O quadro econômico, político e social impõem algumas mudanças substanciais em relação aos modelos tradicionais.
Há uma bela discussão em andamento, inspirado pelo admirável Luiz Carlos Bresser Pereira, sobre Brasil Nação, um conjunto de ideias que permita retomar os planos de desenvolvimento e de autoafirmação nacionais.
No entanto, o quadro econômico, político e social impõem algumas mudanças substanciais em relação aos modelos tradicionais.
Câmbio
Continua sendo fator essencial por dois motivos.
O primeiro, por devolver a competitividade à produção interna em relação aos concorrentes internacionais. Décadas de câmbio valorizado tiveram as seguintes consequências:
- Desestímulo ao aumento das exportações de produtos industrializados.
- Desestímulo à inovação das empresas, pelo fato de não conseguirem competir com empresas que recorrem à tecnologia importada.
- Transformação de parte da indústria em maquiadora, importando os componentes e limitando-se a montar a peça final.
Mais que isso. A política cambial molda o perfil da economia e da política, define os vencedores e os perdedores. No caso brasileiro, significou o fortalecimento inédito do setor financeiro em relação ao industrial. Consolidou, em parte relevante da indústria maquiadora, a defesa do real forte. Criaram-se, ai, duas peças de resistência contra a desvalorização cambial.
Um dos desafios centrais será a mudança na política cambial, o que implicará também em restrições ao livre fluxo de capitais, em um quadro em que os vencedores atuais são beneficiários do câmbio apreciado.
É o tipo do nó que só se resolve com o grande estadista, o Senhor Crise.
Mas não apenas isso.
Problema 1 – Os campeões nacionais
A bandeira da anticorrupção foi a mais eficaz arma do pensamento neoliberal contra as políticas desenvolvimentistas.
A razão é simples. Os benefícios ao mercado são impessoais, generalizados e institucionalizados em teorias econômicas falsas, que se legitimam pela adesão da mídia.
As políticas desenvolvimentistas, especialmente quando focam nos campeões nacionais, têm CNPJ do beneficiário.Os financiamentos se destinam a PJs específicos. As isenções também. Mesmo seguindo uma lógica econômica clara, fica fácil recorrer ao denuncismo, como foi feito pela Lava Jato. Basta identificar um benefício setorial qualquer, ou um financiamento previsto para o setor, e relacionar com qualquer contribuição de campanha. Tendo a mídia a favor, e uma opinião pública subdesenvolvida, fica fácil a criminalização.
Problema 2 – o cidadão exigente
Por outro lado, a ascensão econômica da classe D criou uma nova classe média exigente em relação aos seus direitos e aos serviços públicos. E, por emulação com a classe média já instalada, assimilou rapidamente conceitos como empreendedorismo e meritocracia, assim como a visão negativa do mesmo Estado que, com suas políticas públicas, permitiu sua ascensão.
Dentro da instabilidade social que caracteriza as idas e vindas da sociedade brasileira, há um estímulo forte para os novos incluídos tentarem se estabilizar socialmente emulando hábitos de consumo da classe média tradicional. E, dos bens de consumo, os mais requisitados são os bens de opinião.
Fortalece-se, então, uma formidável barreira ideológica contra o Estado social, estratificando a ascensão social e bloqueando a inclusão de novas levas de despossuídos. Vale o mesmo para a base da pirâmide econômica.
Por isso mesmo, não há nenhuma solidariedade com as políticas públicas e econômicas, por projetos nacionais, se a maioria da população não se sentir participante ou beneficiária.
As políticas desenvolvimentistas tradicionais não respondem a essas expectativas.
Problema 3 – desenvolvimentismo e responsabilidade social
A industrialização foi relevante para o desenvolvimento brasileiro. Mas todo processo desenvolvimentista foi dissociado das preocupações com o bem estar do cidadão. Pelo contrário, explorava a vantagem competitiva dos baixos salários ou da redução dos salários com as desvalorizações cambiais. A melhoria se daria como consequência, não como ponto central.
Essa visão acabou enfraquecendo as políticas desenvolvimentistas, e a base política não resistiu à primeira crise econômica. Jango caiu pela herança inflacionária de JK; Dilma, pela crise econômica de 2014/2015.
Se se pretende aprofundar a democracia, ela precisa se tornar um valor permanente. E se pretende consolidar um valor nacional, ele tem que se legitimar da forma mais ampla possível. É só é possível quando diretamente associada aos benefícios que traz para o cidadão eleitor.
Problema 4 – o insulamento da inovação
O desenvolvimento é um processos sistêmico, que precisa transbordar para todos os setores da economia. Ilhas de modernização – os financistas de FHC ou os campeões nacionais de Lula – são uma peça do processo, mas não necessariamente contribuem para o todo.
Nos anos 90, um dos modelos mais interessantes de melhorias incrementais foi na cadeia do frango da Sadia. A maneira de colocar a bica de água, a organização do alimento, a energia gerada pelos excrementos, tudo isso era compartilhado por toda a cadeia do frango. Perdeu-se quando a financeirizaçao primária, e o corte de custos sem discernimento, tomou conta da Sadia.
O avanço da JBS e de outros frigoríficos prejudicou enormemente as indústrias que gravitam em torno de produtos de couro e a própria cadeia produtiva da pecuária.
Houve algumas experienciais iniciais com o MEI (Movimento Empresarial pela Inovação) com grandes grupos se incumbindo de levar inovação para os pequenos fornecedores. Mas não avançou.Há que se louvar, sempre, o papel do Sebrae e de algumas federações de indústria trabalhando em conjunto para o desenvolvimento de arranjos produtivos.
De qualquer modo, o foco central é do espalhamento da inovação e dos avanços e não a criação de ilhas de inovação em campeões nacionais.
Problema 5 – a visão monotemática
Um dos grandes problemas das políticas públicas brasileiras – e das próprias políticas industriais – é a visão monotemática das questões nacionais.
Exemplos claros da ausência de visão sistêmica:
- Os programas de estímulo à indústria automobilística arrebentaram com a mobilidade nas grandes cidades. E não foram acompanhados de nenhuma exigência de contrapartida, sequer de ampliação do conteúdo nacional.
- Os programas de apoio aos grandes frigoríficos – como JBS e Berlin – provocaram uma cauterização, prejudicando os pequenos produtores rurais e as manufaturas de couro, como calçados e outros.
- O Minha Casa Minha Vida promoveu uma explosão nos preços de terrenos urbanos, como uma consequente elevação dos alugueis nas regiões centrais, expulsando os inquilinos para a periferia.
- Os programas de apoio aos campeões nacionais não vieram acompanhados de nenhuma exigência de capacitação dos pequenos fornecedores ou da cadeia produtiva.
Modelo de desenvolvimento sistêmico
Por todos esses fatores, o melhor ensaio de politica industrial-social foi o dos PDPs (Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo), gerada nos laboratórios da Fiocruz, cujos primeiro ensaio foi na produção de medicamentos essenciais, adquiridos pelo Sistema Único de Saude.
Não fosse o impeachment, provavelmente seria estendido a outros setores da economia.
Os princípios do programa são os seguintes:
Vocação brasileira
Na época, se imaginava que o Brasil seria a única democracia consolidada entre os BRICs e países-baleia. Como tal, precisaria montar programas que tivessem efeitos imediatos sobre a qualidade de vida da população em torno dos grandes problemas comuns a todos os emergentes.
O Brasil se tornaria, portanto, um especialista em indústrias de bem estar, desenvolvendo produtos e know how para oferecer para parceiros em desenvolvimento.
Todos os grandes países em desenvolvimento tem problemas semelhantes, para atendimento das necessidades de saude, educação, segurança, emprego. A estratégia consistiria em tornar o Brasil um especialista nas indústrias de bem estar, podendo exportar produtos e serviços para outros países.
O PDP
O melhor estímulo, em termos de política industrial, é a garantia da demanda. O câmbio, ao influir nos preços relativos, visa estimular a demanda. A Petrobras, ao incluir o conteúdo nacional em suas plataformas, garante a demanda.
O modelo o PDP consistiu em tratar os gastos públicos como investimentos, indutores de produção interna através da garantia da demanda.
O primeiro passo foi a negociação com laboratórios internacionais fornecedores do SUS, para a transferência de tecnologia para laboratórios oficiais – que, por sua vez, licenciariam laboratórios privados. A opção pelos laboratórios públicos obedecia a um princípio pragmático: se o laboratório privado fosse o detentor da tecnologia, em pouco tempo seria absorvido por alguma multinacional.
Os passos seguintes seriam o mapeamento da cadeia produtiva da saúde, os hospitais, laboratórios de exames clínicos ou home care e as técnicas de prevenção.
Em torno desse macrocosmo se juntariam os instrumentos de financiamento do BNDES, de aquisição de medicamentos do SUS, as políticas de assistência social, os mecanismos de financiamento da inovação da Finep, as parcerias com federações empresariais, como o Sesi, etc.
Exemplos de outros setores
Transporte urbano – o eixo central seriam as políticas de mobilidade – com preocupações com transporte público, poluição etc. Em torno deles, comissões pluri-setoriais definiriam o papel de cada setor no projeto geral, o transporte coletivo, o individual, o metrô, as intervenções urbanas, os testes de emissão etc. As políticas setoriais nasceriam harmonizadas com o todo.
Habitações populares – haveria a discussão sobre planos diretores, as metas de convivência social, com populações de vários extratos de renda, os controles sobre a especulação urbana, as discussões sobre técnicas de construção, o estímulo à inovação e ao desenvolvimento de modelos de conjuntos sustentáveis (com aproveitamento de energia solar, reuso de água etc), o apoio às reformas de casas, a expansão urbana com preocupação de aproximar emprego e moradia etc.
São apenas alguns exemplos. A indústria da Defesa, a Segurança Pública, a economia do verde, são setores aos quais se aplicaria essa metodologia.
O Brasil Nação
Obviamente há um enorme caminho pela frente, cujo ponto inicial é a recuperação da auto-estima nacional. De qualquer modo, as forças que começam a se organizar tem no anti-bolsonarismo e no discurso social os pontos de diferenciação.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)