Para lá do formalismo jurídico, existem leis que parecem inamovíveis, não precisam estar cunhadas na Constituição. Basta ver que, mesmo com o fim da escravidão há 131 anos, os negros brasileiros continuam sendo discriminados, marginalizados e explorados. Regra não escrita, mas que parece clásula pétrea
Soube que, há poucos dias, o ex-senador Cristovam Buarque, teria tuitado o seguinte: “Perguntas brasileiras: e se nossa primeira Constituição tivesse colocado a propriedade de escravos como cláusula pétrea, por sua importância fundamental na economia da época?”
Essa indagação, de um político por quem nutro respeito, evidencia o quão realmente são importantes suas próprias pregações por um livre debate de ideias e por uma educação de qualidade, em todos os níveis.
Ex-senador Cristovam Buarque – Foto: Orlando Brito
Declaração, a meu ver, infeliz e equivocada. Ao que parece, o ilustre professor, ex-reitor da UnB e ex-governador do DF, não se recordou, ao postar, de que, nos bancos escolares, aprendemos, desde cedo, que a Constituição Imperial, de 25 de março de 1824, foi outorgada, ou, em outras palavras, foi ditada por um autocrata que, pouco antes, dissolvera a Assembleia Nacional Constituinte.
Na referência, no rol dos direitos civis constantes da Carta Imperial, à abolição dos “açoites e da marca de ferro quente”, percebe-se o lugar que seria reservado aos afrodescendentes escravizados no novo país.
Não consta que Dom Pedro I defendesse ideias antiescravagistas. Sabe-se que, em sentido contrário, negou-se a cumprir o tratado que assinara com o Reino Unido britânico, em 1826, pelo qual o Brasil se comprometia a abolir o tráfico de escravos num período de três anos.
Mas, tampouco, tinha o imperador razões para antever um futuro de rebeliões libertárias dos que viviam em cativeiro e, assim, preocupar-se em garantir, cautelarmente, a perenidade do direito de propriedade dos escravos. A própria Grã-Bretanha, que abolira o tráfico de navios negreiros em 1807, só viria a decretar a abolição da escravidão em suas colônias a partir de 1833.
De toda maneira, soaria estranho, à época, tornar cláusula pétrea o direito de propriedade de escravos, pois a preocupação com a intangibilidade expressa de direitos fundamentais só seria objeto do constitucionalismo a partir da elaboração da Lei Fundamental, de Bonn, em 1949, após os horrores do nazismo, regime que levou a escravidão ao paroxismo.
Texto sempre depende de contexto. Num momento em que, no século XIX, se avultava, como elemento constitutivo do capitalismo, a luta pelas liberdades civis, dentre as quais a de ir e vir e a de contratar a prestação de serviços, mesmo os liberais mais radicais com assento na primeira Assembleia Constituinte brasileira eram escravocratas. O exemplo mais notório é o do parlamentar santista Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, relator, na Assembleia, do projeto de Constituição e irmão de José Bonifácio, o Patriarca da Independência.
A propósito: falando em direito de propriedade, nunca é demais ressaltar que a parte de Direito Civil das Ordenações Filipinas, de 1747, − editadas a mando de Dom João V, ainda sob a égide do pleno absolutismo lusitano − vigorou entre nós até sua revogação pelo art. 1807 do Código Civil, de 1916, sancionado pelo Presidente Wenceslau Braz!
Mas, se refletirmos bem, podemos dizer que havia, sim, uma cláusula pétrea na Carta Imperial de 1824: a que declarava o seu outorgante “defensor perpétuo do Brasil”. Esta perpetuidade, no entanto, durou pouco mais de sete anos. No dia 7 de abril de 1831 abdicava do trono.
Preferiu, a defender o Brasil para o todo e sempre, voltar a Portugal para lutar contra seu irmão, Dom Miguel, pelo controle da coroa portuguesa. Quando morreu, já era Dom Pedro IV, de Portugal.
A abolição da escravatura só viria muitas décadas depois, por um ato formal de sua neta, a Princesa Isabel. De forma alguma, porém, como uma dádiva outorgada pela autoridade estatal.
A Lei Áurea foi a culminância de lutas corajosas, desde os quilombolas do século XVII até os abolicionistas do século XIX, dentre os quais se destaca a figura de um eminente conterrâneo do Professor Cristovam Buarque: o pernambucano Joaquim Nabuco.
Para os negros, prevalecem, porém, ainda hoje, cláusulas pétreas que nunca precisaram ser escritas: a da discriminação, a da opressão, a da exploração e a da marginalização.
THALES COELHO ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)
- Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG
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