Foto de José SImão
Esta foi uma entrevista feita a três vozes durante a gravação do útlimo disco de Katia Guerreiro, Sempre e que teve produção de José Mário Branco e orientação artística e interpretação da sua mulher, a poeta e atriz Manuela de Freitas. Ambos formam um par profissional que tem trazido o fado de volta às origens e à tradição – sem trinados ou gritos, com boas letras e ainda melhores interpretações.
Foi isso que Katia Guerreiro procurou – apesar das divergências de opiniões sobre a vida e a política, uniu-os o fado. E aqui está este novo disco. Nesta entrevista, ou antes, nesta conversa, que decorreu em casa do produtor, Katia, José Mário e Manuela concordam mais do que discordam.
Conversam sobre o estado do fado, criticam, explicam e filosofam. Falam sobre este trabalho e explicam opções. Isto depois de partirem pedra sobre letras e músicas, em casa e no estúdio, noite após noite. Uma conversa longa e filosófica – com o rigor que José Mário Branco põe em tudo o que faz.
Gostava que contassem a história de como é que este disco começou.
José Mário Branco (JMB) – Com dois telefonemas. O primeiro desastroso, o segundo diplomático [risos]. Conta, se queres contar…
Katia Guerreiro (KG) – Claro que quero. Já no último disco pensei em quem é que me ia produzir o disco, e quem me vinha à cabeça, recorrentemente, era o Zé Mário. Mas sempre achei que não ia aceitar.
Porquê?
JMB – Porque és amiga do Cavaco [risos].
KG – Porque sou amiga do Cavaco, porque também tinha a ideia de que o Zé Mário era muito estrito em relação às posições extramúsica e há na sociedade uma posição um bocadinho dura em relação aos que tomam posições contrárias à nossa. Entendi sempre que a esquerda tem sempre alguma malapata comigo. Portanto, nem sequer me atrevi a convidá-lo. Depois tivemos uma experiência juntos no filme do Diogo Varela Silva e eu gostei imenso de trabalhar com o Zé Mário.
JMB – No filme tinhas um bom exemplo, o Rodrigo, que é um gajo de direita, e sou mesmo amigo dele.
KG – Mas eu não sabia. Tinha o número dele porque há uns tempos pedi-lhe uma música, só que depois demorei a fazer disco e quando ia pegar no tema ele mandou-me um mail a dizer: “Não usaste a música, dei o tema a outra pessoa.” Foi o Camané que gravou. Liguei-lhe. E ele: “Olá, menina. Como é que tu estás?” Estava toda a tremer. “Vou gravar um novo disco e eu gostava muito de ser produzida por si.”
Silêncio do outro lado.”Oh Katia, mas eu sou insuportável.” “Acho que é a única pessoa capaz de me dirigir e fazer que me mantenha nesta minha linha.”
Não foi desastroso…
KG – Ainda não acabou. Diz ele: “Então e com que músicos é que queres trabalhar?” “Com dois músicos, duas guitarras portuguesas.” “Não gosto muito de guitarras portuguesas. E com quem tocas viola? E eles aceitam ser dirigidos por mim?” “Falei com eles, têm imensa admiração.” “Isso é o que eles dizem todos, mas depois não gostam porque eu sou muito exigente, trabalho com eles nota a nota e saem de lá e dizem 30 por uma linha… Pronto, então fazemos assim: nunca vais dizer que JMB e KG estão a fazer um disco juntos, dizes que estão a tentar fazer um disco juntos.”
E agora a sua versão…
JMB – É mais dura. Eu também disse: “Não gosto do que você anda a fazer.” Sem carregado, mas com sinceridade total.
Porque é que não gostava?
JMB – Tenho uma visão muito crítica, a KG já está farta de saber, do que se anda a fazer com o fado. Há poucos fadistas que consigo ouvir. A partir dos anos 1980… acho que tem a ver com o pós-modernismo. O pós-modernismo é um fruto do neoliberalismo, do recuo das esquerdas, do desaparecimento dos projetos… Antes, mesmo quando os fadistas eram maus, cantavam mal, havia um lado que eu chamo de castiçal, castiço. Havia qualquer coisa que os prendia a uma tradição popular profunda, muito antiga. Ligo isso muito a uma atitude corporal, uma espécie de um desplante… há um desplante no fado como há no tango… Trabalhei na rádio muito novo, portanto conhecia tudo, Tristão da Cunha, Fernando Farinha, Amália Rodrigues, Marceneiro, Maria Teresa de Noronha, Hermínia Silva, aqueles nomes da década de 1950.
