
CHARGE DE AROEIRA ” BLOG BRASIL 247″
O espectro que não ronda: a crise do internacionalismo de esquerda em tempos de direitas globalizadas
Em meados do século XIX, lideranças operárias e intelectuais, com críticas radicais ao sistema capitalista, concluíram pela necessidade de uma articulação internacional entre os vários grupos políticos existentes em diferentes sociedades europeias. Convicções comuns, entre outras, o repúdio à exploração perpetrada pelos capitais privados e a ideia de que os trabalhadores deveriam depender apenas deles mesmos para alcançar sua emancipação, levaram à fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em Londres, em setembro de 1864.
A Associação Internacional dos Trabalhadores tornou-se em pouco tempo um centro de articulação de movimentos sociais e intercâmbios políticos. Até fins da década de 1860, congressos anuais debatiam grandes questões e divergências. Para os seus inimigos, os capitalistas privados e os estados nacionais sob sua hegemonia, a Internacional tornou-se uma espécie de espantalho: todo e qualquer movimento de crítica ou de contestação à ordem vigente era atribuído a seus “agentes”, acirrando-se, em toda a parte, campanhas xenófobas, destinadas a isolar a nova organização. Foi o que bastou para que, em muitas cidades e centros industriais, trabalhadores de diversas orientações passassem a ver como sua a Internacional, crescendo, em consequência, seus efetivos e o alcance de sua influência.
Em 1871, a revolução política e social ocorrida em Paris, a Comuna de Paris, teve entre seus dirigentes, muitas lideranças que se identificavam com a Internacional. A derrota deste processo gerou uma inédita onda repressão em toda a Europa. Nos anos seguintes, porém, voltariam as se reunir congressos internacionais, mas as divergências entre autonomistas e centralistas (anarquistas e marxistas), acabariam por enfraquecer a organização que, transferida para Nova Iorque, extingiu-se em 1876. Subsistiu a chamada Internacional Autonomista, liderada por anarquistas, mas ela também acabou se dissolvendo em 1877.
A Associação Internacional dos Trabalhadores, embora se restringindo fundamentalmente à Europa, constituiu um marco histórico de grande relevância. Sendo o capitalismo um sistema internacional, disseminou-se e se consolidou a consciência de que as lutas anti-capitalistas e pelo socialismo deveriam igualmente almejar alianças e dispor de articulações e organizações internacionais.
Assim, apenas treze anos depois, em julho de 1889, no quadro das comemorações do primeiro centenário da revolução francesa, reuniu-se em Paris o congresso de fundação de uma nova organização internacional, a Internacional Socialista.
Hegemonizada pelos marxistas, e tendo excluído os anarquistas, a nova organização articularia partidos socialistas e democráticos, propondo a ideia de que socialismo e democracia constituíam um binômio inseparável: uma democracia substantiva só poderia ser alcançada no contexto do socialismo. Inversamente, o socialismo só poderia existir no quadro de uma radical ampliação da participação das gentes no poder, asseguradas amplas liberdades democráticas.
Estendendo-se para além da Europa, alcançando sociedades americanas (Estados Unidos e Argentina) e asiáticas (Japão), formando distintas organizações, de jovens, mulheres, sindicalistas, jornalistas, parlamentares, a Internacional socialista configurou-se, em vários países, em particular na Alemanha, como um relevante fator de poder.
2.
Entretanto, ao longo dos congressos internacionais, realizados regularmente, evidenciaram-se, mais uma vez, divergências importantes em relação a diversas questões, entre elas, a questão do poder político, suscitando a polarização entre reformistas – partidários de alcançar a transformação social através de um conjunto de reformas progressivas e pacíficas – e revolucionários – partidários de rupturas claras e decisivas.
A irrupção da Primeira Grande Guerra (1914-1918) enfraqueceu a Internacional, na medida em que os partidos social-democratas, abandonando critérios internacionalistas, aderiram às ondas nacionalistas populares, hegemonizadas pelas respectivas burguesias nacionais a favor da Guerra. Em consequência, quase desapareceram as referências internacionalistas em proveito do nacionalismo excludente, patrioteiro e xenófobo.
