O problema de Bento XVI continuará a colocar-se, no presente e no futuro, e porventura de forma cada vez mais frequente e intensa.
uitos dos que falam da renúncia de Bento XVI esquecem um dado essencial: na preparação dela, havia também que tratar da logística própria da saída de funções de um chefe de Estado, que o Papa também o é (e a saída de Bento num helicóptero, rumo a Castelgandolfo, muito nos fez lembrar o adeus de Nixon à Casa Branca), com a nuance não despicienda de a Santa Sé não ser um Estado como outro qualquer e de esta não se tratar de uma situação típica de fim do mandato de um presidente republicano, em que tudo é preparado, mais ou menos às claras, com apoio de um staff numeroso e ciente da sua missão terminal.
Neste domínio, tão limitado quanto essencial, a decisão mais premonitória da renúncia terá sido a designação, em Dezembro de 2012, de Georg Gänswein como arcebispo titular de Urbisaglia, mas, além disso, mais importante do que isso, a sua nomeação para o nevrálgico lugar de prefeito da Casa Pontifícia, responsável pela marcação das audiências públicas e privadas do Papa, cujo mandato não cessa com o final do pontificado e, nessa medida, permite assegurar a continuidade das coisas no período de sede vacante. Tratou-se ainda, como é evidente, de uma forma de reconhecer o papel de uma das personalidades mais próximas de Bento XVI, já que Georg Gänswein era seu secretário particular desde 2003.
Mais controversa terá sido a nomeação do novo presidente do Instituto para as Obras da Religião (IOR), o barão Ernest von Freyberg, cavaleiro da Ordem de Malta, pelo que isso implicou de constrangimento à liberdade de escolha do Papa vindouro, ademais num domínio tão sensível como o das finanças do Vaticano, que não há muito – mais precisamente, em Setembro de 2010 – gerara enorme celeuma, com a abertura formal de uma investigação a Ettore Gotti Tedeschi, então à frente do IOR, por suspeita de branqueamento de capitais, o que, entre o mais, levou ao congelamento de uma conta de 23 milhões de euros do “Banco do Vaticano” por este não ter sido capaz de divulgar os dados relativos a transferências de fundos.
Além da logística da saída, existia outro pormenor importante, importantíssimo: o ineditismo do gesto, cujo mais próximo precedente remontava a muitos séculos atrás. Ao contrário dos ritos e das praxes em que a Igreja é fértil, não havia grandes regras, porventura nenhumas, para organizar a renúncia de um Papa, ponto que a um homem com o perfil metódico de Ratzinger, um seguidor das tradições e das normas, deve ter suscitado tremenda perplexidade e não menor confusão, tanto mais que, além dos aspectos administrativos, digamos assim, havia que gerir e controlar os danos no espírito de mais de um bilião de católicos, já de si abalados pela cascata de casos de pedofilia no interior da Igreja – cuja investigação a fundo, convém lembrá-lo, começou precisamente no pontificado de Bento XVI, o primeiro Papa a expulsar padres pedófilos na história da Igreja, num impressionante número de 384 em todo o mundo, e em apenas dois anos, 2011 e 2012.
Do ponto de vista do governo da Igreja, é sintomático que, em Fevereiro de 2012 – ou seja, um ano antes da renúncia -, Bento XVI tenha nomeado 22 novos cardeais, a que juntou outros seis, em Dezembro desse ano, o que levou muitos a inferir, provavelmente com um fundo de razão, que o Papa se preocupou, entre outros factores, em introduzir equilíbrios no colégio cardinalício que, reunido em conclave, iria eleger o seu sucessor. Talvez isso indicie que o Sumo Pontífice começara a planear a sua saída não nas férias de Verão de 2012, como mais tarde confidenciou a Peter Seewald, mas uns meses antes, logo no início desse ano de 2012.