E o que é que acontece nos anos 1980?
JMB – O que começa a acontecer, e depois afirma-se nos anos 1990, é aquela coisa da inovação, a aparência da inovação, para sermos verdadeiros. Passou-se o mesmo na arquitetura. O kitsch, o efeito fácil, a busca da forma, a separação entre forma e conteúdo, que é uma mentira total (a forma é a materialização do conteúdo). Essa teoria do gosto pela repetição, pela publicidade, por tudo o que é efeito fácil e de impacto imediato, e o criador sujeita-se ao gosto dominante. Não está a lutar por coisa nenhuma, está sujeito ao mercado. E isso significa também que há um descompromisso total, o artista não é responsável pela obra, faz o que quer, faz o que entende, não tem nada de ser autocrítico. Em muitos campos da cultura começou-se a produzir taveiradas. E então começaram a aparecer as inovações e uma pessoa vai ouvir aquilo e pensa: mas para quê? Para que serve? O que quer dizer? Começou a acontecer inclusive com os meus músicos, pessoas que eu adoro. Altos músicos, começo a vê-los falar das coisas que estão a fazer de uma forma completamente descomprometida… Comecei a embirrar com a palavra projeto. Nós não tínhamos projetos, tínhamos entusiasmos, paixões, necessidade de dizer qualquer coisa... era uma coisa muito orgânica, embora houvesse disciplina, organização de trabalho (e de que maneira, porque os meios eram poucos). Mas tínhamos essa coisa de estar a ferver por dentro para chegar a uma coisa qualquer. Um caso típico é o Pedro Ayres Magalhães, de uma frieza… Madredeus foi pensado de cima a baixo como um produto para vender, e vendeu. O Fausto, numa entrevista, o jornalista perguntou-lhe o que achava de Madredeus. Ele ficou muito calado e disse: “A música portuguesa também de ter o seu Mateus Rosé.” É genial.
“O fado tem muito que ver com teatro”
E como é que viu isso no fado?
JMB – Aí em 1995/1996, o Camané pediu-me para trabalhar com ele. Foi naquelas sessões de fado que eu fazia com a Aldina Duarte na Comuna. Ele diz-me: “O David Ferreira propôs-me gravar um CD, queria que fosse o Zé Mário a dirigir.” Eu fiquei à rasca porque nunca me tinha metido no fado, e venho de uma geração que era contra o fado. Disse-lhe: “Camané, o fado é uma tradição antiga.” Tinha já bastante prática de lidar com a tradição rural, toda a experiência do GAC.
Mas sabia alguma coisa do fado?
JMB – Já começava a saber. Comecei a saber bastante sobre o fado quando vim morar para Lisboa e comecei a namorar com a Manuela [de Freitas]. Ela todas as noites ia ao fado, conhece o fado como ninguém. Viu o Marceneiro, os começos do Carlos do Carmo, tudo o que havia para ver. Começou-me a levar a casas de fado.
Quando foi isso?
Estou a falar de 1978/1979. O primeiro fado que fiz é de 1979 e foi gravado em 1981. Já influenciado pela Manuela e com ela a acabar-me a letra, é o Fado da Tristeza, o Fado Penélope foi dessa altura também. E fiz uma coisa encomendada pelo Carlos do Carmo, chamada Raíz. Foi aí que comecei a perceber esse mundo e a aprender uma coisa básica: o fado é uma música típica e como em qualquer tipo de música há o bom, o mau e o assim-assim. É preciso saber distinguir isso.
E não é uma questão de gosto?
