Passei praticamente dois meses durante o sufocante verão europeu de 1982 em Beirute, capital do Líbano, do princípio de julho ao final de agosto, como enviado especial da revista brasileira Istoé, da qual era correspondente em Roma.
Tive a dura missão de cobrir um dos momentos mais violentos do conflito no País dos Cedros – iniciado em 13 de abril de 1975 e que se estenderia a novembro de 1990. Estavam em combate à época, na área central cidade, em torno ao Bois de Beyrouth, as forças palestinas lideradas pelo egípcio Yasser Arafat (1929 – 2004), chefe da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), ajudado por milícias locais muçulmanas, contra o exército israelense, sob o comando do General Ariel Sharon (1928 – 2014), aliado na ocasião das Forces Libanaises, grupo da maioria das milenares famílias cristãs do país. Sharon levaria a melhor e Arafat acabaria expulso do Líbano.
Aproveitei uma trégua e, como tinha curiosidade em conhecer a vizinha Israel, ao invés de retornar a casa, tomei um táxi na Hamra, região comercial beirutiana, ocupada pela OLP, na manhã de 27 de agosto, uma sexta-feira, e rumei para o Sul. Desembarquei próximo à fronteira… Segui a pé até uma espécie de ‘porteira’ de Israel. Apanhei um novo táxi e fui diretamente ao Sheraton Hotel, na Little Tel Aviv. Almocei rapidamente e fui visitar a cidadela bíblica de Jaffa – quase uma extensão de Tel Aviv.
Surpreendi-me ao chegar e me deparar, na praça principal, com muitos homens que conversavam em castelhano com forte acento da Espanha – conforme já relatei, em Mundos ao Mundo, na edição de 17 de dezembro de 2015. Intrigado, questionei-lhes se eram espanhóis – e estes afirmaram que sim. Indaguei-lhes de qual parte vinham. Responderam, simplesmente: “Somos españoles de Turquia”.
Só então dei-me conta que eram sefarditas, ou seja, judeus ibéricos. Perguntei se tinha alguém de família portuguesa. Claro que havia. Um senhor me olhou comovido e levantou a mão. Os seus ancestrais escaparam de Lisboa nos últimos anos do século XV. O ‘portunhol’ usado pelas comunidades sefarditas é o ladino, vernáculo judaico, que mistura os idiomas da Espanha e de Portugal com palavras e expressões do hebraico e do turco.
Os antepassados dos homens de Jaffa tiveram, seguramente, a mesma trajetória de La Señora Beatriz Mendes, La Magnifica (1510 – 1569), nascida numa tradicionalíssima família ibérica judia, ‘convertida’ ao Catolicismo, tendo que abdicar de seu nome verdadeiro, Gracia Nasi, de origem hebraica.
Herdeira de grande fortuna, La Señora, como era carinhosamente chamada, deixou Lisboa em 1536 e peregrinou durante 16 anos por diversos guetos da Europa até ser convidada pelo legendário Suleiman O Magnífico (1494 – 1566), Sultão do Império Turco Otomano, para fixar residência, juntamente com os familiares e membros da sociedade judaica de Portugal, em Istambul, antiga Constantinopla, onde, com a proteção da Sublime Porta, se consolidaria, nos anos em que lá viveu, de 1552 a 1569, como uma das maiores banqueiras do século XVI. Retrato de Suleiman ilustra a coluna. Ela ganharia de Suleiman o epíteto de A Magnífica.
Tive oportunidade de ouvir inúmeros ‘espanhóis’ e ‘portugueses’ de Turquia naquela viagem a Israel. Não só em Jaffa. Encontrei vários motoristas de táxi que falavam o ladino. Muitos dos quais eram provenientes de países que estiveram outrora debaixo do sultanato istambuliota – como Grécia, Romênia e Bulgária.
Uma frase, que escutei algumas vezes deles, resume bem a fórmula do ladino, quando o chofer batia na barriga e dizia ‘Bamos encher la tripa’, sugerindo, com pronunciado sotaque castelhano, que deveríamos parar e comer algo.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador