“HÁ LÍDERES, NOS EUA, BRASIL, REINO UNIDO, QUE SÃO TRÊS PILARES DA CASTRÓFE”, DIZ O ESCRITOR FRANCÊS ERIK ORSENNA

Em Lisboa para a Noite das Ideias, iniciativa da Embaixada de França, do Instituto Francês de Portugal e da Fundação Gulbenkian, o escritor e académico francês Erik Orsenna falou ao DN sobre os principais desafios do futuro, a falta de projetos comuns na Europa e como está fascinado com Portugal.

O clima é o maior desafio para quem está vivo em 2020?
Para mim há dois desafios: o clima e as desigualdades. E ainda um terceiro, ligado a estes dois, que é a relação com o saber. Ou seja, o pior seria um clima não controlado, desigualdades que explodem e uma contestação generalizada do saber.

Esse seria o cenário catastrófico?
Sim. E caminhamos para ele. Quando vemos o presidente Donald Trump, é exatamente isso: não querer saber do clima, não cobrar impostos aos ricos e estar-se nas tintas para o saber. Bolsonaro, igual. Erdogan, igual. É terrível ver que os cientistas são considerados membros da elite, o que é verdade, mas por causa disso não são considerados credíveis. Não acreditamos na verdade. Há cada vez mais pessoas a acreditar que a Terra é plana.

Essas desigualdades explicam os populismos, que explicam os líderes que foram eleitos em países como EUA, Brasil, etc.?
Sim. Porque se não tiver nenhuma solução não vai sair do diktat da sua família – e a OCDE diz que são necessárias seis ou sete gerações em média para o fazer. Não pode ser. Porque estamos a privar-nos de enormes talentos, o que é ao mesmo tempo ineficaz e injusto. Daí que o sistema de educação esteja no centro de tudo. Em França tentamos lutar contra isto. Mas uma em cada cinco crianças aos 12 anos ainda não domina o francês. Isso significa que vai ficar prisioneira da sua família, que vai ficar condenada a ter empregos subalternos. Aos 12 anos já está tudo decidido para ela. Não pode ser.

O Planeta, a Pessoa, o Saber. São os três pilares. E há líderes, nos EUA, no Brasil, no Reino Unido, que encarnam os três pilares da catástrofe. Eu próprio já fui atacado porque defendo as vacinas. O princípio da vacina. É como os que dizem que a Terra é plana – há pessoas que são contra as vacinas. Com as redes sociais vota-se para saber se uma coisa é verdade ou mentira. É a caricatura da democracia. Se a maioria das pessoas ali disser que a Terra é plana, a Terra é plana. O meu truque pessoal é ter feito o contrário. Há 12 anos, não tinha qualquer tipo de cultura científica, por isso decidi que tinha de adquirir cultura científica. Isso significa que é necessário haver cultura científica. É a importância da cultura geral. Nada está mais errado do que dividir cultura literária e cultura científica. É preciso uma cultura unida. A unidade da vida é a unidade do saber.

“Há líderes, nos EUA, no Brasil, no Reino Unido, que encarnam os três pilares da catástrofe”

Essa ideia de democracia direta, de voto nas redes sociais…
Quando vejo que em França foram sorteadas 150 pessoas para encontrarem soluções para a crise climática, que regressão desde que inventámos a democracia – primeiro na Grécia e depois em meados do século XVIII! Além de ser mentira, porque se eles apresentarem soluções tontas, claro que não as vamos seguir. É uma fraude tirar à sorte essas pessoas. A democracia está assim. E Portugal é um dos países que saem melhor disto.

Por enquanto…
Sim, por enquanto, mas temos de ver o caminho percorrido! Estive cá na altura da crise – venho cá duas ou três vezes por ano, gosto muito deste país – mas saíram dela. E com valores intactos. Vocês portugueses têm uma coisa que nós já não temos: o valor do trabalho. Em França vejo diferenças entre outras regiões e a minha, a Bretanha. A Bretanha é parecida com Portugal: sabemos que se não trabalharmos mais não vamos ter mais dinheiro, que o motor da evolução pessoal é o trabalho.

