A pandemia pegou o Brasil no seu pior momento, completamente despreparado para enfrentá-la. Nos pega depois de quatro anos de retomada do desmonte do Estado, de enfraquecimento dos serviços públicos de saúde, do SUS, de diminuição dos leitos nos hospitais, da quantidade de pessoas nos serviços de saúde, com um presidente sem prestígio e sem credibilidade, com uma política neoliberal arrasadora dos serviços do Estado e do patrimônio público. Nos pega num clima ideológico em que os preceitos neoliberais reinam quase que de maneira absoluta, criminalizando o Estado e exaltando todas as formas mais radicais de ajuste fiscal, de corte de recursos públicos, de privatização de empresas públicas, de exaltação do mercado e do empresariado privado, de debilitamento acentuado dos bancos públicos.
Os estragos a pandemia são muito maiores nessas condições. Quando se exige do setor público da saúde um esforço gigantesco para estar mais ou menos em condições de se opor aos efeitos dramáticos da pandemia, o setor tem que se recompor minimamente, para poder operar, com seu pessoal agindo de maneira heroica, se preparando para os piores tempos em termos de saúde pública que o Brasil já enfrentou.
O governo de calamidade nacional que temos se propõe a diminuir a importância e os riscos da pandemia, buscando desqualificar o fenômeno pela sua politização, seja atribuindo a pandemia e uma diabólica operação internacional da China, seja atribuindo à mídia e à oposição um complô para derrubar o governo. O ministro da economia, depois de apelar para a cantilena neoliberal de que só intensificando a aprovação das propostas neoliberais o país pode reagir, e depois de apenas tentar remanejar recursos, teve que injetar dinheiro na economia, com atraso e de forma precária.
O país ainda não vive os piores momentos a pandemia. Nos esperam não semanas, mas meses de disseminação mais extensa a epidemia. As condições de extrema desigualdade da sociedade brasileira, aumentadas exponencialmente por quatro anos de governos neoliberais, faz com os efeitos da pandemia cheguem de maneira absolutamente desigual aos distintos setores da população.
As autoridades sanitárias fazem recomendações de proteção a população, como se todos estivessem em condições iguais de defesa. Setores de classe media e das camadas mais ricas da população, podem se isolar em condições seguras, com comida e remédios suficientes, com suas fontes de renda garantidas. Tem acesso muito mais fácil aos bens indispensáveis e dispõe de tempo para cuidar-se.
Quanto à grande maioria da população, que vive aglomerada em poucos cômodos que congrega a muita gente, não consegue nem ouvir falar de isolamento, de distancia de dois metros de uma pessoa para outra, de lavar as mãos com sabão dezenas de vezes por dia, gozando de agua corrente, apelando para álcool com gel na rua e no trabalho. A pandemia pode ameaçar a todos, mas as desigualdades sociais profundas faz com que as vitimas privilegiadas sejam os mais pobres.
Já para não falar da população de rua, por si só absolutamente desprotegida de tudo, sem mínimas condições de higiene e de alimentação. E da população, majoritária hoje, de vive do trabalho precário, vendendo tudo o que pode nas ruas, prestando os serviços que conseguem oferecer. Além de todos os vinculados a pequenas e medidas empresas. Estes todos brutalmente afetados pela paralisação econômica, ficando completamente desprovidos dos meios básicos de sobrevivência, antes de tudo da alimentação.
O país sairá economicamente estagnado e socialmente devastado desta crise. Como será política e ideologicamente o país depois desta crise. Com que contaremos para reconstruir o Brasil?
A crise teve, como um dos efeitos mais importantes, a forte revalorização os serviços públicos de saúde, dos centros públicos de pesquisa, do pessoal vinculado aos hospitais e centros públicos de atendimento de saúde. Fica claro para a população que quem cuida dela, ainda mais nos momentos mais difíceis, é o Estado, são os centros públicos de saúde, é o SUS, são as universidades. Fica claro que o setor privado atende à minoria privilegiada da população e, mesmo esta, corre para ser atendida pelo SUS quando tem problemas.
O próprio espírito comunitário, de reações de resistência coletiva, de apoio aos mais fragilizados, de atenção aos idosos, aos enfermos, se fortalece na crise. Quem tem mais, se da conta, mais facilmente, da sua situação de privilégio.
Mas, passada a crise, e na dependência do governo que ainda tenhamos, a direita voltará de novo, com mais força ainda, para colocar a culpa do descalabro econômico na pandemia e pedir ainda mais ajustes fiscais e privatizações. Ela tem seu arsenal sempre pronto para disparar.
E a esquerda? Se valerá da recuperação o prestígio do Estado, para propor programa de reconstrução nacional que terá no Estado seu agente fundamental? Promoverá a recuperação das universidades e centros públicos de pesquisa, como agentes fundamentais de fortalecimento da educação e da pesquisa? Reverterá o debilitamento dos bancos públicos e das empresas públicas e fará com que voltem a ser um vigor decisivo no desenvolvimento do país? Recolará com força as políticas sociais como a prioridade número um do país? Vinculará o resgate da democracia à necessidade imperiosa de voltar a ter governo de prestígio e legitimidade?
Dessa batalha dependerá o futuro do Brasil por toda a primeira metade do século. Quem pagará os preços altos da crise? Se atuará para diminuir as desigualdades ou para acentua-las? Se resgatará o espírito dos acalorados para passar da resistência passiva à resistência ativa, com o povo, os partidos de esquerda, os movimentos populares recuperando capacidade de mobilização do povo e protagonizando a oposição democrática ao governo? De como a esquerda se valerá do Fora Bolsonaro para resgatar a democracia no Brasil.
Vamos passar ainda por meses difíceis, uns dois, segundo alguns, uns cinco, segundo outros. Mas a crise passará e teremos um país econômica e socialmente muito pior. O combate decisivo se dará ao nível das ideias, da interpretação do que vive o país, de como chegamos a essa situação e de como superá-las. E das forcas políticas que conseguirmos agregar para superar a crise numa direção positiva – democrática e antineoliberal.
O Brasil não sairá igual desta crise. Sairá pior ou melhor. Depende de nós. Vivemos um momento decisivo para o nosso futuro.
EMIR SADER ” BLOG 247″ ( BRASIL)
Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros