
A lista dos valores que herdamos da China e que foram incorporados ao nosso dia-a-dia não tem fim
A cultura da China antiga continua viva de forma visível nas práticas de saúde, nas artes, nos rituais de fundo espiritual e nos filmes. Sutil, mas profunda como sempre foi, como nas ideias de harmonia, dever social e busca de equilíbrio. Essa influência ajuda o mundo contemporâneo a equilibrar progresso com valores éticos e filosóficos, individualismo com comunidade, e racionalidade com sabedoria ancestral. O presidente Xi Jinping frequentemente cita valores tradicionais chineses para justificar políticas de estabilidade, disciplina moral e patriotismo.
Uma pena que, no currículo dos cursos de história das nossas escolas, pouco ou nada se ensine a respeito dos grandes sistemas de pensamento que, ao longo de milênios, surgiram e se desenvolveram nos países do Extremo Oriente. Os surgidos na China são os mais antigos e praticamente constituem o berço de todos os demais que vieram depois.
A civilização chinesa começou por volta de 2100 antes de Cristo com a lendária Dinastia Xia, e já nessa época mostrava sinais de organização estatal, escrita, agricultura sofisticada e metalurgia. Na verdade, a China e seu universo tiveram início em tempos ainda mais remotos, há mais de 5 mil anos, quando populações nômades começaram a se enraizar em regiões próximas aos grandes rios, particularmente o Rio Amarelo (Huang He). Foi no seio dessas comunidades rurais que, a partir da observação atenta da natureza e da compreensão das suas leis e processos, teve início o Taoismo: uma tradição filosófica e religiosa chinesa que enfatiza a vida em harmonia com o Tao, a ordem natural do universo. Ele busca a harmonia entre o ser humano e a natureza, valorizando a simplicidade e a espontaneidade em todos os aspectos da nossa existência.
Quando surgiu a Dinastia Xia, a China já se encaminhava para uma civilização estruturada, com escrita, Estado e organização social avançada, sem falar no seu acervo cultural rico em filosofias, religiões e escolas de arte. Nessa mesma época, a Europa ainda vivia uma fase de transição, com sociedades tribais, início da Era do Bronze e tradições espirituais ligadas à natureza e à morte.
Na mesma época, ainda não havia escrita na maior parte da Europa (com exceção da civilização minoica, em Creta, que desenvolveu a escrita Linear A). Não havia impérios ou Estados centralizados como na China ou no Egito — as sociedades eram tribais ou organizadas em pequenos reinos e vilarejos. A maioria das pessoas vivia em aldeias rurais, dependendo da agricultura, pecuária e pesca. As casas eram simples, feitas de madeira, barro e palha. A vida era comunitária, com pouca divisão rígida de trabalho, embora houvesse chefes tribais ou elites guerreiras em algumas regiões. Monumentos importantes geralmente elaborados em pedra, como os megálitos de Stonehenge (Inglaterra, construído entre 3000–2000 a.C.), que indicavam conhecimentos astronômicos e rituais religiosos complexos, eram raros e pontuais.
Na China, veio em seguida a Dinastia Shang (1600–1046 a.C.), que sucedeu a anterior, e os historiadores logo perceberam que quando ela chegou a China tinha evoluído a passos de gigante. Shang foi a primeira dinastia com evidência arqueológica direta, como inscrições em ossos oraculares e artefatos de bronze. Já existia então uma escrita chinesa muito desenvolvida, uma religião ancestral e uma estrutura política organizada. A sociedade já apresentava aspectos que permaneceriam na cultura chinesa: culto aos antepassados, papel central do imperador, e divisão social.
Na época seguinte, a da Dinastia Zhou (c. 1046–256 a.C.) surge o conceito de Mandato do Céu (Tianming) — a ideia de que o governante tem autoridade divina, desde que governe com justiça. Nesse período, surgem também as Cem Escolas do Pensamento, incluindo o Confucionismo e a consolidação do Taoismo como filosofia de Estado, que moldariam a cultura chinesa por milênios e influenciariam, como influenciam até os dias de hoje, praticamente todas as demais civilizações mais avançadas do mundo.
Sim, porque a cultura tradicional da China antiga deixou marcas profundas não só na Ásia, mas também em muitas partes do mundo antigo e do moderno. Essa influência se dá em diversas áreas — ética, educação, medicina, arte, arquitetura, espiritualidade, economia e até em costumes cotidianos.
Como isso acontece ainda hoje? Na Ásia Oriental, em termos de educação e ética (confucionismo), países como Coreia do Sul, Japão e Vietnã herdaram e até hoje se assentam fortemente no sistema confucionista: valorização extrema da educação como meio de ascensão social; respeito à hierarquia, à família e à autoridade; expectativa do dever filial (filhos cuidarem dos pais e honrarem seus ancestrais). Exemplo: o sistema de concursos públicos da China imperial (keju), baseado em mérito e estudo dos clássicos, inspirou modelos educacionais e administrativos em toda a Ásia.