JMB- Também é uma questão estética, mas tem muito que ver com o teatro. Eu estava na Comuna a trabalhar com a Manuela. Foi a altura da minha vida em que li todo o Hermann Hesse e estava muito marcado pela questão da verdade, do ato de presença que é o teatro. As discussões na Comuna, quando a gente fez A Mãe, eram isso: se é mentira. “Não estás a conseguir, repete lá isso.” A Manuela tem textos sobre isso, o fadista e o ator. O teatro é uma arte da presença. Não há mais nada: só há o ator com o seu corpo e a sua voz, e o público. E a obra existe quando é partilhada. Não deve haver um milésimo de segundo neutro, em que não acontece nada. Isto é o inverso do pós-modernismo. É a ideia de que tudo é significado. Se a forma contém essa informação é porque há um conteúdo que lhe corresponde. A forma é a materialização do conteúdo.
“O que tem de haver no fado é um coito entre a palavra e a música”
E como é que isso se expressa no fado?
JMB – Eu disse ao Camané: nós para mexermos nisto tem de ser com pinças, é microcirurgia. A primeira questão básica é: tudo depende de ti. O meu trabalho é ajudar-te a conseguires isso e fazer que tudo o que está à volta não prejudique isso. Claro que pelo meio vão aparecer as questões do gosto, estéticas, o interesse musical, a frase ser mais assim ou mais assado, a escrita musical. Mas uma coisa que já na época me fazia confusão era a barulheira dos músicos. Isso é típico na obra do Carlos do Carmo, que é um gajo que gravou discos em luta contra os instrumentos a ver se consegue sobreviver ao monte de estímulos sonoros que há à volta dele.
Disse que sim ao Camané?
Disse-lhe “vamos tentar”. E enveredei por uma ideia de produção completamente errada, de alguém que pegou nas coisas racionalmente em vez de pegar organicamente. Pensei: não posso meter este fadista num cubículo com um microfone à frente. Não tinha consciência das capacidades todas do Camané nem das vantagens todas de ir para estúdio. Decidi fazer um disco falsamente ao vivo.
Onde foi?
JMB – No palácio onde estava a Valentim de Carvalho, uma galeria de pintura que a gente transformou numa casa de fados. Estendemos cabos, mesas e cadeiras, toalhinhas aos quadrados, chouriço assado, vinho tinto, pão de trigo e milho e convidámos 50 pessoas várias noites… A única coisa que lhes pedi foi que contassem até 5 para bater palmas.
E foi mau?
JMB – Foi, porque pensei tanto nisto e não pensei nos músicos. Havia duas guitarras, duas violas, um baixo, e eu marimbei-me para aquilo e esqueci-me. O disco é insuportável, não se consegue ouvir, é uma barulheira! O Camané gravou o disco todo em luta contra aquela vaga de som que tinha nas costas.
KG – Depois de ter assumido este erro, o José Mário mudou a forma como os músicos acompanham os fadistas.
Como?
KG – Não deixando que os músicos se sobreponham à voz, deixando espaço para que as frases sejam cantadas e a guitarra efetivamente responda à voz, sem estar permanentemente a fazer ruído de fundo. Os músicos tradicionais que gravam livremente ficaram um bocadinho chocados…
“Às vezes os músicos querem mostrar serviço em notas”
Eles normalmente têm essa liberdade?
JMB – Querem mostrar serviço em notas. Se formos ouvir Marceneiro, ele punha-os em sentido, não os deixa fazer isso. E não se coibia de parar o fado e dizer: “Quem é que está a atuar, sou eu ou és tu, pá?”
Porque é que eles ganham essa preponderância?
JMB – Porque foi a partir de bons músicos de fado que nasceu o repertório mais interessante, aqueles mais clássicos (os Armandinhos, os Carvalhinhos), foram em geral violas de fado que inventaram nos anos 1940/1950. Por exemplo o processo do Marceneiro: ele chegava com uma melodia e depois eram os músicos que davam forma àquilo. Ele canta muita coisa que é apresentada como sendo dele. E é! Como o Fado do Cravo, a Mocita dos Caracóis… mas nunca tocou instrumentos. Essa forma musical era concretizada não pelo Marceneiro mas pelos músicos.
