Diagnóstico e projetos únicos
Fatos não ajudam obsessões do ministro
Estado fora da cena econômica
“Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião”. A frase famosa, atribuída a Lord Keynes, o maior economista do Século 20, não é, decidamente, alguma coisa que faça parte dos pensamentos do ministro Paulo Guedes. Independentemente dos fatos e das mudanças que possam ocorrer com eles, Guedes só tem um diagnóstico e um projeto para a economia brasileira.
O diagnóstico é o de que as fragilidades econômicas, no Brasil, estão no lado da oferta. É preciso limpar o terreno para as empresas e permitir a livre manifestação do mercado para estimular o empresário privado a investir e produzir. O projeto, coerente com o diagnóstico, é o de reduzir o tamanho do Estado e retirá-lo, tanto quanto possível, da cena econômica, ainda que prejudicando a proteção social aos mais vulneráveis.
Acontece que os fatos não estão ajudando o diagnóstico e o projeto de Guedes. A economia se arrasta, o desemprego se mantém muito alto, a informalidade no mercado de trabalho avança. Com isso, as receitas públicas minguam e o conflito distributivo, com ameaças de cortes crescentes nos gastos do governo.
Esses fatos se devem a uma aguda insuficiência de demanda, conforme um já robusto conjunto de estudos e pesquisas tem demonstrado. Cortes nas taxas básicas de juros, com o espaço aberto pela economia sem tração, podem ajudar na recuperação da atividade, mas não são, sozinhos, capazes de sustentar o crescimento.
Guedes, porém, parece não dar muita bola para esses fatos e insiste na obsessão do seu projeto de desidratação do Estado. Trilhões em privatizações e concessões ao setor privado, trilhões em economia de gastos públicos, reformas que reduzam o que ele chama de “privilégios” e cortem custos, mas que podem ser entendidas como medidas para retirar direitos e cortar benefícios sociais — esse é o projeto que, até agora, não foi possível assegurar na integralidade, mas vem sendo perseguido com denodo.
No fim dessa linha, quando todas as reformas estiverem implantadas, uma estrutura econômica enxuta e produtiva sustentará um ciclo de crescimento vigoroso e prolongado. Mas, por enquanto, com o crescimento anêmico, o ministro pede “um tempinho” para que tantas mudanças possam ser aprovadas, ganhar tração e surtir efeito. Como sacerdote de uma religião, Guedes oferece o paraíso lá na frente, mas parece não se sensibilizar muito com os sacrifícios e os purgatórios exigidos dos fiés no presente.
Superada, na prática, a maratona da reforma da Previdência, pelo menos no campo retórico constatou-se uma aceleração do projeto de Guedes. Sob o nome meio enigmático de “pacto federativo” baila no Congresso e na imprensa uma série de ideias com objetivo tão evidente quanto não declarado: desfigurar a Constituição de 1988.
Guedes quer, por exemplo, antecipar os gatilhos que disparam restrições a gastos públicos, principalmente com pessoal, no caso de descumprimento da regra do teto de gastos. Para isso, contudo, precisaria aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), já apelidada de PEC DDD, com a qual atacaria as despesas públicas obrigatórias.
O primeiro “D” é o da desvinculação de gastos hoje atrelados a certas áreas, como saúde e educação. O segundo é o da desindexação, com a qual o ministro em escapar da correção automática pela inflação, ferindo com isso o salário mínimo e os benefícios corrigidos por sua variação, caso das aposentadorias e pensões. O último “D” é o da desobrigação de o governo efetuar certas despesas, contrariando determinações do texto constitucional.
Extensa e detalhista, com seus 250 artigos (mais 114 nas disposições transitórias), a Constituição de 1988, entre defeitos e virtudes, tem operado tanto como guardiã segura da democracia brasileira quanto como repositório da proteção social da população. Prova de seu valor é que, apesar de todas as deficiências e insuficiências, o Brasil de hoje é muito mais inclusivo do que era há 30 anos.
Nesse espaço de pouco mais de 30 anos de existência, o texto constitucional foi modificado 110 vezes — recebeu 102 emendas, 6 emendas revisoras, previstas no texto original, e dois tratados com força de emenda. Mil outras emendas ainda podem ser debatidas e votadas. Enquanto isso, 120 dispositivos constitucionais aguardam regulamentação.
Existe, sem dúvida, rigidez orçamentária a dificultar a execução da política fiscal. Mas, sem entrar no mérito desta ou daquela despesa passível de ajuste ou atualização, reformar a Constituição com base numa avalanche de PECs é tomar um desvio que a democracia deveria vedar.
Se, depois de apenas três décadas, no espaço de uma geração e meia, o texto constitucional ficou obsoleto, o correto seria convocar uma nova Assembleia Constituinte com o objetivo específico de reescrevê-la e atualizá-la. Não querer reformá-la por inteiro no varejo de uma legislatura.
JOSÉ PAULO KUPFER” ” BLOG PODER 360″ ( BRASIL)