maior deu o Papa Francisco ao orar solitário na monumental Praça de São Pedro em Roma, acompanhado do Cristo Crucificado, criado na época da peste negra na Itália na Idade Média. No Brasil, o presidente baixa um decreto para considerar as igrejas [evangélicas, sobretudo, sujeitos ocultos do decreto] como atividades “essenciais”, sem funcionar não há dízimos dos fiéis eleitores. O Brasil não é uma franquia da Kopenhagen nem para “principiantes”, como já dizia o grande maestro Tom Jobim.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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