Trinta anos antes do referendo do Brexit, o escritor separou a Península Ibérica do continente europeu. Um sonho que a Inglaterra persegue, apesar de já ser uma ilha, ao querer afastar-se da União Europeia após o voto popular de 2016.
Não é o cão Constante o protagonista de José Saramago que tem mais importância no romance A Jangada de Pedra, mas até o animal é um símbolo do ceticismo do escritor perante a ideia da integração dos dois países ibéricos na Comunidade Económica Europeia (CEE) – a atual União Europeia. Quem dá início à cena fantástica que separa a península do restante continente europeu é Joana Carda, ao riscar com uma vara de negrilho o chão espanhol perto da fronteira com a França, um gesto que separa a terra ibérica e a empurra para uma viagem em direção aos mares atlânticos do Sul.
O cão Constante é, no entanto, o ser ibérico que hesita entre as terras de Espanha e as de França ao sentir a fenda abrir-se com o gesto de Joana Carda e que pula para o lado de cá, colocando-se do lado da opção saramaguiana de quem vive na Península Ibérica e é contra o esquecimento atávico dos poderosos da Europa.
A Jangada de Pedra é o romance publicado em 1986, exatamente quando Portugal e Espanha aderem à CEE numa cerimónia cheia de significado ao usar o claustro do Mosteiros dos Jerónimos para assinar o processo. Saramago é contra por considerar que essa adesão não irá retirar os dois povos de um esquecimento de há muito e de uma falta de identificação com o continente além-Pirenéus. Na boca das personagens Joana Carda, Maria Guavaira, Joaquim Sassa e José Anainço, além desse cão com um papel preponderante – não é o único cão importante na sua obra – vão-se contando as grandes objeções a essa espécie de unificação europeia e dados exemplos dos desfasamentos entre as culturas e as realidades sociais das duas partes.
Pode-se dizer que A Jangada de Pedra é um argumento que agora se concretiza quando se observa a Inglaterra apostada na efetivação do Brexit, uma ideia para um romance que alguns escritores portugueses consideram genial, apesar de ser unânime que o romance sofre de um grande problema, um início fulgurante e a ausência de matéria-prima para se manter ao mesmo nível literário. Essa questão não escapou ao próprio autor, que como recorda o seu antigo editor, Zeferino Coelho, ouviu Saramago referir que “é um romance em que o clímax está no princípio”.
A comparação entre A Jangada de Pedra e o Brexit desejado pela Inglaterra salta à vista trinta anos depois, mesmo que esta saída do Reino Unido tenha protagonistas e situações bem diferentes das de José Saramago. No romance, os protagonistas não são tão inventivos como os políticos britânicos e o tremor que leva à separação é feito de simbologias pouco reais: uma meia de lã azul que se desfaz sem um fim, uma pedra lançada ao mar que viaja uma distância impossível ou uma revoada de estorninhos. Mas o ceticismo de Saramago e de algumas das suas personagens em relação à futura União Europeia é replicado no Brexit. Segundo o ex-ministro da Cultura o poeta Luís Filipe Castro Mendes “não foi preciso arrancar a ilha [a Inglaterra] do seu lugar porque já está separada fisicamente do continente”, no entanto pode imaginar-se a Inglaterra como a península de Saramago “numa deslocação política rumo aos Estados Unidos”. É, no seu entender, “uma perfeita analogia entre uma península que sai da Europa rumo à América Latina e uma Inglaterra que sai rumo à América”. Ou seja, conclui: “Um movimento que José Saramago antecipou.”
Na base da separação de A Jangada de Pedra está o ceticismo de Saramago. Para Castro Mendes, o “escritor participa de um ceticismo de esquerda, em que vê na Europa uma manifestação do poder do capitalismo, daí não simpatizar com a ideia europeia porque esta tem servido para aprofundar o fosso entre os países com diferentes níveis de desenvolvimento económico dentro da [futura] União Europeia – isso viu-se durante a troika, através de uma clivagem entre credores e devedores que é contra o ideário de solidariedade e de coesão -, que provocou uma evolução negativa nos últimos anos e o consequente crescimento do euroceticismo”.
Para Zeferino Coelho, tudo tem que ver com a maneira como José Saramago vê a Europa e dá uma versão sobre como nasce o romance: “Ele ia num comboio entre Paris e Bruxelas com mais gente e conversavam. Então, Saramago propôs às pessoas adivinharem as nacionalidades de cada uma e nenhuma delas falou em Portugal.” Será este esquecimento que há na Europa em relação a Portugal que está na origem do romance, além de que todo o processo da União Europeia do ponto de vista do escritor “depende do grande capital europeu”. Portanto, “achava que a utopia de haver uma fuga para esta realidade nos povos ibéricos só resultaria se pudessem ter uma vizinhança com os povos africanos e sul-americanos, que sofrem a mesma opressão da parte do grande capital europeu e americano. Era isto que ele tinha na cabeça e daí a ideia daquela rutura [terrestre], que é uma ideia mágica”.
