A FRATURA EUROPÉIA

CHARGE DE BAGGI

Nova pulsão nacionalista e de populismo antiliberal vem agora da Hungria, da Polónia da Eslováquia ou da República Checa

Milan Kundera conta que na invasão russa de 1956, o diretor da agência de notícias húngara mandou uma mensagem para o mundo: “morremos pela Hungria e pela Europa”. A rebelião da Hungria e depois a da Checoslováquia, em 1968, foram, segundo o escritor, verdadeiras revoluções culturais, no sentido em que a questão essencial nunca foi o combate ao comunismo, mas a defesa da identidade europeia. Diz ele: “Durante anos foram o teatro, o filme, a literatura e a filosofia que trabalharam pela emancipação libertária da Primavera de Praga(…) Esse casamento feliz entre a cultura e a vida, a criação e o povo, deixou nas revoltas centro europeias a marca de uma beleza inimitável, que nos deixará – a nós que as vivemos – enfeitiçados
para sempre.”

Setenta anos depois, o partido Fidesz, o partido de extrema direita húngaro continua a vencer eleições e Viktor Orbán, o primeiro-ministro, continua a fazer do ataque à cultura política europeia ocidental o principal ponto de afirmação da sua governação. Nas últimas eleições europeias resumiu assim o resultado:  “Migração, ponto final. Género, ponto final. Guerra, ponto final. Bruxelas, ponto final”. Portanto, a pergunta é a seguinte: se o comunismo húngaro representava uma violência contra a identidade europeia do país,
como explicar que a Hungria, agora livre de qualquer constrangimento estrangeiro, seja o Pais que há mais tempo apoia uma retórica política claramente antieuropeia e mais próxima da Rússia?

A Europa geográfica, aquela que se costuma designar como indo “do Atlântico aos Urais”, sempre esteve dividida política e culturalmente em duas metades – de um lado o ocidente católico e de alfabeto latino; o oriente ortodoxo e de alfabeto cirílico, do outro. Esta é a linha divisória que tem origem na antiquíssima divisão cultural do Império Romano: Roma e Bizâncio. Mas não é isso que agora está em causa. A nova pulsão nacionalista e de populismo antiliberal vem agora da Hungria, da Polónia da Eslováquia ou da República Checa, todos eles países maioritariamente católicos e de línguas latinas. A explicação não é, portanto, cultural, mas política. Mais uma vez: de onde vem esta inesperada antipatia com o Ocidente europeu?

A explicação, quanto a mim, reside no ressentimento. O ressentimento é uma força política extraordinária que pode estar contida durante anos e explodir de um momento para o outro. O que está a acontecer na Hungria e nos outros países do Centro e do Leste Luropeu como a Polónia, a Eslováquia ou a República Checa, não tem a ver com nenhuma cultura religiosa ou linguística, mas com o fato de todos estes países terem pertencido ao antigo bloco soviético. A vitória do Ocidente na guerra fria foi tão súbita e a queda do muro de Berlim tão espetacular que a Europa imediatamente decretou um novo tipo de vitória – uma vitória sem derrotados. Uma vitória radical: de um lado, os vencedores; do outro, os libertados. O fim da história,
portanto. Os países do Ocidente europeu, sempre tão generosos e compreensivos, iniciaram imediatamente a tarefa de explicar aos novos países libertados que reformas deviam fazer, como deviam organizar-se – e como deviam governar-se. Tanto explicámos e com tamanha minúcia que os novos países sentiram que os antigos funcionários do partido comunista soviético haviam sido substituídos pelos funcionários de Bruxelas. Em ambos os casos pareciam funcionários de um “governo de ninguém” – ninguém os elegeu e parecem não responder perante ninguém.

No meu ponto de vista, parte da explicação da hostilidade desses países com a cultura política da Europa Ocidental, reside nesse ressentimento histórico com projetos impostos do exterior. Primeiro foi Moscovo, agora Bruxelas. Seja como for, agora com os refugiados, agora com os imigrantes, agora com a guerra da Ucrânia, esta linha de fratura está de volta. Talvez o Ocidente europeu esteja a pagar o preço da arrogância
inconsciente com que tratou os novos países do alargamento a Leste impondo-lhes políticas e programas que não foram aceites por adesão voluntária mas por não terem alternativa. Talvez. O que sei é que na longa história europeia esta linha de fratura Este-Oeste sempre foi uma linha de agressão, de violência e de desumanidade. E ela está a ressurgir. E o passado, quando regressa, vem a galope.

JOSÉ SOCRATES ” BLOG ICL NOTÌCIAS” ( PORTUGAL/ BRASIL)

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