E as casas de fado, normalmente são dos músicos…
JMB – Eles foram ganhando essa importância, que eu avalio devidamente. Mas depois com o passar do tempo…
Podemos voltar aos anos 1990, é precisamente quando o fado volta a estar na moda…
JMB – Foi a partir do Camané. É quando o fado começa a recuperar fôlego… O Camané andava naquele estado em que está o ator quando faz teatro, que é o risco de vida permanente, sempre a arriscar tudo. Isso cria uma coisa que eu e a Manuela chamamos o pathos, a força que vem da interpretação, não tem nada que ver com o drama ou com a comédia, tem que ver com a tragédia grega antiga: “O que é que estou aqui a fazer? O que é a vida? O que é a morte?” Então começaram a aparecer as inovações: agora um acordeão, agora um violino…
E o contrabaixo…
JMB – Fui eu quem fez a inovação do contrabaixo, porque não me chegava aquela maneira do baixista a reforçar a viola, queria que o baixista fosse músico. Há uma razão para isto: um grande contrabaixista francês com quem gravei.
Encontrou-se com o contrabaixo em França por causa do jazz?
JMB – Com certeza. Fiquei muito propenso a trabalhar as linhas de baixo não à maneira renascentista do baixo contínuo mas à maneira de alguém que está a conversar também, como os grandes contrabaixistas de jazz. Depois começou com o Carlos do Carmo. Quando ele quis gravar O Teu Nome Lisboa, da Manuela, música minha, fiz-lhe uma versão só para ele e o contrabaixo, o Carlos Bica. Escrevi o baixo todo. A guitarra e a viola só entram no refrão. Havia uma grande razão para fazer isso…
Ganhava espessura…
JMB – E a partir daí a moda pegou.
Até que ponto isso não foi visto como o pontapé de partida para as inovações todas que se seguiram?
JMB – Mas eu não alterei a tradição tímbrica do fado. É tão relevante eu ter metido o contrabaixo como é relevante eu ter começado a controlar as notas da guitarra, os acordes da viola, a maneira de tocar da viola.
KG – Foi muito enriquecido o acompanhamento. Não é só ouvir um cantor a cantar fado, é tudo o que está por trás, e isso tem de estar em harmonia com o que está a acontecer em cena. Isso é o que Zé Mário criou no fado, um cenário ajustado ao que o protagonista está a oferecer.
JMB – Quando se transmite informação tem de haver uma razão para isso. Tem de ser uma ferramenta para chegar a qualquer coisa. O “ficar giro” não é uma razão artística, é foleiro. Não tem nada que ver com o bom gosto nem com a emoção, é desonesto porque a maior parte das pessoas está a fugir do foco. Há muita gente que à custa de querer ser genial rebenta com o espetáculo, fica tudo uma papa e o foco desaparece.
Essa relação intrínseca percebe-se bem na música de intervenção, mas no fado é mais complexo. Qual é esse valor intrínseco?
JMB – O fado tem os assuntos que todas as canções sempre tiveram. Era uma das coisas pelas quais a minha geração se virou contra o fado.
“Já fui contra o faduncho coradinho de tabernas e salões”
Porquê?
JMB – Foi o que eu depois escrevi numa canção “faduncho coradinho de tabernas e salões”. Quando se dá o 25 de Abril eu estava colaborar com um cineasta francês que estava fazer uma longa-metragem documental contra o fado, porque era a temática da impotência perante o destino, o pobrezinho mas honrado, da inferioridade da mulher, da aceitação da mulher dessa inferioridade. Em 1973, fiz uma canção que até os meus camaradas de esquerda se puseram contra mim. É o Aqui Dentro de Casa, claramente feminista, em que o gajo mau é um sindicalista. Eu tive discussões de caixão à cova com camaradas de esquerda. E eu dizia: “Isto foi inspirado por uma casal que eu conheço. Ele é todo esquerdalho e em casa é um facho.”
Os temas do fado são os que a música popular sempre cantou.
JMB – Todos. O fado é um estilo, não é uma temática.
