Exposição do IMS resgata a obra do chargista, cartunista e ilustrador brasileiro que contou a história do mundo através de seus desenhos e espelhou os traços de uma sociedade machista e preconceituosa
Em 1902, um jovem carioca de 18 anos mandou uma de suas ilustrações —uma caricatura do então presidente Campos Sales— para a redação da revista Tagarela, semanário que reunia importantes desenhistas. Apesar da qualidade questionável do trabalho, ele foi publicado, dando início à carreira de um dos maiores nomes da arte gráfica no Brasil: José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), o J. Carlos, ilustrador, chargista, cartunista e quadrinista considerado o principal cronista visual da primeira metade do século XX no país. Agora, 300 itens de sua ampla produção (de mais de 50 mil obras) são expostas no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo, até o dia 26 de janeiro de 2020, na mostra J. Carlos – Originais.
A exposição não apenas presenteia o público com os traços e cores refinadas —ainda que de grande apelo popular—, como leva o visitante aos “bastidores” das obras, por meio de esboços que explicam o processo criativo de J. Carlos. Há, por exemplo, grandes pedaços de papel com o rascunho de diversos desenhos em um mesmo espaço. “A mostra está centrada no fazer artístico dele, com vários rascunhos, e no resultado final, luxuosíssimo, publicado na imprensa”, explica o também craque da caricatura Cássio Loredano, responsável pela curadoria da exposição, ao lado de Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires. Loredano destaca, por exemplo, o uso dos tons de dourado, algo muito sofisticado para a época, e que já chamava a atenção dos leitores.
Fazendo tudo à mão —utilizando lápis, caneta e pincel e especialmente o nanquim—, J. Carlos entregava trabalhos que pareciam criados com a precisão de uma máquina. Ao longo de 48 anos, seu trabalho cobriu alguns dos principais acontecimentos da História, como o advento da fotografia colorida, do automóvel, do avião, do rádio, do cinema, da televisão. O artista também contou as duas guerras mundiais, a guerra civil espanhola, a Revolução de 30 e a Semana de Arte Moderna no Brasil. Loredano destaca, inclusive, o papel do seu trabalho na propagação de um discurso antifascista. “Considerando que a propaganda nazi-fascista era muito forte nas décadas de 30 e 40 em toda a América Latina, foi muito importante ter artistas como J. Carlos fazendo uma contrapropaganda. Na Primeira Guerra Mundial, ele já era pró-aliados, então, quando o nazismo levantou a cabeça, sua obra já refletia [sua posição] contra esses totalitarismos”, explica o curador, que, desde 1995, estuda os traços de J. Carlos. “O trabalho dele era encantador e, ganhando o público pelo olhar, ele conseguiu disseminar suas opiniões antifascistas”, acrescenta.
Uma das quatro seções em que se divide a exposição está centrada nas charges feitas durante a Segunda Guerra, em que líderes como Hitler e Mussolini são retratados de maneira ridícula. Os demais espaços mostram a faceta artesanal de J. Carlos (a criação de letras, vinhetas, rascunhos e logotipos), parte de sua produção para o público infantil —os quadrinhos em formatos ousados (circulares, triangulares, assimétricos) produzidos nos anos 1920 e publicados semanalmente em O Tico-Tico— e sua sátira da política brasileira.
O cronista cobriu, sobretudo, os Governos de Getúlio Vargas (1930-1945) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), mas também eternizou em seus traços o cotidiano do Rio de Janeiro, principalmente o carnaval, em uma explosão de detalhes e cores. Cássio Loredano considera que o trabalho de J. Carlos abriu portas para que Millôr Fernandes fizesse o mesmo na segunda metade do século XX.
Além de cimentar seu nome na história da crônica visual, J. Carlos é considerado por pesquisadores um dos pioneiros do modernismo no Brasil por sua leitura de estilos europeus como art nouveau e art déco, marcados por traços geométricos inspirados em formas naturais. “Ele transcende o universo dos desenhistas, dos caricaturistas. Sua obra causa impacto até hoje, as pessoas reconhecem o traço, a estética de uma era específica, a belle époque, que ele conseguiu associar ao seu trabalho. Aqui ele foi único, original”, afirma Julia Kovensky, curadora e coordenadora de iconografia do IMS.
Preconceitos
Apesar da genialidade de J. Carlos, a exposição do IMS não deixa em segundo plano o lado menos louvável do artista, como seu humor politicamente incorreto, principalmente seu discurso preconceituoso para com negros, mulheres e outras minorias. “Ele era bem racista“, resume Loredano. Ao desenhar pessoas negras, J. Carlos recorria aos clichês visuais da época e traçava figuras com poucos traços, beiços enormes, olhos esbugalhados e movimentos exagerados e ridículos, quase animalescos. “Tudo é estereótipo e depreciativo, não há nuances físicas e fisionômicas nessas figuras. É o retrato de uma época feia, porque o público letrado daquela época era mínimo e reproduzia essas ideias racistas . Então, essa parte de sua obra é uma conversa entre iguais em preconceitos, ele e seu público. É trágico, porque é um artista fenomenal, que tem esse lado menos solar”, comenta o curador.
No catálogo da exposição, Rafael Cardoso, historiador da arte, escreve sobre os traços de racismo, sexismo, xenofobia e até antissemitismo na obra de J. Carlos. O especialista aponta que o artista dispensava um “tratamento depreciativo às figuras femininas, em especial às esposas e mulheres de meia idade, retratadas como crueis e fofoqueiras” e destaca que “seus desenhos cimentam os alicerces de uma identidade brasileira normativa: branca, católica, de classe média, como a maioria de seus leitores”.
J. Carlos só parou de trabalhar quando, em 2 de outubro de 1950, na redação da revista Cruzeiro, sua cabeça bateu na escrivaninha em que terminava mais um desenho, devido a um AVC fatal. Com sua morte, a fina poeira do esquecimento começou a cair sobre suas obras. “O país ignora esse monstro. É como se o Brasil pudesse viver sem Noel Rosa. É um luxo que a gente não pode se dar”, lamenta Loredano. “O brasileiro tem que cuidar de não perder memória, é preciso resgatar esse gigante da crônica”.
JOANA DE OLIVEIRA ” EL PAÍS” ( ESPANHA / BRASIL)