Ex-presidente nunca se distinguiu por suas exacerbações à esquerda, menos precisa disso em um momento como o que está atravessando o Brasil, rodeado de incêndios políticos que provocam mortes e raiva em vários países irmãos da América Latina
A afirmação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de que saiu da prisão “mais à esquerda” deu a volta ao mundo e merece ser analisada. Isso me fez lembrar de quando Lula, recém-eleito presidente, tomando café em uma pausa de uma entrevista concedida a cinco correspondentes estrangeiros, entre eles o do EL PAÍS, aproximou-se de mim e me disse: “Acho que nem Aznar [o então chefe de Governo da Espanha José María Aznar, do conservador Partido Popular] é tão de direita como vocês pensam, nem eu sou tão de esquerda como pensam aqui no Brasil”.
Na verdade, Lula nunca foi de uma esquerda raivosa, e o Partido dos Trabalhadores também não. Não só o ex-sindicalista inflamado nunca foi de esquerda no sentido clássico da palavra, como sua capacidade de metamorfose, de que ele se gabava quando governava o país, levou-o a fazer alianças com a direita, com a qual pactuou e até se contaminou em assuntos de corrupção para garantir a governabilidade. Foi o que tentou explicar a seu amigo José Mujica quando disse: “É que no Brasil ou se governa assim ou não se governa”. Lula sempre foi um pragmático, às vezes até o exagero.
Mas se Lula nunca se distinguiu por suas exacerbações à esquerda, menos precisa disso em um momento como o que está atravessando o Brasil, rodeado de incêndios políticos que provocam mortes e raiva em vários países irmãos da América Latina. Um contágio dos desmandos que estão ocorrendo no Chile, Bolívia, Equador e Venezuela é a última coisa de que precisa neste momento o país que é o coração econômico do continente.
Os verdadeiros estadistas sempre foram aqueles que, para conter os perigos de desgarre da democracia ou de insurreições sangrentas, saíram às ruas não atiçando o fogo, e sim atuando como bombeiros capazes de defender a paz ameaçada.
Lembro-me de quando morreu o caudilho e ditador espanhol Franco, que deixou uma Espanha dividida salomonicamente em duas metades que pareciam irreconciliáveis graças ao rastro de dor e morte que havia ficado no caminho. Foi a lucidez dos então jovens dirigentes políticos, herdeiros de uma situação aparentemente sem solução, que deu vida ao criativo Pacto de Moncloa, que seria mais tarde imitado em muitos países em crise, um encontro de todas as forças políticas capaz não só de conter o conflito, como também de abrir novos espaços de liberdade e de democracia.
A chave foi a capacidade de todos os partidos, inclusive do Partido Comunista, de juntar o que os unia, em vez do que os dividia, em favor da reconstrução da paz quebrada pelo horror de uma guerra civil seguida por 40 anos de ditadura. Naquela ocasião, a decisão do jovem rei Juan Carlos I de prometer governar “para todos os espanhóis”, e de permitir que o Partido Comunista medisse sua força nas urnas, foi fundamental para o período de reconstrução da concórdia nacional que veio em seguida.
Se tentar apagar o fogo com mais fogo nunca deu resultado, essa continua sendo a metáfora que revela melhor o momento que vive hoje a América Latina, onde há quem deseje que também contagiasse o Brasil, aproveitando um momento como este de atrito político em que começam a aflorar nostalgias ditatoriais e desejos de vingança. E é em momentos como este que os líderes, que deveriam ser os mais responsáveis e capazes de erguer barreiras para evitar o contágio das chamas, têm oportunidade de se revelar à altura da situação e acabar entrando na História.
Todo o resto, por muitas justificativas que possam ser dadas, são paliativos para esconder desejos vãos de poder e de revanches pessoais ou de grupos, que só levam à autodestruição. São horas em que os maiores responsáveis pelo país devem deixar de lado os velhos rótulos de esquerda e direita para que, como ocorre com famílias desunidas em momentos de grave perigo, possam dar as mãos e tentar, juntos, salvar-se de algo pior que as brigas familiares.
Recorrer, em momentos de perigo, a imagens de hienas e leões para personificar os inimigos ou agir como o lobo em pele de cordeiro de que fala Jesus nos evangelhos é cair em outra imagem bíblica, a de um cego que guia outro cego e ambos caem no buraco. É no momento em que a casa começa a arder que todos devem dar as mãos em vez de se anatematizar, já que todos podem acabar presos no incêndio. E para quê? Não dizemos que o maior bem dos indivíduos e das nações é a paz, é não sofrer discriminações sociais, é haver pão e liberdade para todos e não para um punhado de privilegiados que se alimentam do sangue de escravidões atávicas?
E o que se pode dizer em relação a personagens como Lula e Jair Bolsonaro, que parecem se preparar para entrar no ringue para medir forças, vale também para as instituições do Estado, como o Congresso, o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. As três instituições deveriam oferecer à nação um exemplo de busca da concórdia perdida, em vez de se aproveitar das águas turbulentas para favorecer seus interesses, fechando as janelas para não ver a raiva que começa a aparecer nas ruas.
Se o velho ditado latino dizia “se quer paz, prepare-se para a guerra”, para nosso mundo de hoje, ao contrário, a única salvação seria levantarmos a bandeira branca da paz ao ver a guerra aparecer. Lula primeiro, pela grande responsabilidade que teve no passado com seus acertos, mais que seus desatinos. É agora que ele não pode errar nem pensar que erguendo bandeiras de guerra em momentos de tensão nacional poderá salvar este país, que hoje deveria dar um exemplo de racionalidade em um continente que parece estar perdendo a cabeça.
JUAN ARIAS ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)