Foi surpreendente, sobretudo, emocionante, visitar, no segundo dia deste 2020, a querida São João Del-Rei, marcadamente rococó, no coração da histórica Minas Gerais, onde se encontra, desde 2003, o precioso Memorial Dom Lucas Moreira Neves, inaugurado um ano depois de sua morte, aos 77 anos, ocorrida em Roma. Ilustra a coluna, aliás, uma foto que fiz dele, em março de 1980, na Praça de São Pedro, durante entrevista fora das austeras muralhas da Cidade do Vaticano, publicada pelo diário carioca O Globo, do qual fui correspondente na Europa.
Convivi por muito tempo na capital peninsular com o refinado intelectual Dom Lucas, um dos doutores da Igreja no século passado, quando ainda residia no bucólico Colégio Pio Brasileiro, à Via Aurélia. Recebeu nomeação para Vice-Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos, e, posteriormente, assumiu, a partir de 1979, a estratégica Secretaria da Congregação para os Bispos – considerada, não sem razão, o mais importante dicastério da Cúria Romana. O prelado de São João Del-Rei seria designado, em 1987, Arcebispo Primaz do Brasil, com sede em Salvador, na Bahia, por ser a Primeira Diocese do País.
A escolha foi diretamente do Santo Papa João Paulo II (1920 – 2005), de quem se tornou amigo na época em que o Sumo Pontífice era o incansável Cardeal Karol Wojtyla, arcebispo da polonesa Cracóvia – que fora província do Império Austro-Húngaro até o fim da Grande Guerra (1914 – 1918). Dom Lucas possuía laços distantes de parentesco com o ex-Presidente Tancredo Neves (1910 – 1985) e só seria elevado à púrpura cardinalícia, em 1998, para, logo depois, deixar o Arcebispado de Salvador e regressar à sua amada Roma, desta feita, como Presidente da Congregação para os Bispos.
O extraordinário Memorial de Dom Lucas reúne um cuidadoso acervo religioso, inclusive sua rica biblioteca, com cerca de 15 mil volumes. Ocupa um casarão do século XVIII, à Rua Getúlio Vargas, diante da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar e a menos de 200 metros do Solar dos Neves – propriedade herdada pelos descendentes próximos de Tancredo Neves, dentre os quais, o neto Aécio, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
São João Del-Rei está incrustada entre a imponente Serra de São José e a encantadora Estrada Real, aberta no século XVII pelos valorosos desbravadores Bandeirantes, sob comando dos lusitanos, com tropas formadas, basicamente, por mestiços, indígenas e negros alforriados.
Começa em Diamantina, terra natal do ex-Presidente da República, Juscelino Kubitschek (1902 – 1976), que, a toque de caixa, seguindo a premonição do santo italiano Dom Bosco (1815 – 1888), natural de Turim, fundador do Salesiano, transferiu o Distrito Federal da Cidade Maravilhosa para a goiana Brasília candanga. E estende-se, ao longo do denominado Caminho Velho, em direção ao Sul pelas entranhas das Minas Gerais, que viveu no século XVIII o apogeu de suas valiosíssimas minas de diamante e ouro, chegando ao litoral fluminense na barroca Paraty.
O Caminho Novo, traçado ainda no século XVIII, alcança o porto do Rio de Janeiro. As mágicas estradas mineiras construídas por ordem da Sereníssima Casa de Bragança, tanto a Velha quanto a Nova, atravessam serras e montanhas, emolduradas pela Mata Atlântica, com curvas muitas vezes sinuosas e, em alguns trechos, calçamento de pedra, revelando aos olhos dos viajantes, como aconteceu comigo, verdadeiras joias da Arquitetura Barroca, réplicas idênticas às magistrais catedrais e igrejas, de lés a lés de Portugal.
A Estrada Real, com seus 1630 quilômetros, ou seja, precisamente 400 quilômetros a mais do que a extensão continental de Portugal, das margens do Rio Minho à ensolarada algarvia Faro, no Atlântico, percorre monumentos do esplendor lusitano deste imenso Portugal das Américas. Inclui, naturalmente, a exuberante Vila Rica, hoje, Ouro Preto, a própria São João Del-Rei, do Memorial de Dom Lucas e do Solar dos Neves, bem como Sabará, na Grande Belo Horizonte, Congonhas, assinalada pelas obras do artista luso-brasileiro Aleijadinho, Mariana, Carrancas, Caxambu, Prados, Bichinho, Cruzília e, especialmente, a fabulosa São José Del-Rei, atual Tiradentes, cujo nome foi trocado pelos próceres republicanos envolvidos no golpe militar, em 1889, contra o Imperador Dom Pedro II (1825 – 1891), dono do epíteto O Magnânimo, que morreria no exílio parisiense.
Os golpistas precisavam de um herói nacional que teria se batido pela queda da Monarquia, e o elegido foi o desventurado ‘inconfidente’ mineiro, Joaquim José da Silva Xavier, chamado de Tiradentes, por exercer, como prático, o ofício de dentista. Ele seria enforcado, aos 46 anos, no Rio de Janeiro, em 1792. Contudo, apesar dos esforços dos idealizadores da República, a Estrada Real e todas as demais cidades, com seus nomes originais, como São João Del-Rei, continuam existindo e exibindo a grandiosidade do período colonial e imperial – abençoado há 17 anos pelo Memorial de Dom Lucas.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador