EM ALGUM LUGAR DO PASSADO, MOREIRA SALLES E A VELHA PAIXÃO

O velho senhor vacila ao receber o disco de vinil. Era um lançamento da editora Revivendo com a cantora Alzirinha Camargo. Tenta disfarçar a emoção, guarda o disco e diz que ouvirá mais tarde. O restante da conversa é vaga. Seu pensamento passeia pela sala, não consegue se concentrar.
Naquela noite, sozinho na ampla casa dos Jardins, colocará o disco no aparelho, pedirá ao mordomo que sirva o vinho e mergulhará nas recordações.

Retornará no tempo, em uma digressão dolorida, intensa, até chegar a Poços de Caldas de 1936, o centro do galanteio nacional do período, especificamente no Gibimba, considerado o maior cabaré do país na época.

A cidade era coalhada de boates e cabarés. Para as famílias locais havia O Ponto (onde hoje é o edifício Bauxita) e O Bridge (depois, Casa Bela e Bar Estoril). As noites de gala, com a presença da fina flor do mundo político e econômico de então, aconteciam no Pálace Cassino, explorado pelos Visconti, protegidos do general Góes Monteiro.

Esticada

À uma hora da manhã, O Ponto fechava. Pouco depois, fechava o Pálace Cassino. Aí os pais de família, sem as respectivas, juntavam-se aos jovens e iam aproveitar a boemia densa do Gibimba.

Na entrada havia o cassino. No segundo salão, o restaurante, que também abrigava o salão de bailes.

Quem tocava o cabaré era o carioca Álvaro Pinto, rei do teatro de revistas, figura corpulenta, irmão de Valter Pinto e dono de uma coragem antológica. Certa vez, no Rio, desarmou sozinho o coronel West, figura temida que tinha uma morte nas costas.

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O Gibimba não parava nunca. A partir das 4 da manhã, a freguesia normal era acrescida dos notívagos dos demais cassinos. Lá, apresentavam-se periodicamente Silvio Caldas, as inesquecíveis Irmãs Pagas -as mais belas pernas que Poços já conheceu- e a paulista mignon, com cabelo “à garçonne”, que cantava com trejeitos de Carmen Miranda.

Era Alzirinha Camargo, contratada pelos irmãos Pinto para se apresentar em seus cassinos e cabarés. “Ai, hei de meter o samba / na cabeça do estrangeiro / nem que seja preciso / eu cantar o ano inteiro (…) Um samba palpitante / alegre e brejeiro / diz quanto é feliz o povo brasileiro.”

Jovem cantora

O samba de Benedito Lacerda e Herivelto Martins havia lançado a jovem cantora no mundo artístico em 1936. Como disputou uma música com Carmen Miranda, a imprensa especializada da época tentou montar uma competição entre ambas. Não colou.

Alzirinha era uma paulista de Piratininga, mas os historiadores costumam atribuir sua origem ao Brás paulistano. Começou a cantar nas rádios Record e Difusora. Depois foi para a Tupi do Rio. De fevereiro de 1936 a fevereiro de 1938, gravou sete discos e 12 músicas.

Chegou a Poços contratada, tendo como companheira uma cantora tímida, de nome Lucy de Almeida Prado, e na bagagem um caso antigo com um diretor técnico da rádio Record.

O nome artístico de Lucy era Roxane, especializada em “cançonetas” francesas.

Foram duas paixões simultâneas. A de Roxane pelo jovem prefeito de Poços, Justino Valadares Ribeiro, sobrinho de Benedito Valadares e recém-chegado à cidade. E de Alzirinha pelo velho senhor.

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Paixão

De 1938 a 1940 foi uma paixão louca, entremeada de brigas e reconciliações. A separação deu-se quando o velho senhor foi para os Estados Unidos a convite do Departamento de Estado.

Pouco depois Alzirinha seguiu para a América na orquestra do peruano Ciro Rimac. Ficou por lá até 1949, cantando e fazendo dublagens nos estúdios de Walt Disney.

Depois dos Estados Unidos passou mais três anos na Europa e retornou ao Brasil. Chegou a produzir alguns programas na rádio Nacional e perdeu-se definitivamente no anonimato.
Faleceu em 1982, em Santos, trabalhando como enfermeira na Santa Casa local. Havia uma única amiga no seu enterro.

Houve um derradeiro encontro entre ambos, em uma casa noturna de Nova York, a Copacabana, onde a cantora se apresentava. Foi um acerto de contas amargo, alimentado a álcool e ressentimento.

Depois daquela data, o velho senhor nunca mais a reencontrou. Sessenta anos depois, uma regravação da época ainda era capaz de trazer de volta velhas emoções perdidas.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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