É o potencial da metáfora inicial de Saramago na construção d’A Jangada de Pedra que mais surpreende os leitores. O seu antigo editor considera que essa criação “acontece muito na obra do Saramago, como no Ensaio sobre a Cegueira, em que as pessoas cegam sem se saber porquê, e assemelha-se ao que se faz na geometria: lança-se um conjunto de dois ou três princípios e deduz-se a partir daí. Foi isso que ele também fez nesse romance.”
Magia premonitória
A escritora Lídia Jorge considera que “na altura achou o livro interessante e, passado todo este tempo, ainda o vê tão forte e premonitório. Ultrapassa uma visão comum portuguesa, é internacional”. Para a autora, que recentemente recordou o romance por necessidade de escrever um texto sobre a questão da Europa, o que Saramago faz “numa forma um pouco irónica é intuir o que nós todos só hoje percebemos. Que os países quando não são ilhas gostariam de o ser”. No caso da Grã-Bretanha e do Brexit, a Inglaterra já “tem a grande vantagem de ser uma ilha, mas a Alemanha bem gostaria de ter sido uma ilha, tal como a França, e o mesmo se passa com Portugal, que também gostaria de se ter deslocado do seu sítio afastando-se de Espanha.” Acrescenta: “A história dos países que são tomados de ideias de grandeza porque têm uma história que é única começam a funcionar no imaginário como ilhas. José Saramago percebeu isto muito bem em 1986, transformando a península nessa jangada porque não é vista pelos outros europeus como um espaço geopolítico importante. O que ele demonstra é que se a Península Ibérica fosse deslocada, tornar-se-ia tão incómoda que toda a gente nela iria reparar.”
Também o escritor Mário Cláudio acha a tese de A Jangada de Pedra muito interessante: “A metáfora que José Saramago escolheu é um achado e qualquer autor europeu gostaria de a encontrar, mas a verdade é que só nós é que a poderíamos ter por razões de ordem geográfica e histórica e estaríamos em condições de levar avante um livro destes.” Já se fosse um autor inglês, diz, “não faria a sua ilha deslocar-se para o mar da América do Sul, antes rumar à Irlanda, por exemplo, porque a Inglaterra não tem um imaginário comum tão forte como nós com a América Latina”. Para Mário Cláudio, este romance tem características políticas muito especiais. Nada que estranhe: “Os meus livros são políticos também, mesmo que passados noutras épocas. É o caso da reedição recente de As Batalhas do Caia, que aborda a questão ibérica sempre recorrente da anexação de Portugal pelo país vizinho. Coincidentemente, ambos tratam de questões ibéricas.”
Lídia Jorge alerta ainda para o facto de na altura o romance “ter sido olhado de forma depreciativa porque a ideia que estava na base de José Saramago era a de ser contra a integração de Portugal e de Espanha na CEE. Aparece como um livro ilustrativo de uma ideia antieuropeísta, só que passado este tempo todo essa raiz desaparece para ficar a ideia pura, que é a criação de uma nova geografia. E o desejo que os países têm de uma nova geografia é muito forte, veja-se que no Brexit existe o aproveitamento absoluto dessa ideia e, no momento em que esse país está em crise, pensa que tal situação vem das vizinhanças e quer tornar-se uma ilha. Como já o são, aproveitam isso da forma que estamos a observar”.
Zeferino Coelho não se surpreendeu como a temática quando recebeu o original: “Nada daquilo é estranho na forma como Saramago via a Europa e as questões do mundo. Tem um pouco de realismo mágico, porque é um livro que começa com uma coisa fantástica – a separação do continente europeu – e segue-se um conjunto de coisas também fantásticas que vão acontecendo como surgem na vida, só que irão ter uma importância grande.”
Para o escritor Mário Cláudio, A Jangada de Pedra tem apenas o óbice do seu tamanho após a impactante metáfora inicial: “O livro aproveitaria se fosse um pouco mais curto porque haveria uma poupança de prosa benéfica.” Já para Luís Filipe Castro Mendes, o romance “é feito com a coerência que José Saramago sabia pôr no seu trabalho e nas alegorias que desenhava”. Explica: “Ele constrói o romance a partir de uma suspensão da credibilidade e aproveita esse arrastar telúrico da península pelos mares para criar uma verosimilhança que lhe é habitual. O leitor avança na leitura com aquele pressuposto e dentro dele constrói uma realidade verosímil – essa é a grande força da ficção e do grande romancista – dentro de um pressuposto de total inverosimilhança. Nesse aspeto é magnificamente construído, mas as ideias dos romances de Saramago são sempre grandes.
JOÃO CÉU E SILVA ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)