Saber se o Papa procurou condicionar o conclave através de novos cardeais próximos das suas posições (e, já agora, através da carta apostólica de 22 de Fevereiro, que alterou algumas normas relativas à eleição do novo pontífice), é algo que, por um lado, exigiria um escrutínio mais preciso da orientação de cada um dos novos cardeais e, por outro, possivelmente não iria permitir extrair conclusões de vulto e, menos ainda, incontroversas. Em todo o caso, parece seguro que, ao contrário do que é afirmado, ou pelo menos insinuado, no filme Dois Papas, Bento XVI não preparou Bergoglio como seu sucessor nem, de forma alguma, orientou as coisas para que tal acontecesse. Se isso, à superfície, redunda numa visão complacente para Ratzinger, que supostamente teria tido a grandeza de escolher uma personalidade radicalmente diferente e com perspectivas muito diversas quanto ao futuro da Igreja, a ideia de que o Papa Bento, de certo modo, “manipulou” a sua sucessão constitui um grave reparo à sua actuação como chefe da Igreja de Cristo.
Segundo Bento, um dos motivos que o levaram à decisão foi a consciência da sua fragilidade física, após uma cruciante viagem ao México e a Cuba, no termo da qual o seu médico o advertira que, por motivos de saúde, não mais deveria voltar a atravessar o Atlântico. Houve também um aspecto prático: a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, inicialmente marcada para 2014, fora antecipada um ano, para não coincidir com o Campeonato do Mundo de Futebol. Sem forçar a ironia, é curioso observar que, para a decisão de renúncia de um sucessor do apóstolo Pedro, também pesou um motivo de ordem futebolística, suma vingança do mundo temporal e da sociedade de massas em relação à Igreja e, mais ainda, à visão e à concepção que Joseph Ratzinger tem da Igreja.
Mas, quer no cansaço após a viagem ao Méxicoquer na necessidade de encontrar um Papa com saúde para atravessar o Atlântico, acaba por revelar-se o mesmo e único problema: sobretudo após o pontificado de João Paulo II, o ofício de Papa é hoje exigentíssimo em termos de saúde física e mental. Decididamente, o papado não é para velhos (mas são velhos que o exercem…).
Não por acaso, apesar de reconhecer que a alegação de incapacidade para exercer o cargo pode ter por base um “equívoco funcionalista”, pois a “função” não é o único critério nem o exclusivo propósito do ministério petrino, o Papa Emérito sempre foi sublinhando, ainda assim, a relevância dessa dimensão funcional e que “há coisas concretas que o Papa tem de fazer”, pelo que, queira-se ou não, a energia e a vitalidade de um Papa são aspectos essenciais para o exercício do seu múnus.
Ora, graças aos progressos da ciência e da medicina, é possível hoje, e cada vez mais, prolongar a existência física muito para lá do que é razoável pelas leis da natureza. É sintomático que, relativamente a todos os últimos papas, de João XXIII a Paulo VI, passando por João Paulo II, Bento XVI e Francisco, a questão dos limites de idade para o exercício do cargo sempre se tenha colocado, de um modo ou doutro. Num certo sentido, essa questão também emergiu no brevíssimo pontificado de João Paulo I, como se um homem, apesar de Papa, não pudesse morrer ao fim de pouquíssimo tempo em funções (porventura, por causa delas) sem que isso tenha de dar ensejo a um vendaval de rumores tenebrosos e às mais desvairadas teorias da conspiração. E o problema suscitou-se também em relação a muitos anteriores papas, a começar por Pio XII, mas aí o problema foi tratado à maneira antiga, com o Papa a definhar semi-recluso no Vaticano, longe dos olhares do mundo, com claros prejuízos para a Igreja, que na fase final do pontificado de Pacelli entrou num período pardacento e sombrio, eloquentemente ilustrado pelo flagrante anacronismo das exéquias fúnebres do Santo Padre.
Após o Vaticano II e do seu compromisso com o mundo temporal, por um lado, e sobretudo após o fulgor mediático do pontificado de João Paulo II, convertido em estrela pop planetária, a “solução Pio XII” deixou de ser possível. Num certo sentido, pois, ao tentar libertar-se do pesadíssimo legado do seu antecessor, Bento XVI mostrou-se, paradoxalmente, vítima dele, sendo a sua renúncia o reconhecimento implícito de que a presença na esfera pública e a marca do mediatismo se tinham, sobretudo desde Wojtiła, colado de tal forma à figura do Santo Padre que era e é impossível para um homem de provecta idade manter o ritmo e a agenda que os nossos dias impõem, ademais à frente de uma instituição gigantesca mas em crise, ainda atravessada pela revelação de novos ou antigos, mas ocultos e ocultados, casos de pedofilia, e pelo tremendo descrédito moral que tudo isso implica.