Em termos de política e governo, a ideia de um governo central forte, ético e orientado para o bem comum (o governante como “pai do povo”) ainda influencia visões políticas na China, Coreia e Vietnã. O conceito de harmonia social ainda é usado para justificar políticas que priorizam o coletivo sobre o indivíduo.
Mas a influência das tradições chinesas não se limita em absoluto às terras do Oriente. No mundo Ocidental e globalizado, seu peso e influência faz-se igualmente sentir.
Na medicina e bem-estar a medicina tradicional chinesa, com suas raízes antigas, é praticada em clínicas e spas do mundo todo: acupuntura, fitoterapia, moxabustão, qi gong. O uso do conceito de yin-yang e dos cinco elementos para explicar equilíbrio do corpo e mente.
Na espiritualidade e práticas corporais, o Taoismo influenciou fortemente o interesse ocidental pelo Tai Chi e outras artes marciais (usadas para equilíbrio, saúde e longevidade); no surgimento das filosofias de vida simples, espontânea e integrada à natureza; na meditação taoista e práticas respiratórias, adotadas por buscadores espirituais e terapeutas.
Também na área da filosofia e da ética, filósofos e educadores no Ocidente têm reavaliado os ensinamentos do filósofo Confúcio como uma alternativa ética ao individualismo: Ênfase em responsabilidades sociais, comunidade, virtudes relacionais (como empatia e respeito). Confúcio viveu de 551 a.C. a 479 a.C. Ele foi uma figura proeminente na história da China, conhecido pelos seus ensinamentos sobre ética, comportamento e governo, que influenciaram profundamente a cultura chinesa e o pensamento oriental. Hoje, na China e também no Ocidente, seu pensamento é muito usado em programas de ética empresarial e educação moral.
A lista dos valores que herdamos da China e que foram incorporados ao nosso dia-a-dia não tem fim: O estilo visual tradicional chinês (templos, caligrafia, pintura com tinta e pincel) é amplamente reconhecido e usado em design contemporâneo, moda e arquitetura sustentável; O conceito de feng shui também é aplicado em design de interiores e urbanismo no mundo todo.
Na área da economia e mentalidade empresarial, a ética confucionista de lealdade, confiança mútua e respeito molda o modo de fazer negócios em boa parte da Ásia.
Conceitos como guanxi – rede de relações pessoais – ainda são centrais no mundo corporativo chinês, e agora começam a ser estudados no Ocidente como diferencial estratégico.
Na política contemporânea do Estado chinês, o Confucionismo foi reabilitado após
décadas de rejeição durante a Revolução Cultural. A partir dos anos 1990 e 2000, o governo chinês passou a reabilitar e promover sua imagem, e ele passou a ser visto como: um símbolo da cultura chinesa; um guia para valores como ordem, respeito, estabilidade e harmonia social; uma ferramenta para reforçar a ideia de que o bem-estar coletivo está acima do individualismo. O Confucionismo funciona hoje como base moral para o governo; o Partido Comunista da China (PCC) promove conceitos como “harmonia social” e “governo benevolente”, diretamente inspirados em Confúcio. O presidente Xi Jinping não perde ocasião para citar valores tradicionais quando deseja justificar políticas de estabilidade, disciplina moral e patriotismo.
Há também o uso do confucionismo como ferramenta de “soft power”, como nas atividades dos Institutos Confúcio ao redor do mundo, que promovem a cultura e a língua chinesas.
O acervo de ideias e conceitos taoistas, por seu lado, é amplamente usado para se tratar de questões ligadas ao meio ambiente. A ideia taoista de equilíbrio com a natureza tem influenciado políticas ambientais na China moderna, especialmente diante dos problemas com poluição e mudanças climáticas. Políticos e estudiosos chineses recorrem ao Taoismo para legitimar programas de desenvolvimento sustentável e planejamento urbano mais verde.
Dessa forma, confucionismo e taoísmo, sistemas tradicionais de sabedoria da China, permanecem vivos e atuantes, talvez até mais do que nos séculos passados. Pode-se dizer que, hoje, o grande país do Oriente está assentado em uma reinterpretação atualizada desses dois grandes pilares do conhecimento: o Confucionismo como fundamento ético, educativo e político, e como símbolo de identidade cultural e de contraponto ao individualismo; o Taoismo como fonte de sabedoria ecológica e espiritual, inspirando movimentos em prol da harmonia com a natureza e a autocura.
LUIS PELLEGRINI ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)