Os cenários são válidos não como verdades absolutas, mas como método para permitir a discussão organizada.
Peça 1 – os analistas do foco único
Traçar cenários políticos é tarefa complexa, por envolver um conjunto grande de variáveis e de temas, a economia, a política, os aspectos psicossociais, os movimentos do governo e do Congresso etc. Não é meramente uma analise dos movimentos do Congresso.
Fuja dos analistas políticos de foco único, e da análise estática. Há motivos para essa desconfiança.
- Há inúmeros fatores psicossociais que interferem na opinião pública e, no final da linha, vão bater nas preferências eleitorais ou no posicionamento das instituições. Composições, alianças, partidos políticos antecipam esses movimentos.
- O estado de espírito da opinião pública depende da sensação de bem ou mal estar social, influenciado por inúmeros fatores. A economia é um deles, mas não o único. A sensação de segurança, a leniência com a violência política, a maior ou menor resistência das instituições contra os abusos anti-democráticos são outros fatores. São conhecidos os processos midiáticos de criação de perigos (lembrem-se dos arrastões na praia, nos tempos de Brizola), de derrubada da auto-estima (Copa do Mundo, mesmo antes dos 7 x 1).
- Por outro lado, há inúmeros fatores que afetam as instituições, tornando-as mais ou menos resistentes em relação aos poderes do Executivo.
Por tudo isso, a analise empírica dos fatos é essencial em momentos de ruptura, como o que vivemos atualmente.
Peça 2 – os analistas unidirecionais
Exemplo desse viés analítico unidirecional foram as últimas eleições. Confira:
Padrão histórico – O primeiro turno começa indefinido, abrindo espaço para outsiders. Assim que começa o horário gratuito, é recomposta a bipolarização tradicional entre PT e PSDB, partidos com maior tempo de televisão.
Novos fatores – não se considerou: A) A delação da JBS, jogando o PSDB na vala comum dos partidos corrompidos. B) O fenômeno das redes sociais sendo trabalhadas há anos pela direita. E mais o adicional, a facada em Bolsonaro permitindo exposição maior na TV e desobrigando-o dos debates políticos.
Resultado final – Geraldo Alckmin, do PSDB, terminando com 5% dos votos.
Vamos a uma exemplo dessa metodologia no quadro atual:
Cenário atual – Bolsonaro tem recuado em muitos pontos, sob pressão das instituições e do Congresso. No momento, seu Partido 38 é inexpressivo e com poucas condições de se viabilizar. Sua base no Congresso é difusa.
Avaliação – Bolsonaro é a favor do estado de exceção apenas na retórica. No mundo real, se sujeita aos limites constitucionais.
Conclusão – se ele aceita, agora, o jogo democrático, significa que continuará jogando de acordo com as regras do jogo.
Ou seja, presume-se que todos os fatores permanecerão estáticos, e que o comportamento dos Bolsonaro, com poder consolidado, será similar ao comportamento atual, com poder em consolidação. Ora, um cenário pressupõe a tentativa de identificar os fatores relevantes e prever sua evolução. Senão, não é cenário, é fotografia.
Os cenários são válidos não como verdades absolutas, mas como método para permitir a discussão organizada. Decompondo o cenário em fatores, fica mais fácil questionar ou avalizar o resultado final e a própria lógica da disposição dos fatores.
Dadas as incertezas do cenário, a conclusão depende muito mais de cálculos de probabilidade intuitivos do que de certezas enganadoras.
Peça 3 – Bolsonaro e o AI-5
No nosso cenário, há uma certeza: os Bolsonaro são defensores incondicionais do estado de exceção e inimigos declarados do processo democrático. Tendo condições, implantarão seu AI-5.
Agora mesmo, planejam ampliar o conceito de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) permitindo o excludente de ilicitude (autorização para o militar matar) em manifestações contra o governo.
Mais que isso, pretendem utilizar o GLO para acionar a Força Nacional em episódios de invasão de terra, atropelando completamente a autonomia federativa.
Finalmente, explicitando a ameaça de um novo AI-5, não apenas através de filhos alucinados, mas do próprio Ministro da Economia, Paulo Guedes.
Tudo isso ao mesmo tempo em que as reformas vão destruindo direitos básicos da população da base da pirâmide e que a América Latina arde em chamas.
Portanto, a análise de cenários consiste em identificar os fatores centrais que impactarão positiva ou negativamente a força do bolsonarismo, para avaliar se ele conseguirá juntar as condições para o golpe final nas instituições.
Peça 4 – fatores determinantes
No curto prazo, há um conjunto de fatores que poderão fortalecê-lo.
