COMO A PROPAGANDA AMERICANA SE TORNOU A MAIS PODEROSA DAS ARMAS


Mas o que importa é como a projeção social edificante de uma economia em recuperação evolui para a máquina de plantar desgraças em que os Estados Unidos se tornaram na segunda metade do Século XX.

Se não fossem os danos aos pulmões causados pelos cigarros e o excesso de açúcar na Coca-Cola, diríamos que a publicidade cumpria ciclo virtuoso nos Estados Unidos da década de 1930. Com o país em depressão, a promoção do consumo era algo positivo e a máquina de informação pública parecia responder bem às demandas sociais.

A alienação — essa necessidade psicológica, em doses moderadas e na hora certa — era vendida a diferentes públicos: lamuriosas tramas sentimentais às jovens; cowboys aventureiros de chapéus claros (os mocinhos) e escuros (os bandidos), aos rapazes; enredos criminais ardilosos e contos sombrios de mistério, a ambos.

Os adultos compensavam as aflições da vida em tempos recessivos acompanhando novelas de rádio apelidadas de soap-operas porque patrocinadas por fabricantes de sabão; contemplando o luxo dos cenários, carros, roupas e piscinas de mármore onde se exibiam as estrelas do cinema; rindo de comédias de costumes com diálogos criativos ou encenadas por artistas impagáveis, como Buster Keaton, os três patetas (Moe, Larry e Curly), o gordo e o magro (Stan Laurel e Oliver Hardy) e Carlitos (Charles Chaplin), que se consagrava como crítico sério, muito sério, da realidade.

Em “Os anjos da cara suja”, filme de 1938, uma gangue de adolescentes (entre eles, James Cagney, que, mais tarde, comporia no cinema um tipo de gangster violento e alucinado) comemora com milk-shake suas aventuras em um bairro pobre. Boa parte da publicidade procurava, desse modo, encaixar interesses empresariais em campanhas edificantes: é o caso dos enlatados que pretendiam corrigir deficiências nutricionais– sopas de legumes e o espinafre cozido. sempre associado a Popeye, criado por Elzie Crisler Segar, em 1929. O marinheiro competia com outros bonecos famosos, Mickey e Minnie Mouse, que Walt Disney desenhou um ano antes, a partir de um ancestral de sua invenção, Oswald, o rato feliz

Cuidava-se pouco de guerras. Os super-heróis de quadrinhos, fortes, machos assexuados, — bem como suas namoradas e amigos íntimos — combatiam as várias formas do crime, essa encarnação do mal que permite reconhecer o bem. O perigo maior vinha do espaço, com personagens de perfil asiático, árabe, às vezes sobrenomes eslavos.

O público acreditava tanto em alegorias espaciais (Flash Gordon, Brick Bradford ou o próprio Super-homem, extraterrestre oriundo do planeta Kripton, palavra que, em grego, significaria “oculto”) a ponto de se apavorar quando Orson Welles encenou no rádio, em 30 de outubro de 1938, a invasão da Terra por marcianos.

Sempre, nessas aventuras, alguns homens, diferenciados, onipotentes, oniscientes, protegem a maioria dos demais, frágeis e inofensivos, contra demônios que devem ser exterminados. Sua superioridade é tacitamente aceita, natural, espontânea, às vezes de misteriosa origem: a moral dessa fábula é ambígua e perigosa.

Mas o que importa é como a projeção social edificante de uma economia em recuperação evolui para a máquina de plantar desgraças em que os Estados Unidos se tornaram na segunda metade do Século XX.

A primeira explicação deve ser buscada no contexto da Segunda Guerra Mundial. Os grandes empresários, que se opunham ao New Deal de Roosevelt, converteram-se à luta contra o nazismo quando perceberam — tal como Presidente Wilson, tardiamente, em 1917 — que a guerra europeia, aliada ao domínio do Pacífico ao superar-se o antagonismo do Japão, prometia ser um bom negócio.

Do ponto de vista contábil, que é o deles, foi, de fato, além da expectativa: os Estados Unidos restaram íntegros, robustecidos pelo esforço de guerra, em um cenário de eventuais concorrentes destroçados. Perderam 405.500 soldados, mas só a União Soviética teve 26 milhões de baixas, entre militares e civis, e a China, um pouco menos ou muito mais, conforme a fonte dos dados; a Alemanha, nove milhões, o Japão, três milhões.

Essa situação — e, principalmente, a imposição do dólar como moeda internacional de troca, pelo acordo de Bretton Woods, de junho de 1944 — abriu, no início, amplo mercado para a indústria norte-americana, mas logo transferiria o papel hegemônico aos banqueiros — o que pode ser verificado, no sistema plutocrático dos Estados Unidos, pela mudança de seu nível de representação, tanto no Congresso quanto em organismos influentes, como o Conselho de Relações Exteriores.

A segunda chave para entendimento do processo é o avanço notável das ciências sociais — não na militância crítica com que se destacam na Academia mas, pelo contrário, articuladas com técnicas ofensivas oriundas da Retórica — no domínio e manipulação da opinião pública. Foram conhecimentos de sociologia matemática, acumulados ao longo de três décadas (1930-1960), nas quais se fabricaram instrumentos estatísticos que orientam a mais potente das armas em uso nesta etapa da História.


Lições da guerra

Do ponto de vista econômico, a Segunda Guerra Mundial levou os Estados Unidos a uma espécie de paroxismo do New Deal: dispondo sem limites dos fatores de produção — dinheiro para investir, mercado para consumo, matérias primas em regime de virtual confisco — todas as atividades se aceleraram, da pesquisa científica à liofilização de grandes estoques de ovos e leite em pó ou ao armazenamento em tanques espalhados pelo país de óleos vegetais — principalmente de amendoim e algodão — que poderiam ser úteis, caso faltasse petróleo.

O pó dos ovos e do leite nutriram a expansão e exportação da indústria de sorvetes no pós-guerra. Os óleos, impulsionados por maliciosa campanha publicitária fundada em supostos benefícios para a saúde, foram impostos ao mundo como sucedâneos privilegiados da manteica, da banha suína e até de outros produtos vegetais, como a gordura (ou óleo) de coco. Revelou-se, aí, a abrangência da máquina de propaganda, que se imiscui na informação de ciência e compõe boa parte da literatura disponível a médicos, entre outros profissionais formadores de opinião.

Ponto para Joseph Goebbels.

O discurso sobre efeitos do colesterol e sua associação ao regime alimentar, tal como se difundiu desde então, é uma leitura apressada, superficial e interesseira de pesquisas (originariamente alemães, da década de 1890); foi sendo corrigido com o tempo, mas teve efeitos sociais que perduram.

A convocação das mulheres

Algo que teve continuidade e consequências sociais ainda mais importantes foi a mobilização de mulheres, em geral jovens, para ocupar vagas que se abriram nas linhas de montagem das fábricas e nos escritórios onde se operavam máquinas de escrever, calculadoras mecânicas e sistemas Holerith, para processamento de dados utilizando cartões perfurados.

Às mulheres, em geral, até então, destinavam-se papéis domésticos, numa sociedade em que a comercialização de serviços era ainda limitada. Algumas das maiores fortunas dos Estados Unidos se haviam acumulado à custa da demanda feminina por máquinas de costura movidas a pedal (as Singer), geladeiras, sabões, ceras, desinfetantes e uma variada coleção de cosméticos. Com a necessidade de “trabalhar fora”, abriu-se espaço a novas soluções; uma delas, típica e felizmente transitória, foi a moda do “penteado permanente”.

Para reduzir o tempo ocupado pelas moças com o trato dos cabelos, cabeleireiros esculpiram diferentes conformações de cachos formando penachos, pompons e coroinhas que eram, em seguida, aspergidas com um gel que lhes emprestava a consistência de fina palha de aço: assim perduravam por até duas semanas. Como a higiene desses ninhos era necessariamente precária, a moda incomodava os cavaleiros mais altos nos bailes ao som de orquestras — então ritual frequente nos ritos de acasalamento.

A mobilização das mulheres encantou os empresários porque eles descobriram que, como o custeio das famílias passava a ser repartido e é ele — a renda familiar — que determina o padrão de consumo da população, a convocação da reserva de mão de obra feminina duplicava a força de trabalho sem elevar a massa salarial.

Essa descoberta logo foi associada a outras reivindicações das mulheres– pelo voto, na esteira das sufraguetes; por economia própria ou recursos suplementares para educação dos filhos, para a maioria — de modo a constituir uma pauta mínima em torno da qual se articulariam as reivindicações feministas em um novo modelo social.

À medida que o processo de transformação progredia, novos serviços domésticos foram transferidos ou mecanizados: multiplicaram-se as confecções de roupas, os tecidos sintéticos, os equipamentos de congelamento e embalagem de produtos agropecuários e os salões de beleza; difundiram-se as máquinas de lavar roupa e louça, processadores de alimentos e detergentes.


Quando o Brasil era problema

Tal como a Inglaterra e o Japão, que se julgavam (ou julgam) protegidos de invasões por serem arquipélagos, os Estados Unidos sempre basearam a defesa de seu território na preservação do controle sobre um entorno que, além dos dois oceanos e dos gelos do Ártico, Alasca e Canadá (que são barreiras naturais) inclui a cálida vizinhança de uma colcha de retalhos de países latinos, ao Sul.

Tratam os norte-americanos, então, de preservá-los, se possível em conveniente pobreza, como mercado e fonte de matérias primas e de voluntários para dois exércitos: o de reserva de trabalhadores e regulação de salários na produção interna; e o armado, terrestre, marítimo e aéreo, que se espalha em legiões por centenas de bases no vasto império.

