O cantor, músico e compositor morreu aos 77 anos, vítima de um AVC. Um dos músicos que marcou o período revolucionário, tornou-se nas últimas décadas um importante produtor musical.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, anunciou José Mário Branco logo no seu primeiro álbum, editado em 1971, em França, onde se encontrava exilado. Esse disco, com poemas de Natália Correia, Alexandre O’Neill, Luís de Camões e Sérgio Godinho, seria um marco na história da música portuguesa.
Nascido no Porto em maio de 1942, filho de professores primários, José Mário Branco é considerado um dos compositores portugueses mais importantes e renovadores do século XX. Estudou História das universidade de Coimbra e do Porto, foi militante do Partido Comunista Português, foi perseguido pela PIDE e exilou-se em França em 1963, com 21 anos, vivendo intensamente aí os acontecimentos de 1968.
Nesse tempo de exílio, recordaria mais tarde, percorreu o país para “divertir e dar força” aos trabalhadores que ocuparam escolas, fábricas, bairros e pracetas, com outros cantores portugueses e artistas franceses: “E foi aí que eu e outros artistas portugueses começámos a sair da nossa concha de exilados, e conhecemos muitos artistas franceses e de outras nacionalidades. E daí surgiram algumas afinidades artísticas”, relembrou o músico numa entrevista à Lusa em 2017, citando por exemplo a criação da cooperativa artística Groupe Organon, com quem chegou a gravar.
Foi em França que gravou, em 1967, o primeiro EP, Seis cantigas de amigo. E foi em Paris que o conheceu Sérgio Godinho: “E imediatamente desenvolvemos uma amizade. Começámos a fazer parcerias e letras para aquilo que viria a ser o seu primeiro disco, e o meu primeiro disco, que foram gravados mais ou menos ao mesmo tempo”, recordou Sérgio Godinho, em declarações à Agência Lusa. José Mário Branco editou Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades em 1971 e Sérgio Godinho lançou Os Sobreviventes em 1972. Os dois álbuns incluem parcerias entre eles e do alinhamento faz parte um mesmo tema, O Charlatão.
Permaneceram próximos e a última vez que colaboraram foi no álbum Nação Valente, de Sérgio Godinho, para o qual José Mário Branco escreveu o tema Mariana Pais, 21 anos: “Tenho uma dor muito profunda, de repente esta morte súbita. Sempre fomos extremamente leais. Nunca houve um desentendimento. No essencial estivemos sempre próximos e cúmplices. […] Somos irmãos de armas. As nossas vidas tocaram-se muito e tocaram-se em muitas aventuras criativas e pessoais”, afirmou Sérgio Godinho, sublinhando como Branco “teve uma importância fundamental no renovar da música portuguesa”.
Resistir sempre
José Mário Branco regressou a Portugal após a revolução de 25 de Abril de 1974 e sempre achou, como disse no disco lançado em 1976, que A Cantiga é uma Arma.
É por isso que, tanto quanto o “excecional autor de canções e orquestrador excecional”, o escritor José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), recorda a sua vontade mobilizadora e interventiva: no dia em que chegou a Portugal, vindo do exílio, organizou uma reunião na casa do pai, com a presença de José Jorge Letria, Sérgio Godinho e Carlos Paredes e “fez uma declaração política e cultural a explicar o que era preciso os cantores fazerem na época para prosseguir a concretização da liberdade e da democracia”. Como lembra Letria, em declarações esta terça-feira à Agência Lusa, José Mário Branco percebeu imediatamente que era importante “definir a estrutura da organização em que os cantores se iriam integrar para fazer chegar as suas vozes ao povo português”.
“Portugal perdeu um dos seus maiores criadores musicais de sempre”, conclui o escritor.