Resignar será, assim, uma cedência ao mundo temporal e aos seus sinais, à mediatização extrema da realidade e aos seus ruidosos resíduos, mas também uma escolha de paz e silêncio própria de quem se encontra em final de vida e em balanço antecipatório de uma vida-outra. Não deixa de ser irónico que tal tenha ocorrido com um homem que se distanciou do legado conciliar, de alguém que, poucos dias depois de renunciar – mais precisamente, em 14 de Fevereiro de 2013, num “encontro com os padres e sacerdotes de Roma” -, fez uma alocução retrospectiva do seu percurso espiritual em que menorizou o alcance do Concílio Ecuménico Vaticano II, retratando-o como não mais do que uma mera continuação do Vaticano I, e em que, a propósito daquele, opôs o “Concílio da fé”, o autêntico e louvável, ao “Concílio dos media“, superficial e desprezível. Acontece, porém, que foi, em certa medida, por causa do “Concílio dos media” que Bento XVI teve por bem sair de cena, o que não significa, obviamente, que o haja feito por pressão dos media.
No tempo de Paulo VI, quando se falava do estabelecimento de limites de idade para os bispos (75 anos) e para os cardeais (80 anos), tal foi considerado pelos conservadores uma inadmissível cedência a uma “prática mundana”. Não deixa de ser irónico que haja sido Joseph Ratzinger, um crítico das excessivas cedências da Igreja ao mundo profano e ao relativismo dos seus valores, que, com o seu gesto, tenha recolocado essa questão, e ao mais alto nível: o do Vigário de Cristo.
O debate sobre “pontificado a termo e papa pensionista” emergiu logo nos dias subsequentes à declaração de renúncia, e um prelado conservador foi cortante, dizendo que admitir a possibilidade de um termo fixo para o exercício das funções papais seria “uma ferida para toda a catolicidade”. Concorde-se ou não, o gesto de Ratzinger, tenha ou não criado um precedente para futuros resignatários, colocou com extrema acuidade a questão dos limites de idade dos sumos pontífices ou, se quisermos, da existência de limites físicos e mentais para o exercício de tal cargo, a que João Paulo II deu uma resposta negativa, levada ao extremo do seu sofrimento, e Bento XVI, de certo modo, uma resposta positiva, ao renunciar alegando motivos de saúde e cansaço. As consequências disso para a vida da Igreja ultrapassam em muito uma mera questão “funcional”, como a decisão de renúncia, tomada na solidão de si mesmo, foi ditada também por muito mais do que motivos estritamente funcionais.
A renúncia de um Papa tem reflexos eclesiológicos profundíssimos, pelo que obriga a repensar todo o sentido e a concepção da Igreja, o propósito da sua missão, o exacto estatuto, espiritual e profundo, da sua liderança cimeira. Saber se essa reflexão foi feita transcende os limites deste escrito, devendo apenas recordar-se que, além da ressonância “cismática” da convivência de dois papas – ambos, ao cabo e o resto, escolhidos com o beneplácito do Espírito Santo -, o final (voluntário) do pontificado de Bento XVI teve uma tonalidade crepuscular, como sucede no ocaso de todas as coisas.
Em simultâneo, Ratzinger desenvolveu um discurso que, curiosamente, não deixa de ter algumas afinidades com certas observações de um dos seus antecessores modelares, porventura aquele com quem ele mais se identificou: Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini, o Papa Paulo VI. Numa das suas afirmações mais célebres, Paulo VI disse, em 1972, que na Igreja existiam brechas, através das quais o fumo de Satanás entrara no interior do templo. De igual modo, em 23 de Fevereiro de 2013, no fim dos Exercícios Espirituais da Cúria Romana, já após ter renunciado ao papado, Bento XVI tomou a palavra na Capela Redemptoris Mater e, num breve improviso, falou de novo no Diabo e no Mal, dizendo que “parece quase que o maligno quer corromper a criação, para contrariar Deus e tornar irreconhecíveis a sua verdade e a sua beleza”.
