Diante do avanço do novo coronavírus, causador da Covid-19, que trouxe para o Brasil o risco de repetição de mortes recordes, como na Itália, que já superou a China (origem do Civid-19) em número de óbitos, a Rede Globo reduziu drasticamente as atividades do antigo Projac, atual Estúdios Globos. Interrompeu gravações de novelas e minisséries (que darão lugar a reprises) e praticamente suspendeu todos os programas com presença de auditório. Resta apenas o nefando BBB. Mas esse também está com os dias contados. Como as atividades esportivas também estão suspensas, toda a grade da emissora líder de audiência do país foi alterada e nela o futebol tinha horário cativo nas tardes de domingo, nas noites de quarta e em todos os telejornais. Sem assunto para entreter as pessoas confinadas em casa, os canais esportivos reprisam jogos, numa sessão retrô que nos remete ao século XX. Entre as novelas interrompidas, está uma em estilo comédia pastelão, lançada em 27 de janeiro e que sai do ar no próximo sábado, 28 de março, com o premonitório título de “Salve-se quem puder”.
Quem já está semi-confinado em casa e grudou na TV esta semana percebeu claramente que o ditado “a vida imita a arte” não é mera figura de retórica. Um presidente da República que desdenhava do vírus e ainda na última sexta-feira encerrou uma entrevista dizendo que poderia fazer um terceiro teste para ver se estava infectado pelo vírus, depois que 23 membros da comitiva que o acompanhou na viagem à Flórida (EUA), de 7 a 11 de março, testaram positivo para o Covid-19, mas “não seria uma gripezinha” (sic) que derrubaria a quem “sobreviveu a uma facada”. Decididamente não está em condições de comandar o país.
A questão não é a pessoa física de Jair Messias Bolsonaro, que ontem completou 65 anos em “festinha” com a família na residência presidencial do Palácio da Alvorada, sem visitantes e imprensa à porta. Um presidente da República é uma figura pública e sua vida privada (salvo o recesso do lar) é do interesse de toda a nação. Sua saúde física e mental são motivo de preocupações para todos. Eleitores dele ou não. Mas Jair Bolsonaro, que foi eleito pelo PSL com 47,7 milhões de votos (55,13% dos votos válidos, contra 44,87% do candidato do PT, Fernando Haddad) e teve apenas 39% dos votos do eleitorado total (considerando abstenções e votos nulos) parece ignorar os desafios de ser um presidente da República.
Nunca pareceu estar à altura do cargo e muito menos agora que a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, por seu presidente, o mexicano Angél Guria, está convocando dirigentes nacionais do Ocidente e do Oriente que fazem parte da OCDE a “colaborar na articulação de um novo Plano Marshall para a reconstrução da economia mundial, após os efeitos contagiosos do Covid-19 se dissiparem em termos de saúde pública”. Vale lembrar que o Brasil, por iniciativa de Bolsonaro e de seu guru econômico, o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes, ser nomeado ministro da Economia, enfeixando pelo menos cinco pastas sob seu guarda-chuva, decidiu abrir mão do tratamento preferencial que o Brasil gozava na Organização Mundial do Comércio, para pleitear ingresso no “clube dos 36 países mais ricos do mundo”. Agora, está tudo interrompido, as feras estão soltas e não há rede protetora.
A mudança, em menos de uma semana, da postura do governo Bolsonaro, incluindo o chefe da equipe econômica, em relação aos efeitos sanitários, sociais e econômicos do novo coronavírus, deixou claro que não tinham se debruçado sobre o problema. Bolsonaro repetiu Lula que, em setembro de 2008, em plena campanha para eleger Luiz Marinho prefeito de São Bernardo do Campo (SP) pelo PT, disse que o tsunami financeiro que varria a economia americana, a Europa, “chegaria ao Brasil como uma marolinha”. Não foi assim.
O operoso médico Luiz Mandetta, que já exerceu cargo de secretário de Saúde de Campo Grande MS) e foi reeleito deputado federal pelo DEM-MS, quando foi convidado por Bolsonaro, teve de fazer parte da pantomima desta quarta-feira (18), quando o presidente – enciumado com o protagonismo de seu ministro da Saúde – comandou uma mesa de ministros e assessores com máscaras contra o Covid-19. Mandetta teve de elogiar a liderança do presidente da República e acompanhar o relato burocrático de providências de cada área do governo, mesmo quando Bolsonaro parecia alheio ao risco do vírus em sua viagem à Flórida. Das 45 pessoas que tiveram contato com ele na viagem, 23 só no Brasil (sem incluir o prefeito de Miami) foram contaminados. Ou seja, mais da metade! A “gripezinha” não poupou os ministros Augusto Heleno, 72 anos, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, considerado pelo próprio presidente o seu “braço direito” e o ministro das Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque, que completa 62 anos em agosto.
