
Nos próximos anos, o Brasil corre o risco do maior retrocesso da sua história, capaz de jogar fora quase 40 anos de conquista democrática e avanços sociais e 100 anos de esforço de desenvolvimento. Enfim, um retrocesso capaz de devolver o país aos piores tempos da Velha República.
Dias atrás tentei projetar um hipotético governo Tarcísio de Freitas fincado na aliança e milicialização da Polícia Militar, Forças Armadas, Centrão e mercado. O período em que o Centrão passou a dominar o orçamento, ainda no governo Bolsonaro, foi suficiente para consolidar o domínio cada vez maior do pior fisiologismo político no comando do país. A cada eleição, o monstro do orçamento secreto vai corroendo as entranhas do organismo democrático.
Agora, com os ventos que sopram da Argentina de Milei, não se tenha dúvida de que o tiro de partida de um eventual governo Tarcísio seria o seguinte:
- desvinculação final de todo orçamento;
- privatização das universidades federais e início do desmonte da rede de cursos médios;
- fim ou privatização dos institutos de pesquisa;
- privatização do Banco Central e desmonte dos quadros técnicos dos Ministérios;
- desmonte da estrutura de financiamento de pesquisas;
- fim definitivo da CLT;
- liberação total da compra de armas;
- início do desmonte da Previdência social, com a implantação de um modelo similar ao chileno;
- redução das políticas culturais;
- redução radical do BCP (Benefício de Prestação Continuada).
A receita já está dada. Cria-se uma enorme balbúrdia que joga a economia no buraco. Depois, cada pequena melhora relativa, traz formas de apoio
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No plano mundial, o Ocidental entra na reta final do fim da era dos direitos, um processo que se inicia no pós-guerra e sobrevive até o governo Nixon. Depois, há o início da financeirização, com bolhas sucessivas e a frustração recorrente de crescimento. Cria-se o mito da “lição de casa”, como pré-condição para entrega de crescimento e de bem-estar social. No final de cada período, não se entregava o combinado, mas se convencia a opinião pública de que a “lição de casa” tinha sido insuficiente.
Sucessivas crises, como as bolhas dos anos 2000, a crise de 2008, a pandemia, paradoxalmente serviram de reforço à ideia do fim do Estado liberal. A crise se agravou por falta de Estado. Mas vendeu-se o peixe que se agravou devido ao Estado.
A falta de futuro
A rigor, a única maneira de deter essa maré seria a construção de consensos em torno de temas civilizatórios e planos de metas de desenvolvimento, que dessem clareza para as novas etapas do capitalismo brasileiro.
Planos, existem, e estão sendo implementados. Tem a Nova Indústria Brasil (NIB), de Geraldo Alckmin, a Transição Energética, de Fernando Haddad, o Brasil 2050, as Rotas Bioceânicas, de Simone Tebet, e o Livro Verde, de Luciana Santos. Não tem o plano definitivo, aquele que englobaria todos esses planos em um todo lógico, sistêmico, interministerial, sob o comando direto de Lula, dando musculatura à frente civilizatória – hoje em dia dispersa em brigas menores. Enquanto este plano não vem – e provavelmente não virá – fica-se com essa sensação de vazio, a ausência de sonhos que acaba alimentando o mal-estar geral.
O caminho das águas
No médio prazo, o grande desafio será tentar entender o caminho das águas, para onde caminhará a sociedade.
Nos últimos anos, testemunhamos os seguintes fenômenos:
- o enfraquecimento gradativo da CLT e do sindicalismo tradicional;
- uma mudança na estrutura industrial e agrícola com o avanço da robotização e da Inteligência Artificial, reduzindo as possibilidades do emprego tradicional;
- como consequência dos dois processos anteriores, o emprego indo se abrigar no bico, no pequeno comércio, na agricultura familiar e no subemprego das plataformas.
E, aí, se entra em um grande ativo nacional, que é a tradição de organização dos pequenos. Na crise de 2008, as Conferências Nacionais se mostraram um fantástico exemplo não apenas de organização setorial, mas de formação de pactos. É só analisar os resultados das Conferências de Educação e de Ciência e Tecnologia.
Organizações como o Sistema S, o cooperativismo, as associações comerciais, as federações de indústria, comércio e agricultura, o MST (Movimento dos Sem Terra), o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) e outros compõem um enorme acervo de modelos associativos, formas de trabalho e produção. E, no financiamento, há a experiência extraordinária do Banco do Nordeste do Brasil, além de empresas públicas de alcance nacional, como a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil e os Correios.
Em mãos competentes, esses ingredientes dariam uma receita campeã de organização dos pequenos. Com exceção dos movimentos sociais, é justamente entre as pequenas e médias empresas que a ultradireita joga suas sementes. Paradoxalmente, reside nesse segmento o maior potencial futuro de organização econômica e social do país. Será a única maneira de se sobreviver à concentração irresistível do varejo, que ameaça esmagar o pequeno comércio e espremer até o talo a margem da pequena indústria. E de permitir uma melhor distribuição dos resultados dos programas de neo-industrialização.
Mas, para tanto, o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte teria que estar nas mãos de um Ministro de grande porte. Por enquanto, o mundo de Lula ainda é o das relações trabalhistas nas grandes corporações. Ainda não acordou para o novo mundo que se descortina e exige políticas públicas para se consolidar.
Nem vai dar tempo de organizar um discurso para os pequenos. Mas tenho convicção de que a próxima grande liderança surgirá empunhando a bandeira da organização dos pequenos.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)