Toda a lógica da licitação é de uma autêntica Operação de Antecipação de Receita (ARO), vetada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Peça 1 – a mina de ouro dos bancos de dados públicos
Leia, primeiro, os dois posts abaixo.
Xadrez da privatização do Serpro e da Dataprev
A Neoway, do comercial de Dallagnol, e o comércio nebuloso de bancos de dados do setor público
Eles tratam das novas minas de ouro do mercado, os bancos de dados públicos. Até agora, não mereceram nenhum tratamento mais rigoroso da parte das autoridades, permitindo toda sorte de jogadas.
No final de sua gestão no governo de São Paulo, José Serra concedeu à Experian o acesso ao CADIN (Cadastro dos Inadimplentes) estadual, sob controle da Secretaria da Fazenda – na época, dirigida por Mauro Ricardo. Pouco tempo depois, Verônica Serra adquiriu participação em um serviço de e-mail marketing, a Virid, com um valor de mercado máximo de R$ 40 milhões. Pouco tempo depois revendeu para a Experian por mais de R$ 100 milhões.
Outro episódio, este mais recente, foi quando, na prefeitura de São Paulo, João Doria Jr acenou com as tais doações empresariais. Uma delas consistia em trabalhar os bancos de dados da Prefeitura pela Neoway, sem custos para a prefeitura. A operação permitiu à empresa controle sobre a base de dados de todos os funcionários da Prefeitura.
A Neoway conseguiu fechar contratos com inegibilidade com várias Procuradorias da Fazenda e Ministérios Públicos estaduais. No caso da Petrobras, foi denunciado pelo fato de o intermediário da venda ter pago propina.
Esse episódio, mais outro relacionado a Deltan Dallagnol, que atuou como garoto propaganda em um comercial da empresa, fez com que os sócios americanos afastassem o presidente e fundador, sabendo do potencial de escândalos da operação.
Peça 2 – a licitação da Zona Azul
A gestão Fernando Haddad montou uma licitação para a venda de CADs (Cartões Digitais da Zona Azul). Todos os competidores que mostraram capacidade técnica foram autorizados a entrar no mercado com seus aplicativos. 15 foram aceitos.
Este ano, a gestão Bruno Covas decidiu montar uma nova licitação para unificar os serviços. O vencedor cuidaria da venda de CADs, ajudaria na fiscalização, daria manutenção nos espaços de estacionamento e poderia explorar negócios “correlatos” – sobre os quais se falará mais adiante.
Assumirá 41 mil vagas de estacionamento, podendo ampliar para 50 mil. Pelas estatísticas atuais, cada vaga permite, em média, 2,06 estacionamentos por dia útil. Considerando 256 dias úteis por ano, o faturamento atual é de R$ 1,6 bilhão/ano. Estima-se uma perda de 30% a 40%, de carros que estacionam sem o CAD. E há a possibilidade de um reajuste no preço do CAD, sobre o qual falaremos mais adiante.
Com esses fatores, a perspectiva de faturamento bruto pode ir de um mínimo de R$ 1,6 bilhão para R$ 3,3 bilhões.
Desse total, descontam-se dois pagamentos de outorga, um na assinatura do contrato e outro um percentual sobre o faturamento.Leia também: ABJD-SP repudia ação da PM-SP que vitimou 9 pessoas em Paraisópolis
Peça 3 – Mauro Ricardo, o operador
Principal artífice da operação, Mauro Ricardo é um conhecido operador político do PSDB. Foi homem de confiança de José Serra. No período de Serra no Ministério da Saúde, Mauro presidiu a controvertida Funasa (Fundação Nacional da Saúde).
Com o fim do governo FHC, foi presidente a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) a convite de Aécio Neves. Com Serra eleito Prefeito, tornou-se Secretário das Finanças e, depois, Secretário da Fazenda quando Serra foi eleito governador.