Se bem que tem no nome a temática…
JMB – Sim, talvez. Nisso já não me meto muito. Nos anos 1930 o Salazar proibiu tudo o que era fado social. Havia fados da Guerra 1914-18, que aliás o Camané já gravou, fados de crítica social, a falar da pobreza e da riqueza, havia fados sobre tudo e esses foram proibidos. O dono da casa de fados se queria que não lhe fechassem a porta tinha de proibir também. Depois houve a cristalização de um estilo que tem que ver com a lisboetice e o que o Estado Novo alimentou enquanto canção nacional. Nós ficávamos furiosos com isso porque “isto não é canção nacional nenhuma, é canção de alguns bairros de Lisboa “. O fado é uma coisa da vida dura e depois há essa metamorfose negativa que é feita pelo regime e depois, no começo dos anos 1960, há uma espécie de libertação, honras sejam feitas à Amália e ao Alain Oulman, isto sem desprimor de grandes letristas que houve. O Marceneiro vai muito para lembranças do campo, o moinho, as saudades de como era bom, acho que tem que ver com isso, com a liberdade total que sempre existiu nas músicas de tradição rural.
Mas como é que a essência pode ser o estilo? É uma certa contradição.
JMB – Não, porque eu posso pegar na mesma letra que a Katia canta com o Mouraria e fazer uma canção que não é fado. O que tem de haver no fado, como em qualquer música cantada, incluindo as óperas, é um coito entre a palavra e a música. Não pode ser uma palavra em cima da música, tem de ser outra coisa. Um filho não é igual ao pai nem à mãe, é outra coisa… e a canção é isso.
KG – Um dos processos mais difíceis deste disco foi o fado menor, um fado tradicional. Eu gravei o menor no meu primeiro disco, com um poema da mesma autora que gravei agora. Não têm rigorosamente nada que ver. Foi gravado noutro tom e as palavras sugerem outras interpretações. Com a ajuda do JMB recriei um estilado no menor. Este fado não tem melodia original… a partir daí é conseguir fazer qualquer coisa que ninguém tenha feito.
JMB – Se for uma coisa tua, feita com verdade, é automático que é diferente, porque as pessoas são todas diferentes.
Naquilo que a Katia cantou e nas primeiras versões, via esses tiques e defeitos de outros?
JMB – Completamente. É uma coisa identificável ao milímetro. O Carlos do Carmo quando apareceu, conta-me a Manuela, ela chamava-lhe o engenheiro hidráulico porque ele entrava em palco e na casa de fado de fatinho, só lhe faltava a pasta na mão, os braços para baixo ao longo do corpo e o texto sabido. O corpo não mexia, nem sequer tinha o gingar do Marceneiro. E quando ele dizia “o sol parece um morango”, eu via o morango. Isto é encarar o fadista como um gajo/gaja que cantando consegue dizer, e isto é característico do fado. O que é que eles levam para casa?
Estar numa casa de fados só com estrangeiros deve ser muito estranho para quem está a cantar…
JMB – Passa na mesma.
KG – Há pessoas no concertos a dizer que não perceberam palavra nenhuma que eu tenha cantado mas perceberam tudo o que eu quero dizer.
JMB – Resta saber de que gostam. Há gente para gostar de tudo. Há gente que gosta dos hambúrgueres da McDonald’s. Se um estrangeiro levar com uma enxurrada de clichés bem trabalhados, levados a extremos, acrobáticos…
KG – Batem palmas e vão contentes para casa, outra coisa é irem emocionados. Há artistas de fado que em França, que para mim é um barómetro, são considerados artistas de variedades.
JMB – Nunca gostei muito do circo…
Isto é tudo muito complexo, como é que se traduz no vosso trabalho?
KG – O objetivo da concretização musical foi o que mais me entusiasmou e mais me impulsionou a ligar-lhe depois da experiência do filme. Porque ele conseguiu, sem nos conhecermos e podendo ser dois polos opostos, dizer-me muito sucintamente, mas de forma muito certeira, aquilo que eu precisava para que o resultado da minha interpretação fosse o que foi. Tanto no fado mais revisteiro do filme como o outro tema… “Imagina que estás grávida”, disse-me. Eu já não estava, mas quando ele me diz isto o tema todo é de uma mulher que vai ter um filho e tem uma data de dramas à volta dela. Fui para o estúdio cantar e percebo que é isto que eu preciso. Para chegar ao estúdio e não olhar para o microfone como uma máquina mas sim como um veículo.