- Economia experimentando alguma melhora cíclica.
Mais do que a situação econômica do momento, o que define o estado de espírito da população são as expectativas em relação à economia. Após períodos de ascensão social, qualquer interrupção nas expectativas de continuidade da ascensão gera resistências. Exemplos típicos são os metalúrgicos do ABC nos anos 70, terminando a década em muito melhor situação que no começo, mas com as expectativas frustradas pela crise. O segundo exemplo são os incluídos do período Lula-Dilma.
Por outro lado, depois de períodos de aperto, pequena melhora, por menor que seja, angaria apoio pela sensação de que, qualquer movimento contrário, colocará tudo a perder. Meros voos de galinha podem gerar clima de apoio.
Juros baixos e câmbio alto produzirão efeitos positivos na economia e fortalecerão o bolsonarismo? Ou persistirá o mal-estar com uma economia que continua andando de lado?
É questão crucial: em 1968, um dos grandes enganos da esquerda foi supor que as reformas de Campos-Bulhões mergulhariam o país em uma recessão por tempo indeterminado.
- A tutela do mercado
O desmonte do estado social, a privatização selvagem, abrindo espaço para grandes negócios, garantem o apoio ao bolsonarismo por essa entidade chamada mercado e pelo conjunto das associações empresariais. Por outro lado, as extravagâncias internas e externas do bolsonarismo, mais as manifestações que explodem em toda a América Latina, acenderam luz amarela para os grandes investidores.
Qual tendência prevalecerá, de apoio ou descarte?
- A tutela das Forças Armadas
Leia também: Modelos, por Gustavo Gollo
A corporação necessita de bandeiras de legitimação. Definitivamente, sua bandeira deixou de ser a defesa de algum projeto nacional ou de um entendimento mais sofisticado sobre o conceito de soberania, como em outros momentos da história, nos anos 30 e no pós-64.
Hoje em dia, a única forma de soberania que entendem é a territorial. Reagem às tentativas de instalação de bases estrangeiras no país, ou de internacionalização da Amazônia. Mas não demonstram a menor sensibilidade para outra formas de enfraquecimento da segurança nacional, como a venda da Embraer, a privatização da Eletrobras, com consequências dramáticas para um insumo estratégico, o desmonte da engenharia nacional, ou mesmo a expansão econômica do crime organizado.
Por outro lado, há indícios de interferência militar brasileira na política interna de vários vizinhos, Bolívia, Venezuela, Colômbia e Chile. Os militares, estariam redescobrindo seu papel nesse cenário extemporâneo de guerra fria? Essa é a pergunta que vale a estabilidade democrática ou a volta aos tempos do AI-5.
- O papel do STF
O guardião da Constituição está dividido em relação à marcha do arbítrio de Bolsonaro. Há um núcleo legalista corajosa, integrado por Gilmar Mendes, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Um núcleo confuso, com Dias Toffoli e Rosa Weber. E um núcleo não confiável, em relação à defesa dos valores democráticos, integrado por Luis Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin, Luiz Fux e Carmen Lúcia. E mais Alexandre de Moraes. E um caso rumoroso pela frente: as suspeitas que pairam sobre a família Bolsonaro, não apenas em relação ao caso Marielle como há inúmeras manifestações anti-democráticas.
Peça 5 – O bolsonarismo em marcha
Em regimes efetivamente democráticos, Bolsonaro já teria sido detido pelas instituições. Cada dia de vida significa o fortalecimento de sua estrutura, em cima dos seguintes trunfos.
- O fato de ser governo, que lhe confere poder de coerção e de cooptação.
- O peso do eleitorado, calculado em 1/3.
- A violência da sua militância.
- Redes associadas que estão sendo armadas, composta por neopentecostais, clubes de tiro, milícias, empresas de segurança doméstica, baixo clero das Polícias Militares, ruralistas.
- A expansão econômica acelerada do crime organizado, especialmente do modelo de ocupação territorial das milícias.
- Infiltração nas instituições, especialmente nos Ministérios Públicos, Judiciário, policiais, incluindo a Polícia Federal, associações empresariais e parte da mídia.
Por outro lado, estão enrolados até o pescoço em uma série de episódios que podem gerar movimentos de impeachment no Supremo.
Em artigo para a Folha, o calmo e firme Lewandowski rompeu a blindagem, o pacto de silêncio do STF, ao alertar Bolsonaro que abusos de autoridade poderão provocar o impeachment.
Vamos ver quais por quais caminhos a história vai se desenrolar.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)