ENTRE A CIVILIZAÇÃO E A UBERIZAÇÃO, O TRIBUNAL DO TRABALHO FICOU COM A BARBÁRIE

CHARGE DE GABI LUCENA

Num país onde pelo menos 2 milhões de homens e mulheres estão cadastrados como prestadores de serviço de aplicativos, o Tribunal Superior do Trabalho acaba de tomar uma decisão entre as mais graves na história recente de um país que foi o penúltimo da América a abolir a escravidão.

Na quarta-feira, 5, o tribunal rejeitou a denúncia de um motorista de Guarulhos, na Grande São Paulo, que cobrava da Uber o reconhecimento de seus direitos como aquilo que é — um trabalhador como todos os outros.

Com essa decisão, ao enfrentar um debate que também ocorre nas economias mais avançadas do planeta, a Quinta Turma do TST perdeu a chance de dar um passo civilizatório para atualizar os direitos dos trabalhadores brasileiros por um padrão tecnológico típico do século XXI.

Em setembro de 2019 o governador Gavin Newson, da Califórnia — endereço do Vale do Silício, onde se inventou a internet — assinou uma lei que reconhece a condição de terceirizados de duas empresa de aplicativos — Uber e Lift — como trabalhadores com direitos iguais aos demais. A condição é demonstrar que seu desempenho é regular e controlado pelos empregadores (Agência AFP, site da Exame, 18/9/2019).

Na mesma época, em Brasília, o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), apresentava o projeto 5756/19, com a mesma finalidade, o que confirma a atualidade do debate no país. “O Brasil não pode seguir convivendo com essa situação absurda”, disse Padilha ao 247.

Antes de chegar ao TST, o pleito do motorista de Guarulhos, que queria o registro em carteira e o reconhecimento dos direitos devidos após um ano de trabalho, percorreu as instâncias inferiores do judiciário.
Em São Paulo, o Tribunal Regional do Trabalho se negou a reconhecer o vínculo empregatício, mas curiosamente admitiu que em sua atividade estavam presentes os elementos que, conforme a CLT, definem uma relação de emprego: habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação. Em Brasília, o ministro Breno Medeiros rejeitou a argumentação do motorista, com o argumento de que ele tinha a possibilidade de se colocar “off line”, flexibilizando os horários de trabalho e a prestação de serviços (Estado de S. Paulo, 5/2/2020).

Na realidade, é impossível debater os direitos dos trabalhadores de aplicativos sem levar em conta as condições peculiares de sua atividade. Numa situação sui generis na história do capitalismo, eles são donos dos meios de produção — automóveis e motocicletas — que precisam comprar ou alugar, mas nada recebem por isso. Também não têm ajuda para combustível, manutenção ou seguro do veículo — que pode ter, no máximo, cinco anos de uso. Recebem somas irrisórias pelas corridas, o que estimula longas jornadas de trabalho — entre dez, 12 ou 15 horas por dia.

No recurso apresentado ao TST, a Uber sugeriu que não extrai seus ganhos do trabalho dos motoristas, mas da “exploração de plataforma tecnológica, em que os motoristas atuam como parceiros, numa economia compartilhada”.
Administrando as corridas pelo aplicativo, as empresas retiram uma taxa de 25% sobre o valor de cada corrida.

Em depoimentos de uma centena de motoristas com os quais conversei nos últimos meses, pude perceber que a expansão frenética da uberização nas grandes cidades brasileiras têm uma origem fácil de entender. Encontra-se nos baixos salários que, como regra geral, são oferecidos pelo mercado de trabalho convencional, situação que cria uma oferta permanente de mão de obra a disposição das empresas.

Num país que até hoje foi incapaz de ajustar as contas com três séculos de escravidão, é fácil compreender a urgência de reconhecer os direitos dos brasileiros e brasileiras que, mesmo em torno de um aplicativo, seguem pagando as contas do fim do mês com o suor de seu rosto. O nome dessa atividade é trabalho e o respeito por ela distingue a selvageria da civilização.

Alguma dúvida?

PAULO MOREIRA LEITE ” BLOG 247″( BRASIL)

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