JMB – O microfone é um ouvido.
KG – Ele dizia-me: “Estás a cantar para o gajo, canta baixinho que o podes acordar.”
“Estava a cozinhar e a tomar banho e aquilo estava a tocar”
Fizeram essa análise antes do disco?
JMB – Foi tudo dissecado.
KG – Na primeira vez que vim cá a casa, ele e a Manuela fizeram-me uma prova cega de poemas. Deram-me uma pastinha com poemas sem identificação de autores. Fiz a escolha, que foi muito difícil porque o JMB apresentou-me coisas muito boas, muitos deles estão no disco, outros fui eu que trouxe, e chegámos ao ponto em que tínhamos muitos poemas nas mãos.
JMB – Neste processo todo o importante não foi a Katia entender o discurso, foi o muito trabalho que ela fez, e para mim isso foi o sinal. De um ensaio para o ensaio seguinte, perceber que ela tinha trabalhado imenso.
KG – Às vezes não… Mas gravei os ensaios todos e chegava a casa e ouvia. Estava a cozinhar e a tomar banho e aquilo estava a tocar. A interiorização e as observações do Zé Mário e da Manuela, estava tudo gravado.
JMB – É engraçado este trabalho, é o conflito dos mecanismos. Consiste em criar mecanismos favoráveis à expressão. Quando vais gravar ou para palco tens de levar as coisas sabidas, e isso implica ter mecanismos: “Aqui digo assim, aqui sinto assim.” A palavra mais certa talvez seja rotina do ator… A mecanização é completamente ambivalente, pode ser para o melhor e para o pior. O que faz a distinção? É se eu quando estou a repetir estou livre de reinventar ou não. Se estou lá ou se não estou lá.
Manuela de Freitas (MF) – Muitas vezes a gente chega ao fim do concerto e diz, por exemplo: “Camané, estiveste a fritar carapaus.”
JMB – Tudo bem cantado, mas ele não estava lá.
MF – Às vezes ele só chega no quarto fado.
Estão a descrever por palavras uma coisa que é muito íntima e muito instintiva…
MF – Para ele é uma coisa muito instintiva e para ti, Katia, também…
JMB – Do ponto de vista formal há coisas que estão presentes no fado de uma forma que não se encontra noutros tipo de música típica, que é a ornamentação da voz. O estilado. Depois, estruturas melódicas muito simples em cima do qual o cantor improvisa. Miles Davis e Charlie Parker estão a pegar numa melodia e a transformá-la naquilo que eles querem dizer.
É isso que permite o exagero?
JMB – O formalismo. Há essa parte que é profundamente jazzística, por isso é que uma das características musicais de que gosto mais no fado é o swing, o ligeiro atraso ou adianto da letra em relação à batida que está na base. Essa flutuação rítmica ao sabor do que se está a dizer, ao sabor da emoção do texto, é típica do fado também. Depois a simplicidade da base musical que faz que seja importante esse talento para estilar por parte do cantor. Nos fados mais cantados as estruturas são extremamente simples. São cantados tantas vezes, com tantas letras diferentes…
Há algum outro tipo de música que tenha essa forma?
JMB – Essa coisa de letras diferentes em cima da mesma música é típico do fado. É um resultado excelente da pobreza musical original do fado. Como é que o Marceneiro dá a volta àquilo com dois ou três acordes? É esse conjunto de características que faz a força do fado, que fez que resultasse a campanha para património musical. Não existe esta conjunção em mais arte nenhuma. O blues diluiu-se muito, o tango e a milonga… O cante hondo é outra cena.
Vai ser difícil manter essa autenticidade do fado?
JMB – O mundo não está muito propício a ter certezas acerca disso. Também não sei se um dia vai ser difícil comer um bom cozido à portuguesa. A cultura popular, de uma forma geral, está sujeita a uma enorme pressão. Antropologicamente é um dos graves problemas no mundo hoje. A globalização não é feita no respeito pelas culturas. A gente sabe que a cultura que temos hoje é o resultado de um processo histórico, mas quando este é feito ao nível do cliché – e o cliché tem uma força maior do que as bombas atómicas… Uma coisa que sempre gostei foi de esgrimir com o cliché, essa coisa de ir para o tango, o bolero, de ir para os estilos e começar a fazer espadachim com os gajos para ver se se consegue subir um bocadinho o gosto geral…
No fado também há o cliché que não é inovador, há o cliché tradicional, certo?
JMB – E mal cantado, vazio. É pôr uma forma a render a ver se passa, se fatura. Nunca vi tanta gente a cantar o fado que não tem nada que ver com fado. E falam todos uns com os outros de igual para igual. E eu não tenho nada que ver com isso. Foi o que senti no filme. Eu só dizia: “Tens fado por todos os lados, porque é que pões essa gritaria?”
Como é que as pessoas reagem a isso?
JMB – Ah pois… Chega ao momento da dádiva e vem um manguito.
MF – É muito difícil. O problema é que não percebem que cantar o fado é muito difícil. Há um exemplo, que é o Paulo de Carvalho…
JMB – O melhor cançonetista português, talvez de sempre, a voz mais bonita e mais bem cantada da canção portuguesa, põe-se a cantar fado e é uma desgraça. A gente já lhe disse isto.
Será que as pessoas saberiam fazer esse trabalho de contenção e seriam compensadas pelo público? Se calhar não…
JMB – O talento é uma forma de competência das condições adversas da ignorância. O talento normalmente é uma forma inata… não foi estudado nem construído, e essa forma de incompetência é uma vantagem incrível. Tem de haver um pathos, uma densidade emocional…
“Na escolha dos fados e na decisão final das letras foi a Manuela o nosso barómetro”
Como é que a Manuela de Freitas percebeu que o fado era importante?
MF – Comecei muito cedo a ir a casas de fados e a perceber a diferença entre uns e outros. Fui-me arrepiando ou não arrepiando. Não sei mais nada de fado, não sei explicar o que é, mas faz parte da minha vida, são as únicas coisas em que me sinto bem: no teatro e no fado.
KG – Na escolha dos fados e na decisão final das letras foi a Manuela o nosso barómetro.
MF – Mas sem saber a razão. Estes anos todos a trabalhar com o Camané, com a Aldina, a perceber a importância do casamento entre a música e a letra. Sou incapaz de sugerir…
Nesse sentido, faz as letras sem pensar na música que vai ser para elas…
MF – Quando escolho letras, mesmo sem serem minhas, sinto se é fadista ou não.
JMB – Como não sou de Lisboa, a minha noção da métrica do verso às vezes é um bocadinho diferente da dela.
Ah, por causa da pronúncia!
JMB – Temos discussões porque eu pronuncio de uma maneira e ela de maneira diferente. O problema com o suposto fado tem que ver com a relação com a palavra, e isso é um bocado consequência da influência grande que a Amália teve durante várias dezenas de anos.
Como?
JMB – O que chamo o prognatismo do fado, os queixos para a frente, que destrói em grande parte a estrutura vocálica da língua portuguesa. As vogais são resultado no estado em que está a boca no momento em que são emitidas. Um A é um A, um E é um E. O prognatismo leva à alteração da modulação das vocais. Cabeça para trás e queixo para a frente e leva a coisas ridículas. E isso é o efeito de a Amália ter 1,63 metros.
O que faz quando chegam ao pé de si com um trabalho de que não gosta?
JMB – Depende. Tento perceber se a pessoa não está ali para o melhor, está ali para triunfar na capital como o Rastignac do Balzac, e digo que não tenho tempo. Ou então já me aconteceu dizer a verdade e ter este tipo de conversa com as pessoas. Exemplifico e mostro.
MF – A composição é vida, é partilhar… O fado tem que ver com partilhar a vida. Não é preciso ter lido o Fernando Pessoa. Por isso é que eu acho que não é fadista quem quer mas sim quem pode. E mesmo que não seja popular, o Camané e ela não são populares, mas apanharam aquilo e depois vão contar uma história que pode ser a coisa mais parva do mundo.
JMB – Mas tem de ser bem contada.
