A REPORTAGEM DE 1979 EM QUE O “EL PAÍS ” REGISTROU A VISITA DO PAPA JOÃO PAULO II A AUSCHIWITZ

Quando o primeiro Papa polonês pôs os pés no maior campo de concentração da história: “No lugar onde foi pisoteada de modo tão horrendo a dignidade humana, foi possível a vitória mediante a fé e o amor”

A jornada de ontem foi histórica para o pontificado de João Paulo II, o primeiro Papa polonês. Pela primeira vez um pontífice católico atravessou o portão do maior campo de concentração da história, Auschwitz, onde morreram atrozmente mais de quatro milhões de pessoas, a maior parte delas judias. O papa Wojtyla, que tinha chegado de helicóptero vindo de sua cidadezinha natal, Wadowice, recusou o carro e quis entrar e percorrer todo o campo a pé. Entrou exatamente às 15h20 (hora local) pelo portão de ferro onde ainda se lê, em alemão, as cínicas palavras: “O trabalho liberta”. O Papa, sem capa vermelha, com batina branca, caminhava lentamente através dos blocos de tijolo vermelho, conversando serenamente com os dois representantes do Governo, um do Ministério de Relações Exteriores e outro da região de Auschwitz.


Ao seu lado, o novo secretário de Estado, o arcebispo Agostino Casaroli e o novo adjunto da Secretaria de Estado, o espanhol Eduardo Martínez Somalo.

Só um pequeno número de jornalistas pôde seguir o Papa através do campo de concentração. João Paulo II passou a alguns metros do único forno crematório que ficou intacto em Auschwitz.

O Papa chegou até o bloco número 11, onde estava a ala das torturas, e nos subterrâneos a famosa ala da morte, aonde eram levados nus, para morrerem de fome e de sede, dez prisioneiros condenados a dedo sempre que um fugia do campo.

Nessa cela esteve o famoso religioso dos conventuais menores, o polonês Maximiliano Kolbe, que, aos 47 anos, se ofereceu como voluntário para morrer em troca de um companheiro a quem tinham designado para a ala da morte, e que começou a chorar porque tinha mulher e filhos.

À porta do bloco 11 o papa era esperado pelo homem que teve a vida salva por Kolbe: é Franciszak Gajownizek, de 78 anos. O Papa o abraçou.

Ao entrar na ala da morte, o Papa observou, sem se deter, objetos que haviam pertencido aos prisioneiros. Depois, desceu uma escadinha, quase na escuridão, para chegar ao porão. Lá haviam sido instaladas duas salas de tortura.

Uma estava vazia, e a outra era a famosa onde esteve Kolbe. Esta estava iluminada. No chão, uma cruz branca. O Papa se ajoelhou e esteve em silencio com um ramalhete de cravos vermelhos e brancos na mão.

Crisântemos
Após alguns momentos de silêncio, o papa Wojtyla, com um nó na garganta, rezou cinco Ave Marias com os presentes, em voz quase inaudível.

Entrou então no pátio contíguo ao bloco 11, onde está o muro da morte. É onde os prisioneiros eram mortos com tiros na nuca. O Papa se aproximou sozinho. Levava nas mãos um ramo de crisântemos, ofertado por um menino. Ficou de pé, com a cabeça inclinada e os olhos fechados durante cinco minutos. Depois caiu de joelhos.

A seguir se dirigiu ao outro campo de concentração, Brzezinka, a três quilômetros. Lá, mais de 500.000 pessoas o esperavam desde o começo da manhã para ouvir a primeira missa de um papa num campo de concentração.

“No lugar onde foi pisoteada de modo tão horrendo a dignidade humana”, afirmou o Papa na homilia, “foi possível a vitória mediante a fé e o amor.” E em outro momento: “Cristo quer que eu, sucessor de Pedro, preste um testemunho perante o mundo do que constitui a grandeza do homem de nossos tempos e de sua miséria. Do que constitui sua derrota e sua vitória.” Depois de dizer que havia ido ali para se “ajoelhar perante este Gólgota do mundo contemporâneo, sobre estas tumbas, em grande parte sem nome”, o Papa disse que queria se deter na frente de cada uma daquelas lápides escritas em vários idiomas, inclusive o espanhol, mas esclareceu que “de modo particular me detenho diante da lápide com a inscrição em língua hebraica. Ninguém tem o direito de passar diante desta lápide com indiferença”. E depois de um aplauso que não acabava, o Papa surpreendeu toda a opinião pública mundial com uma frase que não estava no texto oficial: “Vou me deter também na de língua russa. Não acrescento mais comentários. Sabemos de que povo fala esta lápide. Sabemos qual foi a participação desse povo na última tremenda guerra pela libertação dos povos, na guerra pela liberdade dos povos. E tampouco diante desta lápide podemos passar indiferentes”.

O Papa disse ainda, sempre interrompido por aplausos: “Jamais um de costas para o outro, ao preço de servidão do outro, ao preço da conquista, do ultraje, da exploração e da morte.” E concluiu seu discurso com estas palavras, que ecoaram como um grito bíblico naquelas terras que ainda têm sabor de morte: “Pronuncia estas palavras o sucessor de João XXIII e de Paulo VI. Mas as pronuncia também o filho da nação que em sua história sofreu múltiplas atribulações. E não diz para acusar, e sim para recordar. Fala em nome de todas as nações cujos direitos são violados e esquecidos. Diz isso porque assim exigem a verdade e a solicitude pelo homem.”

JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)

Este artigo foi publicado, em espanhol, na edição impressa de sexta-feira, 8 de junho de 1979

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