Nesse período quente, antes e depois do 25 de abril, José Mário Branco trabalhou muito com José Afonso, por exemplo, nos discos Cantigas do Maio (1971) e Venham Mais Cinco (1973). Já nessa altura, revelava-se o grande produtor:
“Há uma história gira com a Grândola, que resulta de um erro técnico meu. O Zeca chegou a Paris com aquela canção, tinha três quadras, era uma canção que ele dedicava a uma coletividade de Grândola… eu de miúdo conhecia o Alentejo. Era a época da Monda, eles iam para lá de manhã e quando voltavam ao fim do dia os homens e mulheres vinham abraçados cantando. O passo deles era: arrasta, pousa, arrasta, pousa. “Ó Zeca, vamos dar a isto a forma do cante alentejano. Tens de fazer a estrutura e eu queria acrescentar os passos dos gajos. O Zeca gostou da ideia. Há uma fotografia dele a aprender como são esses passos. Pedi ao técnico para estender cabos de 30/40 metros, marcámos o beat numa das pistas e gravámos três ou quatro minutos de passos como eles faziam, à volta dos quatro microfones. Foi às quatro da manhã, para não haver ruídos. Só que na mistura eu não estive atento e soa ao dobro da velocidade, parecem soldados. Um dia perguntei ao Otelo: “Porque é que vocês escolheram a Grândola, pá?” E ele: “É uma música tradicional que levantaria menos suspeitas da censura e porque tem aqueles passos que são mesmo de marcha militar.” “
O músico foi fundador do GAC – Grupo de Acção Cultural, que entre 1974 e 1977 realizou mais de 500 espetáculos no país e nos estrangeiro. A sua atividade estendeu-se ao teatro e ao cinema. Fez parte da companhia de teatro A Comuna, fundou o Teatro do Mundo, a União Portuguesa de Artistas e Variedades. No Teatro da Comuna, por exemplo, fez em 1978 a música para A Mãe e no ano seguinte para Homem Morto, Homem Posto, ambas peças de Brecht, com encenação de João Mota, que José Mário Branco interpretou ao lado de Carlos Paulo, Fernanda Neves, Manuela de Freitas, Melim Teixeira e outros. No cinema, destaca-se a sua colaboração com Paulo Rocha, tendo composto a música original para O Rio do Ouro (1998) e A Raíz do Coração (2000) – no primeiro também participava brevemente como ator.
A edição de Ser solidário, em 1982, inclui a gravação de FMI, uma das composições mais célebres de José Mário Branco: um monólogo com cerca de vinte minutos gravado no Teatro Aberto no qual, acompanhado por guitarra acústica e flauta, recita e canta um texto que compôs “de rajada”, numa noite de fevereiro de 1979.
“Assumo inteiramente aquilo tudo, mas felizmente não estou no estado em que estava na altura, amadureci. Tenho a mesma atitude radical e orgânica, mas é uma emoção mais serena”, afirmou o autor à agência Lusa, recordando que estava a viver em casa do irmão em Lisboa, quando compôs o tema. “Tinha acabado de ser corrido do Teatro da Comuna e vivia-se ainda um refluxo do PREC”, disse. Sobre a atuação, em 1982, recorda-se de ter posto alguns dos espectadores a chorar. “As pessoas ficaram muito tocadas com aquilo, passaram o mesmo processo que eu ao escrever, que começo com um tom irónico e vou endurecendo e ficando apanhado pelo próprio texto”. “Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto”, dizia o cantor no fecho da interpretação de “FMI”.
Na sua discografia encontramos ainda A Noite (1985), Correspondências (1990) e Canções Escolhidas (1999). O último álbum de originais, Resistir é vencer, data já de 2004. O título mais uma vez era todo um programa. Nas diversas entrevistas que deu a propósito deste lançamento, José Mário Branco afirmou-se mais radical nas suas ideias e, ao mesmo tempo, mais ponderado, com os pés no chão.
Depois disso, José Mário Branco participou no projecto Três Cantos, ao lado de Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias, que resultou numa série de concertos, um álbum e um DVD.
Um novo olhar para o fado
Além de cantor, autor e compositor, foi também produtor. Ao longo da sua carreira, colaborou com diversos músicos, entre os quais Sérgio Godinho, Luís Represas, Fausto Bordalo Dias, Janita Salomé, Amélia Muge e Carlos do Carmo. “Sempre fiz poucos discos por causa dessa polivalência. Gosto muito de trabalhar para os outros. Não me sinto menos interessado por não ser eu a cantar”, dizia.
Em declarações à RTP, esta manhã, o fadista Camané, bastante emocionado, descreveu-o como um “artista fantástico, de uma dimensão incrível, muito para além de artista de intervenção”. Foi José Mário Branco que produziu muitos dos discos de Camané. Mas, da primeira vez, quando o fadista o desafiou a produzir um disco seu, em 1995, o músico ficou surpreendido: “Eu fiquei à rasca porque nunca me tinha metido no fado, e venho de uma geração que era contra o fado”, contou numa entrevista ao DN no ano passado.
Na verdade, começou a gostar de fado por influência da mulher, a poeta Manuela de Freitas, explicou então: “O primeiro fado que fiz é de 1979 e foi gravado em 1981. Já influenciado pela Manuela e com ela a acabar-me a letra, é o Fado da Tristeza, o Fado Penélope foi dessa altura também. E fiz uma coisa encomendada pelo Carlos do Carmo, chamada Raíz. Foi aí que comecei a perceber esse mundo e a aprender uma coisa básica: o fado é uma música típica e como em qualquer tipo de música há o bom, o mau e o assim-assim. É preciso saber distinguir isso.”
