“LE MONDE”: O JORNAL DIÁRIO QUE UNE A FRANÇA AO MUNDO HÁ 75 ANOS

A embaixadora Florence Mangin recebe o ‘Le Monde’ na embaixada.
© Paulo Spranger/Global Imagens

Criado em 1944 por Hubert Beuve-Mery, segundo uma ideia do general De Gaulle, o Le Monde é o diário mais vendido em França. O DN foi ouvir três franceses em Portugal sobre a sua relação com um jornal que os acompanha, muitas vezes desde a infância.

primeira memória que Florence Mangin tem do Le Monde é a do pai a chegar a casa todos os dias com o jornal dentro da pasta. Talvez por isso, quando teve idade para aprender a ler, a embaixadora de França em Paris tenha tido no Le Monde uma das suas primeiras leituras. “Havia sempre lá por casa em cima das mesas”, recorda, sentada no seu gabinete no palacete de Santos onde fica a embaixada e onde recebeu o DN para falar dos 75 anos do jornal fundado por Hubert Beuve-Méry em 1944, numa Paris libertada da ocupação nazi, nos finais da II Guerra Mundial, segundo uma ideia do general De Gaulle que queria um “jornal de prestígio”.

“Durante muitos anos li vários jornais ao mesmo tempo. Sobretudo quando era estudante. Mas o Le Monde foi aquele que se seguiu ao longo da vida”, explica a embaixadora. Também Laurent Goater tem uma longa relação com o vespertino cujo primeiro número foi publicado a 18 de dezembro de 1944, mas com a data de 19. “Os meus pais foram estudantes em Paris nos anos de mil novecentos e sessenta. Claro que ler o Le Monde, naquela altura, fazia parte da vida dos estudantes franceses. Levaram de facto este hábito para nossa casa na Bretanha, embora o jornal de referência fosse o Ouest-France“, explica o representante do partido Os Republicanos em Portugal. “O Le Monde era uma das grandes janelas sobre o mundo mas principalmente a fonte de artigos para pensar mais profundamente sobre os temas. Desde os meus 13 ou 14 anos, lia com frequência as opiniões. Fui estudante muitos anos fora do meu país, na altura não havia internet ou apps no telemóvel! O Le Monde era o jornal que sempre encontrei e lembro-me de guiar 50 milhas até à biblioteca da Universidade Pública de San Diego para o ler, até que consegui que a minha universidade fizesse uma assinatura”, recorda.

Ainda hoje, Laurent Goater, apesar de ser um homem mais de direita, mantém o hábito de ler o Le Monde: “Sempre foi um jornal da esquerda mas de uma esquerda muito culta, evoluída e aberta sobre o mundo. Perdeu muito na radicalização dos anos Pierre Berger, mas as colunas de opinião sempre mantiveram uma qualidade superior, e a parte internacional sempre foi e continua a ser muito forte.”

Christian Tison tem uma relação um pouco diferente com o jornal. Os pais, “oriundos de um meio muito modesto”, não tinham acesso a jornais “deste nível”, por isso só mais tarde contactou com a publicação. Mas o diretor do Instituto Francês de Portugal (IFP) garante que hoje o Le Monde é o jornal que lê todos os dias quando está em França. Em Portugal há pouco mais de um ano, Christian Tison admite que por cá não lê o jornal hoje dirigido por Jérôme Fenoglio com tanta frequência: “Só por vezes na mediateca do IFP.” Talvez porque está empenhado em ler a imprensa portuguesa “que também é muito boa”, uma forma de “melhorar o meu português e conhecer melhor a sociedade portuguesa”. Mas quando está em França, Tison não falha um dia: “É o diário generalista de referência, que oferece uma informação independente e investigações profundas.”

O diretor do Instituto Francês de Portugal, Christian Tison, costuma ler o 'Le Monde' na mediateca do
O diretor do Instituto Francês de Portugal, Christian Tison, costuma ler o ‘Le Monde’ na mediateca do instituto.

Investigações e Le Monde des Livres

São precisamente essas investigações que a embaixadora Florence Mangin destaca entre o que mais aprecia no Le Monde. “O que gosto muito neste jornal são as páginas Idées e também o Le Monde des Livres, que leio regularmente.” E, lá em casa, a embaixadora não é a única leitora do vespertino. Também o marido, italiano, não perde a rubrica sobre livros, apesar de geralmente dar preferência à imprensa do seu país. “Gosto dos artigos de fundo. Houve uma altura, em finais dos anos 90, início dos 2000, em que o Le Monde tinha uma rubrica “Europa”. Uma espécie de caderno diário sobre a Europa – tanto a nível comunitário como bilateral e eu gostava. Eu gostava dessa dimensão europeia porque é a minha matriz. E gosto dos grandes perfis de personalidades históricas ou políticas. São bem feitos. E as séries de verão. Que são ou sobre um tema ou sobre personalidades, com um fio condutor ao longo de seis ou sete edições e acho que permitem algum distanciamento, recordar um passado próximo mas que desapareceu. Esta abordagem temática, histórica ou de personalidades agrada-me”, conta Florence Mangin.