Depois ficou com Gilberto Kassab, passou uma temporada assessorando ACM Neto, na Prefeitura de Salvador e o governador Beto Richa, do Paraná, na condição de Secretário da Fazenda. Finalmente, voltou à Secretaria das Finanças da Prefeitura de São Paulo, na gestão Bruno Covas.
Peça 4 – o papel do Tribunal de Contas do Município
O Tribunal de Contas do Município (TCM-SP) vetou o primeiro edital. A auditoria identificou 33 irregularidades, fez 9 recomendações e solicitou 5 pedidos de esclarecimentos.
A prefeitura refez o edital, que foi submetida a nova votação. E, aí, foi aprovado por 3 votos a 2. Votaram a favor da liberação da licitação os conselheiros Edson Simões, Domingos Disseli e o presidente do TCM, João Antônio, inicialmente contrários.
Toda a lógica da licitação é de uma autêntica Operação de Antecipação de Receita (ARO), vetada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Exige-se o pagamento da outorga até dezembro de 2020 – ano eleitoral. Não define em quantas parcelas. O que significa que, se houver atraso na licitação, o prazo diminui, impedindo os competidores de calcularem o custo financeiro. Abre-se também a possibilidade de exigir o pagamento de uma vez, em caso de atraso da licitação.
A exigência visa dois objetivos: antecipar receita para a Prefeitura, em ano eleitoral; e restringir a competição a quem tenha cacife para cobrir o valor pretendido.
Há muitos sinais de direcionamento na licitação, que acabaram aceitos pelo TCM-SP.
Item 1 – valores da outorga
Em geral, esses valores antecipados guardam proporção com os investimentos previstos. Nessa licitação, os investimentos são de apenas R$ 43 milhões. O valor exigido é de R$ 595 milhões, com ampla indefinição sobre os prazos de pagamento. Pode ser em 12 meses, em menos de 12 ou à vista. Obviamente, é beneficiado o competidor que dispuser desse capital.
Item 2 – experiência com estacionamento
A licitação é para um serviço de vendas de cartões digitais de Zona Azul. Incompreensivelmente, nas especificações técnicas, incluiu-se o histórico de vendas de CAD (Cartões Digitais) e também de controle veicular – isto é, trabalho de estacionamento, que nada tem a ver com venda de cartões de Zona Azul.Leia também: Multimídia do dia
Depois das observações do TCM trocou-se “controle veicular” por experiência em “sistemas virtuais de pagamento e controle e/ou parquímetros eletrônicos, para utilização de estacionamento rotativo, de, no mínimo, 989.861 (novecentos e oitenta e nove mil, oitocentos e sessenta e um) veículos em um ano, pelo prazo mínimo de 12 (doze) meses ininterruptos”.
Manteve-se o termo veículo e parquímetros eletrônicos, mantendo a prerrogativa para estacionamentos.
Obviamente, é beneficiado quem já possui capital e estacionamento.
Item 3 – falta de necessidade de experiência prévia
O serviço exigido é puramente tecnológico. Trata-se de um sistema que permita não apenas a venda de CADs, como o controle do local, por GPS, o controle do tempo de permanência.
No edital, incluiu-se o histórico de controle veicular, e nada foi mencionado em relação à experiência técnica dos concorrentes. Não há exigências em relação à tecnologia nem à experiência prévia dos competidores.
Obviamente, o beneficiado é quem possui capital, estacionamento e não tem experiência prévia com venda de CADs.
Item 4 – a falta de clareza quanto ao primeiro reajuste
O edital diz que os reajustes podem ser feitos após 12 meses, pelo IPCA. Os cartões estão sem reajuste desde julho de 2014. A valor de hoje, teriam que ser reajustados no mínimo em 30%, o que alteraria substancialmente o cálculo do valor presente. Como ficou em aberto, dependerá do relacionamento do vencedor com a prefeitura, e com Mauro Ricardo.
Obviamente beneficiará quem tiver certeza da possibilidade desse reajuste imediato.