Até que ponto não faz falta também essa vivência urbana, para que o fado não seja de miúdos betinhos, fechados, sem experiência…
JMB – Claro que faz. O facto de as casas de fado terem-se tornado restaurantes turísticos em vez de serem espaços conviviais.
KG – O fado tem uma função, que é a partilha, a verdade, a entrega. Que é, como diz a Manuela no poema, violentíssimo, e é preciso estar-se muito preparado para entregar. É preciso ter uma coragem imensa para subir a palco.
JMB – E gostar disso. Realizar-se fazendo isso.
KG – Quando digo há tantos anos que é no palco que me curo e me preparo para o resto da vida, é rigorosamente verdade.
Quando fores para o palco…
KG – Já fui toda diferente e ainda não cantei um único destes temas. Telefonei ao Zé Mário depois de um concerto em França e disse-lhe “tudo aquilo que me transmitiu, eu levei para palco, já não sou a mesma”.
MF – Claro que haverá dias, haverá alturas e haverá fados em que se anda atrás do espetáculo, não se consegue, não desce o santo.
“O que a gente quer agora é palminhas e lantejoulas”
Costumam ir ver os espetáculos dos discos que produzem?
JMB – É raro, é perigosíssimo. O pior de tudo são as que a gente sente que podiam ser espantosos e estragam tudo.
A questão é se eles teriam mais ou menos fama se fossem de outra forma?
MF – O que a gente quer agora é palminhas e lantejoulas.
KG – Se me perguntares se gostava de ter muita fama, era capaz de lidar com a fama mas não sei se gostaria de ter gente à minha volta que me tentasse influenciar de tal forma que eu tivesse de transformar aquilo que faço. Prefiro partir as pedras todas com a mão e construir. Não vou vender a alma ao diabo quando acredito tanto naquilo que faço.
MF – O público também não ajuda muito porque está desculturado.
No trabalho que fizeram houve o apuramento musical e depois o apuramento emocional… supersubjetivo
JMB – Tento que não seja. Tentar objetivar uma coisa que é altamente subjetiva, que é a música… tem a sua morfologia, a sua síntese, a sua semântica, a sua prosódia, que é a música das palavras. A música é uma organização de sons e silêncios e a fala também.
MF – Percebi o que é um arranjo quando ele me mostrou a Grândola cantada pela Amália, parece uma marcha fúnebre. É pôr a mesma música e a mesma letra e a orquestração dar-lhe outro sentido.
JMB – Há uma história gira com a Grândola, que resulta de um erro técnico meu. O Zeca chegou a Paris com aquela canção, tinha três quadras, era uma canção que ele dedicava a uma coletividade de Grândola… eu de miúdo conhecia o Alentejo. Era a época da Monda, eles iam para lá de manhã e quando voltavam ao fim do dia os homens e mulheres vinham abraçados cantando. O passo deles era: arrasta, pousa, arrasta, pousa. “Ó Zeca, vamos dar a isto a forma do cante alentejano. Tens de fazer a estrutura e eu queria acrescentar os passos dos gajos. O Zeca gostou da ideia. Há uma fotografia dele a aprender como são esses passos. Pedi ao técnico para estender cabos de 30/40 metros, marcámos o beat numa das pistas e gravámos três ou quatro minutos de passos como eles faziam, à volta dos quatro microfones. Foi às quatro da manhã, para não haver ruídos. Só que na mistura eu não estive atento e soa ao dobro da velocidade, parecem soldados. Um dia perguntei ao Otelo: “Porque é que vocês escolheram a Grândola, pá?” E ele: “É uma música tradicional que levantaria menos suspeitas da censura e porque tem aqueles passos que são mesmo de marcha militar.”
Produção e Direção Musical: José Mário Branco
Voz: Katia Guerreiro
Guitarra portuguesa: Pedro de Castro e Luís Guerreiro
Viola de fado: João Mário Veiga e André Ramos
Baixo acústico: Francisco Gaspar
Gravado no Atlântico Blue Estúdios em abril e maio de 2018 por António Pinheiro da Silva, assistido por André Tavares e Pedro Serraninho.
Misturado por António Pinheiro da Silva
CATARINA CARVALHO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)