Mas a embaixadora também aponta alguns aspetos que lhe agradam menos. Sublinhando que se nasceu como um jornal da esquerda e assim se manteve muitos anos – “até com uma certa rivalidade com o Libération” – ,hoje o Le Monde é mais “central e neutro”, Florence Mangin explica que “houve uma evolução do Le Monde num sentido que não me agrada. Apesar de achar que isso mudou recentemente. Foi uma evolução no sentido de retomar artigos da AFP e das agências, muito factuais, pouco analíticos. Acho que se voltou a caminhar para algo mais exigente, mas houve um momento em que lia os artigos internacionais e europeus e ficava frustrada”.

Goater, que confessa começar sempre a ler o Le Monde pelo Editorial, tem outras “queixas”. Para o representante de Os Republicanos em Portugal “aquela coisa “radical de esquerda”” é o pior. “Não consigo. A coisa de ensinar os tolos como deviam pensar. As modernices… Gosto que me desafiem nas minhas convicções de catho de province mas não gosto que tratem qualquer tradição como a expressão de um arcaísmo. Aliás, arcaico, é o pensamento de que só alguns parisienses iniciados conseguem perceber o mundo.”

Destacando que quando compra o Le Monde depois de um dia de trabalho, fica ligado ao mundo – “o jornal faz jus ao seu nome -, Christian Tison explica ainda que gosta como os artigos que ali lê lhe conseguem dar uma visão distanciada da realidade. Apreciador das críticas de cinema do jornal, o diretor do IFP só lamenta que por vezes o Le Monde procure “imitar os outros jornais”.

11 de Setembro e a morte de Mitterrand

Vespertino, o Le Monde tem a particularidade de sair sempre com a data do dia seguinte. A edição do dia chega às bancas pelas 13.00 em Paris, Lyon e Toulouse, estando disponível ao fim do dia nas restantes grandes cidades de França e apenas no dia seguinte no resto do país e no estrangeiro.

Diário nacional pago mais lido em França e o primeiro em termos de número de exemplares vendidos (mais de 319 mil em abril), o Le Monde está presente todos os dias na vida de muitos franceses. Mas algumas edições ficaram para a história – com a data de 13 de setembro de 2001, quando em editorial afirmou “Somos Todos Americanos”, em solidariedade com os quase três mil mortos nos atentados nos EUA dois dias antes.

Um momento que marcou Florence Mangin. Mas a embaixadora não pode deixar de destacar outras primeiras páginas e coberturas do Le Monde. “Acho que os atentados em França em 2015 foram muito bem tratados tanto na altura, e tinha imagens fortes, como mais tarde. A forma como o jornal fez os perfis dos desaparecidos nas semanas seguintes, foi muito bem feito. E permitiu manter aquela memória e recordar que são pessoas. Houve muitos artigos sobre a reconstrução, sobre como estavam as famílias”, recorda.

Outro momento e outra capa que a marcou foi a da morte de François Mitterrand, em 1995. “Foi muito forte. Le Monde foi tratando com o assunto ao longo do tempo, com muitos artigos sobre o passado controverso do ex-presidente durante o regime de Vichy, foi uma cobertura interessante.” O momento e a cobertura da morte de Mitterrand também ficaram na memória de Christian Tison, que destaca a sua “sobriedade”.

Já Laurent Goater prefere não destacar um momento, garantindo que o Le Monde “é todos os dias. Cada edição tem a sua visão particular e exigente sobre o que se passa”.

Laurent Goater leva sempre o 'Le Monde' quando viaja.
Laurent Goater leva sempre o ‘Le Monde’ quando viaja.

Uma exigência explicada em parte pela “fidelidade dos jornalistas ao jornal e dos leitores aos jornalistas”, nas palavras de Florence Mangin. A embaixadora, que conheceu pessoalmente alguns dos jornalistas como Érik Izraelewicz, Henri de Bresson ou Jean-Jacques Bozonnet, admite que lê alguns dos artigos porque são escritos por determinado jornalista. E destaca os grandes perfis escritos por Ariane Chemin. “O nome atrai a leitura”, diz.

ALIANÇA ENTRE FRANÇA E URSS NA PRIMEIRA EDIÇÃO

O primeiro número do Le Monde chegou às bancas de Paris e das principais grandes cidades de França na tarde de 18 de dezembro de 1944, com a data de 19. O vespertino criado por Hubert de Beuve-Méry segundo uma ideia do general Charles de Gaulle, fazia manchete com a assinatura de um tratado de “aliança e assistência mútua” entre a França (recém-libertada da ocupação nazi) e a União Soviética. Esta primeira edição resumia-se a uma única página, frente e verso.

'Le Monde': o diário que liga a França ao mundo há 75 anos

HELENA TECEDEIRO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)

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