Item 5 – o capital social da Concessionária
Exige-se um capital subscrito e integralizado igual ou superior a R$ 25.823.889,00. Não tem lógica. O capital deve ser proporcional aos investimentos futuros exigidos. Nessa licitação, o investimento é mínimo, de R$ 43 milhões ao longo de 15 anos. E o peso maior, o pagamento pela concessão, é feito no início. O valor serviu apenas para criar barreiras à competição.
Obviamente, beneficiária quem possui capital, estacionamento, não tem experiência prévia, tem garantia de reajuste imediato no valor da cartela e tem capital social superior a R$ 25,8 milhões.
Peça 5 – O voto dissidente
No voto contrário, o conselheiro Maurício Farias enfatizou que o novo edital não tinha atendido em nada as recomendações do Tribunal, não havendo razão, portanto, para mudar seu voto.
“Por todo o exposto, na falta de elementos novos com respeito aos apontamentos da Auditoria assinalando o descumprimento das condicionantes impostas por este Colegiado, e que ensejaram a suspensão, voto, por coerência, contra a proposta da retomada do certame, porque o mesmo, nos termos do edital republicado, mantém-se contrário ao interesse público, tal como já era considerado por este Pleno quando a licitação foi suspensa”.
Não havia nenhuma exigência de melhoria, de inovações tecnológicas. É claramente uma operação destinada a antecipar receitas da CET em ano eleitoral. Não apenas saca receitas futuras, como cria um passivo – o financiamento futuro da CET – a ser jogado para futuras administrações. Hoje a CET é financiada com recursos da Zona Azul.Leia também: Multimídia do dia
Nem isso convenceu os três conselheiros do TCM, que aceitaram o argumento de que o dinheiro seria investido em saúde e educação.
Como anotou o conselheiro Farias,
Por fim, a alegação retorica feita pela Administração de que os R$ 595 milhões da outorga fixa visa gastos sociais com saúde e educação esbarra no que dispõe, de forma muito mais ampla, a Lei Municipal no 16.651/17:
“Art. 6o Os recursos do FMD serão destinados pelo CMDP para investimentos nas áreas de saúde, educação, segurança, habitação, transporte, mobilidade urbana, assistência social e investimentos nos campos de atuação das prefeituras regionais.”
Não se entendeu a mudança de posição do relator Simões e do presidente do TCM João Antônio. Votaram contra, endossando a auditoria inicial do TCM. Depois mudaram de posição, mesmo as principais recomendações não sendo acatadas.
Peça 6 – o beneficiário da licitação
Quem tem R$ 595 milhões em recursos, é dono de um estacionamento, Estapar, com capital social de R$ 625 milhões, e não possui experiência prévia em cartão digital? O Banco BTG, de André Esteves, o banco da Sete Brasil e de um sem-número de projetos polêmicos, poupado inexplicavelmente pela Lava Jato.
É nítido o direcionamento da licitação para o BTG.
Mas o pulo do gato está em outra brecha aberta pelo edital – e aceita pelos três conselheiros do TCM. Trata-se do item “receitas acessórias”, possibilidades de explorar livremente outras possibilidades no contrato, repassando parte do lucro à CET.
Analise o Banco Inter, de Belo Horizonte. É um banco digital. Estreou na bolsa há um ano e meio e já tem valor de mercado estimado em R$ 16 bilhões. Em agosto passado, o Softbank, do Japão, adquiriu 8,1% das ações do Banco Inter, pela quantia de R$ 790 milhões. Têm 3,3 milhões de correntistas.
Hoje em dia, o banco digital do BTG tem um número inexpressivo de clientes. Com o controle do Zona Azul, terá uma cliente potencial de 3 milhões de usuários absolutamente fiéis – porque sem alternativa para adquirir CADs. Mais ainda. Saberá as regiões frequentados pelos veículos, as lojas no entorno. Essa base de dados tem um valor potencial imensamente superior ao do próprio contrato da Zona Azul.
Há um mandado de segurança impetrado para impedir a licitação. Será relevante para mostrar até onde vai o poder dissuasório de André Esteves.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)