No entanto, durante os anos de 1980 acabou por se afastar do fado, só voltando a apreciá-lo verdadeiramente quando trabalhou com Camané: “Eu disse ao Camané: nós para mexermos nisto tem de ser com pinças, é microcirurgia. A primeira questão básica é: tudo depende de ti. O meu trabalho é ajudar-te a conseguires isso e fazer que tudo o que está à volta não prejudique isso. Claro que pelo meio vão aparecer as questões do gosto, estéticas, o interesse musical, a frase ser mais assim ou mais assado, a escrita musical. Mas uma coisa que já na época me fazia confusão era a barulheira dos músicos.”
“O José Mário mudou a forma como os músicos acompanham os fadistas”, confirmou Kátia Guerreiro na mesma entrevista. “Não deixando que os músicos se sobreponham à voz, deixando espaço para que as frases sejam cantadas e a guitarra efetivamente responda à voz, sem estar permanentemente a fazer ruído de fundo. Os músicos tradicionais que gravam livremente ficaram um bocadinho chocados…”
“O que tem de haver no fado, como em qualquer música cantada, incluindo as óperas, é um coito entre a palavra e a música”, dizia. O próprio José Mário Branco acabaria por se surpreender por gostar tanto de fado e de contribuir para a sua renovação, a partir dos anos 1990. “Foi a partir do Camané. É quando o fado começa a recuperar fôlego… O Camané andava naquele estado em que está o ator quando faz teatro, que é o risco de vida permanente, sempre a arriscar tudo. Isso cria uma coisa que eu e a Manuela chamamos o pathos, a força que vem da interpretação, não tem nada que ver com o drama ou com a comédia, tem que ver com a tragédia grega antiga: “O que é que estou aqui a fazer? O que é a vida? O que é a morte?” Então começaram a aparecer as inovações: agora um acordeão, agora um violino… (..) Mas eu não alterei a tradição tímbrica do fado. É tão relevante eu ter metido o contrabaixo como é relevante eu ter começado a controlar as notas da guitarra, os acordes da viola, a maneira de tocar da viola.”
Uma obra para ser ouvida e revisitada
Em 2006, com 64 anos, José Mário Branco iniciou uma licenciatura em Linguística, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Terminou o 1º ano com média de 19,1 valores, sendo considerado o melhor aluno do seu curso. Desvalorizou a Bolsa de Estudo por Mérito que lhe foi atribuída, dizendo que é “algo normal numa carreira académica”.
Em 2008, numa das suas raras apresentações em palco, apresentou na Culturgest, em Lisboa o espetáculo “Mudar de Vida”. Mas nos últimos anos, José Mário Branco resistia a espectáculos, porque se sentia “um bocado museológico em cima do palco”, não queria dar espetáculos só para “cantar as coisas do costume com as pessoas a acenderem isqueiros e telemóveis e abanar o capacete com as canções que têm vinte ou trinta anos”. Mantinha-se sobretudo nos bastidores, como compositor e produtor. Mas a sua obra continuava bem viva.
Em 2016, estreou no Indie Lisboa o filme Mudar de Vida, de Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo, dedicado à vida e à obra do músico.
José Mário Branco ganhou dois prémios José Afonso, em 1992 e 1996, prémio que destingue e reconhece aquilo que é feito em Portugal na música. E foi homenageado, em 2017, na feira do livro do Porto, no mesmo ano em que celebrou 50 anos de carreira. Para assinalar esse momento foram reeditados os sete álbuns de originais e um ao vivo, de um período que vai de 1971 e 2004. No ano seguinte, editou um duplo álbum com inéditos e raridades, gravados entre 1967 e 1999. Na altura, a propósito dos 50 anos de carreira, comentou: “Não são coisas que me motivem muito, tenho respeito pelo respeito das pessoas, mas essas histórias das efemérides…”
Também desde o ano passado, quase todo o arquivo do músico está disponível online no site do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), da Universidade Nova de Lisboa. “É um arquivo central para se perceber como é o universo da música de intervenção, a relevância política, social e cultural e também para potenciar reinterpretações do repertório. É memória que está ao serviço de uma reutilização”, explicou na altura Manuel Pedro Ferreira, diretor científico do projeto.
Em maio deste ano, foi lançado Um Disco para José Mário Branco, com 16 temas do autor revisitados por diversos músicos, de Osso Vaidoso a Camané, passando por Batida ou JP Simões. A ideia foi do radialista Rui Portulez que, explicou na altura, vê em José Mário Branco “um bom exemplo inspiracional e de luta” e queria registar uma obra que considera “intemporal”.
Como dizia esta terça.feira o músico Janita Salomé, “o José Mário Branco desaparece fisicamente mas a obra dele permanecerá – isto é um lugar comum, mas é necessário dizer -, é justo dizê-lo e fundamental, até para que este acontecimento triste, que é o desaparecimento do Zé Mário, seja um ponto de partida, faça com que a música portuguesa renasça, porque a obra que ele nos deixou é muito vasta e variada, e dá muitas sugestões para muitos trabalhos de muita gente que queira seguir a obra dele”.
MARIA JOÃO CAETANO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)