Diria que é por serem regiões mais conservadoras, no melhor sentido do termo?
Têm valores de bom senso. Eu sei que se não refizer dez vezes um capítulo ele vai ficar menos bom!

No seu romance A Empresa das Índias descreve a Lisboa do século XV, capital cosmopolita no centro de um mundo prestes a entrar na era dos Descobrimentos. Hoje como vê o lugar de Portugal neste mundo que acaba de descrever?
A questão é qual é a melhor dimensão geográfica. E aqui posso usar o exemplo da Bretanha: uma região quando é uma verdadeira região tem o tamanho certo. Não há batalhas gigantescas entre prioridades legítimas mas diferentes. Tem de haver um espaço que permita chegar a acordo. Se for demasiado grande, dá problemas. Vemos isso com a Europa. Havia uma Europa possível a seis. O drama – falei muitas vezes disto com o presidente François Mitterrand e ele explicou-me – foi que o Muro de Berlim caiu cedo de mais. A Europa precisava de estar mais consolidada antes de se chegar a 27 Estados membros. Portanto, há a questão do tamanho. E há a questão da nação.

Portugal existe há muitos séculos, sempre nas mesmas fronteiras. E há uma tradição de tolerância que abordo na Empresa das Índias, que só foi quebrada pela chegada dessa irrupção vulgar que foi a Inquisição, trazida pelos espanhóis. Uma tradição de curiosidade, de acolhimento, que se mantém até hoje. O que se passa em Portugal é único no mundo – esta espécie de social-democracia que é a minha religião desde os 16 anos. É muito simples: antes de distribuir temos de produzir. Vamos parar de odiar os que produzem. Mas os que não redistribuem depois de produzirem são culpados de uma ganância mortal. Dizem que a social-democracia morreu, não é verdade.

Há em Portugal um equilíbrio. Nenhum outro país teria aceitado o que vocês aceitaram para sair da crise. Basta comparar com a Grécia. Eu tenho uma grande admiração pelos portugueses. Aliado à nação, há ainda a cultura – achar que a cultura é a cereja no topo do bolo. Eu fui nomeado pelo presidente Emmanuel Macron embaixador da leitura pública e nesse âmbito estive em 50 cidades a explicar que a cultura é, na medida do possível, acabar com a ideia de que “Isto não é para mim!” O ballet clássico não é para mim. A leitura não é para mim! É insuportável. Porque isso cria duas Franças. Ou dois Portugais. Eu não me reconheço nessas pessoas. E essa frase tem de ser substituída por um “Porque não?”

Erik Orsenna esteve em Lisboa para participar na Noite das Ideias.
Erik Orsenna esteve em Lisboa para participar na Noite das Ideias.© Sara Matos / Global Imagens

Agora que o Reino Unido saiu, a Europa vai ser mais fácil de gerir?
Olhe, o amor precisa de provas de amor. É preciso ter projetos em conjunto. E na Europa já não há projetos. Houve os programas Erasmus, Eureka. E acho que a nova presidente da Comissão Europeia [a alemã Ursula von der Leyen] tem projetos. É como eu, adoro a minha mulher, por isso temos sempre projetos em comum. Se não temos projetos, estar juntos é apenas um conforto. É preciso partilhar. E estou convencido de que vai ser muito interessante quando Portugal assumir a presidência da União Europeia [em 2021] . A primeira vez que vim com frequência a Portugal foi quando fui responsável em França por um grupo de trabalho chamado 5+5, que juntava os países do Mediterrâneo ocidental. E algo me diz que Portugal vai tentar relançar esta ideia.

E em França? O presidente Emmanuel Macron não lhe deu ouvidos quando lhe disse que o país não pode ser “uma pessoa no topo e depois o povo”?
Ele tenta. Mas a França é um bico-de-obra. Não é fácil. Mas não quero falar muito de França. Prefiro dizer que estou fascinado com Portugal.

HELENA TECEDEIRO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)

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