Dentre os países latinos, já desde o Século XIX — isso era patente quando da proclamação da República, em 1889 — o Brasil é objeto de preocupação peculiar, pela dimensão do território, população e pelos recursos naturais de que dispõe: seria capaz de oferecer resistência apreciável à diretriz firmada na Doutrina Monroe, de 1823 (“a América para os americanos”) e reformulada em 1840, por ocasião da guerra imperialista contra o México, quando se tornou pública a crença no “destino manifesto” que Deus teria traçado para os Estados Unidos — coisa que, na essência, está implícita no discurso dos “pais fundadores”, quando da Independência.

O “desafio brasileiro” só aumentou com a ocupação dos vazios geográficos (em São Paulo e estados do Sul, nas primeiras sete décadas do Século XX; no Centro-Oeste e Norte, mais recentemente); a industrialização (ainda que segmentada e dependente de importações); a expansão do ensino superior e da pesquisa científica; e, sobretudo, a revolução agropecuária que resultou em concorrência direta àquilo que é o alicerce histórico da riqueza norte-americana. Isso antes da localização e desenvolvimento de tecnologia própria e pioneira para exploração de reservas petrolíferas abaixo da camada de sal do solo do oceano: terá sido o que derramou o pote.

Como a guerra chegou a nós

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Nos primeiros anos da década de 1940, quando os Estados Unidos buscavam formar uma frente continental de apoio para a eventualidade previsível de sua entrada na guerra, o colchão protetor que cercava o país apresentou uma vulnerabilidade: as tropas blindadas com apoio aéreo enviadas pelos alemães, sob o comando do General Erwin Rommel, para socorrer seus aliados italianos no Norte da África alcançavam seguidas vitórias no confronto com os ingleses – situação que só começaria a reverter após a Segunda Batalha de El Alemein, travada no Egito, em novembro de 1942. Se chegassem aos territórios sob controle do governo pró-nazista francês (Argélia, Marrocos etc.) e formassem uma base em Dacar, a invasão da América poderia começar pelo Nordeste do Brasil que, desarmado, não tinha como se defender.

A primeira iniciativa de Washington foi propor ao governo brasileiro a cessão por 99 anos “do Nordeste Ocidental” — presumivelmente, o território dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas — para que, nele, pudessem cuidar da “defesa do Continente”, tal como acertado na conferência de Havana, de 1940. O Presidente Getúlio Vargas, que antes mantivera, com dificuldade, posição neutra e equidistância no conflito, enviou esse potencial ultimato ao Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra.

A resposta foi um texto emocionado, reproduzido por Hélio Silva em sua obra “Guerra no Continente — 1942”, da série O ciclo de Vargas. Nele, o general (que depois seria presidente da República e faria mais concessões aos americanos do o indispensável), relata a situação precária das forças armadas brasileiras, com peças de artilharia compradas na Alemanha e retidas na Inglaterra e aviões de fabricação italiana impedidos de voar por falta de peças. Logo no início, registra a “estranha dialética” que, negando-lhe condições para defesa do próprio território, propunha ao Brasil uma expedição, em navios estrangeiros, para “tomar terras de Portugal”, país (na época governado pelo “Estado Novo” fascista de Antônio de Oliveira Salazar) com que não tínhamos contencioso: é que os Estados Unidos prometiam, em troca da concessão do Nordeste, promover a ocupação brasileira do arquipélago dos Açores, rico território oceânico de aproximadamente 2.300 km2.

A negociação intentada por Getúlio junto a Roosevelt conduziu a um termo médio favorável ao Brasil, mas exagerado, pelas lentes americanas, no clima de guerra fria que se desenhou tão logo morreu Roosevelt e terminou a guerra europeia. Em 1951, quando Getúlio Vargas voltou ao Palácio do Catete, encontrou não apenas oposição de seus tradicionais inimigos — os conservadores urbanos e bacharéis da União Democrática Nacional, a oligarquia paulista e os comunistas de Luiz Carlos Prestes, mas também a embaixada americana seus dólares e seus agentes acenando com o horizonte ilusório da modernização dependente.

O golpe intentado em 1954 e que levou ao suicídio o presidente foi uma resposta óbvia à fundação da Petrobras, dez meses antes — momento glorioso para Assis Chateaubriand, que os Estados Unidos haviam elegido principal defensor de seus interesses e a quem privilegiaram, em 1950, com suporte financeiro e técnico para a implantação das primeiras emissoras de televisão. Mas também a primeira oportunidade dada a um empresário de comunicação (jornal e rádio) do Rio de Janeiro,Roberto Marinho, de servir às lucrativas causas patrocinadas por Washington.

NÍLSON LAGE ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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