Já no passado, numa audiência geral concedida dois meses antes de ir a Áquila, onde depôs o seu pálio no túmulo de Celestino V, o Papa revisitou Ticónio, um teólogo sobre o qual se debruçara há muito tempo, num artigo de 1956, para, a partir dele, falar do “mistério da Igreja” e aderir à tese de Ticónio sobre a Igreja como corpo bipartido, com uma parcela a caber a Cristo e a outra ao Diabo. Se isso era assim para Ticónio, que viveu no século IV, se o era também para Paulo VI, que em 1972 falou de uma infiltração satânica no seio da Igreja, foi-o igualmente – e, possivelmente, com acrescida intensidade e autenticidade – para Bento XVI, confrontado com sucessivas denúncias de crimes aberrantes, praticados ou ocultados décadas a fio com a cumplicidade e até o envolvimento de altíssimas figuras da Igreja – de qual Igreja, é legítimo perguntar, a de Cristo ou a do Diabo?
Na solidão de si mesmo, um homem confrontou-se com essa dúvida dilacerante, trágica, hamletiana, sendo este confronto com o drama shakespeariano mais um ponto de contacto com a figura modelar de Montini. Provavelmente incapaz de saber onde se situam as fronteiras entre a Igreja de Cristo e a Igreja do Diabo, onde uma acaba e a outra começa, já que o fumo satânico em todo o lado se infiltra, incluindo o Vaticano, Joseph Ratzinger optou pela saída que só aparentemente foi a mais cómoda, e declarou renunciar ao papado perante uma plateia de cardeais reunidos em consistório para canonizar mártires do islamismo. Que esse gesto tenha sido tomado por um homem que, durante anos, vigiou e puniu as infiltrações do Demónio na doutrina da Igreja, é só mais uma das muitas e grandes ironias em que a renúncia de Bento foi fértil.
É também irónico que sejam a ciência e a técnica, ao prolongarem a vida humana para lá das coordenadas da natureza, as responsáveis últimas pelo problema criado aos sucessivos vigários de Cristo e, portanto, à Igreja, como se a “soberania técnica”, para usar um termo de Karl Jaspers, se tenha imposto ao império da fé e da religião, em cruel vindicta por séculos de obscurantismo, real ou imaginário. Sendo esta conclusão certa ou errada (e, em boa medida, ela é errada – e injusta), o facto é que a questão da senectude dos papas tem cada vez mais acuidade, e talvez a decisão de renúncia de Bento XVI tenha sido o prenúncio do que está para vir, no agora imediato ou a breve trecho.
O que significa que, bem vistas as coisas, na renúncia de Bento esteve uma questão temporal e terrena, eminentemente contemporânea, vulgar e comum a milhões de outros seres humanos que, cada vez mais, enfrentam os singulares dilemas do envelhecimento e da perda de faculdades, físicas e mentais, mas a que a medicina e outras especialidades conseguem prolongar a vida, por vezes com nenhum ou tão pouca qualidade que até nos interrogamos, ao olhar para certas vidas, se elas merecem ser vividas assim ou, acima de tudo, se para nós quereríamos vivê-la de forma tão trágica.
E, assim, o problema de Bento – ou, se quisermos, o dilema de Bento – sempre continuará a colocar-se, porventura de forma cada vez mais frequente e intensa. Até nisso, o gesto do Papa Emérito teve grandeza e sentido das instituições, prestando, no derradeiro instante do seu pontificado, um extraordinário serviço à Igreja, doravante mais alerta, esperamos nós, para um drama vulgaríssimo que, colocando-se a todos os idosos e às suas famílias, se coloca também, como não poderia deixar de ser, aos sumos pontífices e à enorme família de milhões de crentes espalhados nos quatro cantos do planeta.
O facto de Joseph Ratzinger ter conseguido resolver esse problema de uma forma admirável (ou, para quem discorde, da melhor forma que lhe foi possível) nada garante quanto ao futuro e quanto à clarividência – e à racionalidade – dos seus sucessores. Portanto, a menos que se introduzam limites etários para o exercício do múnus papal, é possível que, até pela provecta idade em que são eleitos, e agora que Bento abriu um precedente, venham a repetir-se situações de renúncia, até de renúncias sucessivas, com vários papas eméritos a conviverem amigavelmente ou às turras, como sucede com tantos outros idosos nos centros de dia e associações de reformados e pensionistas. Talvez um dia, quem sabe?, isto venha a acontecer. E o que será, será.
ANTÓNIO ARAÚJO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.