Porém, o que mais chamou a atenção foi a desconexão com a realidade das medidas anunciadas terça e quarta-feira pelo ministro da Economia. Paulo Guedes, há uma semana, ainda falava que a economia estava acelerando, prevendo alta de 2,5% para o PIB deste ano, em entrevista pré-gravada para o programa de estreia da CNN-Brasil, domingo, 15 de março, a partir das 20h. Em tempos de internet, notícias ficam velhas no papel, na TV, no post ou no tuíte seguinte.
Na sexta-feira (20), a equipe do ministério da Economia, com a notável ausência do comandante, refez novamente as projeções do PIB. Em vez dos 2,1% anunciados na semana anterior (a gravação de PG deve ter sido feita quinta-feira, 12/03) o secretário de política econômica Augusto Saschida arriscou um patético 0,02% positivo (Itaú previa queda de 0,7% e outros bancos, consultorias e institutos de economia, como a FGV, tombo até 4,4%).
Pior foi a nova intervenção de Bolsonaro, sexta-feira à tarde, à frente da equipe da Saúde para contraditar medidas responsáveis que os governadores dos estados mais afetados pelo Covid-19, como São Paulo (que tem 46 milhões de habitantes) e Rio de Janeiro (17 milhões), que somam 63 milhões de habitantes – mais, portanto, que os 61 milhões de Itália, que já registrou mais de 4 mil óbitos, superando a China. Desta vez, não usou máscara, mas encerrou a coletiva falando em “gripezinha”. Francamente.
A falta de sintonia do comandante em chefe e de seu “Posto Ipiranga” com a realidade ficou mais flagrante e trágica na noite de sexta-feira (20). Enquanto Paulo Guedes, 70 anos, não era visto em qualquer noticiário da TV, Bolsonaro – em provável entrevista pré-gravada, talvez na quarta-feira – participava de risonha conversa no “Programa do Ratinho”, do STB. Nada de convocar a população a uma cruzada de sacrifícios para ficar em casa. [vi o programa, por dever de ofício, explico aos seis leitores fieis]. Parecia um alienado, que perdeu a oportunidade de mobilizar o país através de um programa popular.
Decididamente, no lado da economia, a trajetória de Paulo Guedes, um ultraliberal, praticante da Escola de Chicago, não parece ajustada aos desafios atuais, que exigem forte dose de intervenção do Estado na economia e na vida social (Donald Trump não descarta a nacionalização de empresas pelo governo americano para assegurar suas funções estratégicas e garantir o emprego).
O arsenal de “reformas que liberariam as forças da economia de mercado para liderar o crescimento e o emprego” foi jogado para o alto. Foi atropelado pela decretação do Estado de Calamidade Pública. O buraco é bem mais embaixo.
Paulo Guedes deveria fazer uma contrição de humildade. Lembrar dos tempos em que participava (anos 80) das reuniões com economistas de múltiplas tendências no IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), hoje dirigido por Carlos Von Doellinger, e convocar as melhores cabeças pensantes do Brasil para encontrar saídas para a economia (e a vida social) durante e após a crise.
Se não vamos ser incluídos em um novo Plano Marshall, através do qual, em 1948, quando os Estados Unidos se viram líderes no mundo capitalista, mas sem a parceria econômica da Europa (o Japão ficou de fora do plano), foram injetados bilhões de dólares para soerguer e modernizar a economia europeia semidestruída pela 2ª Guerra Mundial, que façamos algo mais criativo e arrojado por conta própria. O governo JK trouxe, com incentivos, matrizes desativadas de fábricas de automóveis e eletrodomésticos da Europa (França, Itália, Alemanha e Suécia) para implantar a indústria de consumo no país.
Não podemos deixar metade da população brasileira à deriva. Os que estão desempregados e vivem de bicos somam mais de 70 milhões de pessoas. Há uma imensa massa que vive em comunidades carentes onde a ordem de ficar em casa não pode se aplicar a cubículos onde há excesso de gente e onde a baixa ou quase inexistente ventilação facilita a proliferação de toda a sorte de vírus ou doenças, como a tuberculose, que grassa na Rocinha, uma das maiores comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro. As situações se repetem no Grande Rio, na Grande São Paulo, em Salvador, no Recife, Fortaleza e nas periferias das grandes cidades.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)