O Brasil e o mundo estão em uma situação de máxima emergência provocada pela pandemia que não permite nenhum paralelo com nada que já vivemos. Estamos em um contexto muito semelhante ao de uma guerra mundial. Muitos irão morrer, o que não sabemos é a escala. Impossível prever, por enquanto, as sequelas desta hecatombe. Mas serão devastadoras. Serão econômico-sociais e políticas.
A ciência nos diz que as duas referências centrais que devemos considerar são a velocidade e o volume de pessoas contaminadas, e a taxa de letalidade. Ganhar tempo passou a ser prioridade central, o que só é possível com quarentena total. A inevitável contração da economia mundial não pode ser a preocupação central dos Estados. Os governos que se opuserem, ou mesmo que hesitarem, a tomar as medidas drásticas agora, estarão condenados.
Muitos milhões de pessoas, felizmente, já estão em confinamento domiciliar. O centro da luta política é salvar vidas, o que só é possível quando todos puderem se proteger em suas casas com as condições de sua sobrevivência garantidas pelo Estado. Mudou a conjuntura, mudou tudo, abruptamente, nas últimas duas semanas.
Muitos países já estão em quarentena total. No Brasil, as medidas até agora são, dramaticamente, insuficientes, porque o governo federal não se posiciona, claramente, por uma imediata quarentena total, condição sine qua non, ou seja insubstituível, para frear o contágio e ganhar tempo, a única estratégia que se demonstrou eficaz para salvar vidas. No caso do Brasil, milhões de vidas. A mão não pode tremer. Mas Bolsonaro é um monstro. Sua incapacidade é absurda. Portanto, devemos nos preparar para a pior hipótese.
Os especialistas em pandemias são categóricos: sem medidas excepcionais, radicais, inflexíveis de quarentena total, à exceção dos serviços essenciais, rigorosamente definidos, estaremos em poucas semanas diante de um cataclismo de dezenas de milhões de mortes em escala global.
A nova conjuntura resultou de um choque externo brutal. A relação política de forças vinha evoluindo de forma desfavorável, quantitativamente, para o governo desde janeiro. Crise que levou à demissão do secretário da Cultura Renato Alvim; crise decorrente da existência de dois milhões de processos parados no INSS; crise devido ao bloqueio da entrada de um milhão de famílias no programa Bolsa Família; desconsideração das inundações e mortes em massa no Sudeste; atraso na legalização do partido do presidente, o Aliança; repercussão internacional desastrosa das invasões nas reservas indígenas; críticas a Bolsonaro nos blocos carnavalescos; rupturas de seus ex-aliados: PSL, Wilson Witzel, João Doria, Alexandre Frota, MBL, Joyce Hasserlmann, general Santos Cruz, e agora Janaína Paschoal. Tudo isso estava incidindo sobre a percepção da classe trabalhadora e da classe média, ainda que em proporções diversas.
Mas nas últimas duas semanas o governo teve duas derrotas claras. A repercussão desastrosa da descida da rampa no dia 15 de março, com sua participação nas manifestações contra Congresso Nacional e o STF, e as declarações negacionistas acerca da gravidade da epidemia. Parecem ter gerado um salto qualitativo, porque foram o estopim, a fagulha, a centelha que incendiou um protesto que começou nos bairros de classe média, mas tende a se alastrar.
Há pelo menos dois níveis de avaliação em qualquer análise de conjuntura. Na verdade são mais que dois, mas isso é tema para outro dia. Um é a avaliação da relação social de forças na estrutura da sociedade. Outro é a relação política de forças na superestrutura. Elas tendem à confluência, mas quando a conjuntura se altera se eleva o descompasso, a dissonância. Porque a luta política entre governo, instituições, organizações variadas de representação social, entre elas a mídia e, sobretudo, os movimentação dos partidos é mais acelerada. Politicamente, Bolsonaro se enfraqueceu. Essas mudanças irão incidir nas classes, mas com algum atraso porque a variável tempo tem importância.
Existe uma “régua” para decidir se levantamos a palavra de ordem de “Abaixo o governo”, o “Fora Bolsonaro!” para a agitação política. O critério que herdamos dos clássicos é se essa consigna já está madura na consciência da maioria da classe. Não é necessário que a classe já tenha disposição de sair para as ruas para tentar derrubar agora e já o governo. É diferente de uma consigna para a ação. Mas precisa ser a posição majoritária no conjunto da classe. O critério não é a maioria da população. Na velocidade vertiginosa da mudança de conjuntura é difícil saber se já há uma maioria.
A classe trabalhadora pode e deve arrastar a maioria. Ela tem a força social para abrir o caminho e derrubar o governo. Isso aconteceu no Brasil em 1979, na fase final da luta contra a ditadura. As greves de metalúrgicos, petroleiros, bancários e professores e outros demonstraram uma força social de impacto que deslocou a maioria da nação para a oposição à ditadura. Esta deve ser a nossa aposta, estratégia e inspiração.
VALÉRIO ARCARY ” SITE A TERRA É REDONDA”( BRASIL)
Valério Arcary é historiador e membro da Coordenação Nacional do Resistência/PSOL.