Entretanto, o internacionalismo renasceria com o fim da guerra. Liderada pela revolução russa, em março de 1919, em Moscou, fundou-se a Internacional Comunista, também chamada Terceira Internacional, comprometida com uma perspectiva violenta de revolução social. Herdeira da tendência revolucionária existente na Internacional Socialista, demarcando-se com novo nome – comunista – da experiência da Internacional fundada em 1889, mantinha e radicalizava as concepções internacionalistas de enfrentamento do sistema capitalista.
Alternativamente, reorganizou-se a Internacional Socialista, agora claramente inclinada a promover uma gestão da ordem capitalista, embora referenciada nas demandas sociais do proletariado e das demais classes populares. Entre as duas, articulou-se uma outra proposta, a União dos Partidos Socialistas para a Ação Internacional, a Internacional de Viena, de vida curta, e que se desfez no contexto da polarização entre as II e III Internacionais. Em 1938, na França, os partidários das teses de León Trotsky, fundaram ainda uma outra organização, a IV Internacional, com o objetivo de oferecer uma alternativa comunista aos soviéticos.
A II Internacional permanece até os dias de hoje com suas características de gestão social do capitalismo. A III Internacional foi dissolvida em 1943, em Moscou, mas a União Soviética manteve durante as décadas seguintes a articulação internacional dos partidos comunistas que se referenciavam em suas experiências e modelo. Já a IV Internacional apenas sobrevive através de pequenos grupos e partidos que reivindicam sua existência. Na Ásia, a República Popular da China, liderada pelos comunistas desde a vitória da revolução em 1949, também empreendeu, depois da cisão com a União Soviética, ocorrida em meados dos anos 1950, uma articulação internacional dos partidos comunistas aliados.
Faltaria ainda referir a organização de uma outra Internacional revolucionária. Embora não se declarando hostil a nenhum estado socialista existente ou às suas articulações internacionais, fundou-se em Havana, em janeiro de 1966, a Organização de Solidariedade entre os Povos da Ásia, da África e da América Latina, a OSPAAAL. Tinha como eixos potenciais as revoluções triunfantes em Cuba e na Argélia e, na Ásia, a guerra do Vietnã em curso, e como proposta a formação de organizações de solidariedade regionais. No ano seguinte, em agosto, também em Havana, fundou-se a Organização Latino-Americana de Solidariedade, a OLAS, destinada a coordenar e incentivar a luta armada contra os regimes capitalistas e as ditaduras no continente. Tendeu a refluir com a derrota das guerrilhas em Nuestra America, como dizia José Marti. Quanto às demais organizações regionais, nem chegaram a existir.
Esta brevíssima recapitulação evidencia como se reforçou, desde meados do século XIX (fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores até meados do século XX (criação da OSPAAAL), a gravitação da referência internacionalista nas lutas anti-capitalistas, baseada no reconhecimento, velho de mais de um século, do caráter internacional do capitalismo.
3.
Ora, considerando a internacionalização crescente e avassaladora do capitalismo no quadro da atual revolução digital, onde esta tendência (globalização ou mundialização) adquire níveis inéditos de concretude e aprofundamento, era de se esperar que os movimentos, partidos e lideranças que lutam contra o capitalismo, embora através de diferentes concepções e propostas, relançassem iniciativas internacionalistas.
Mas não é o que tem acontecido. Cada vez mais, as forças que se opõem ao capitalismo recolhem-se às fronteiras nacionais, como se fosse possível enfrentar nacionalmente um sistema que sempre foi e se torna sempre mais internacional. A iniciativa do Fórum de São Paulo, criado em 1990, um ersatz ou sucedâneo de uma autêntica internacional, nunca ultrapassou os limites tímidos de encontros, marcados mais pela parolagem do que pela articulação de ações indispensáveis.
É quase inacreditável perceber que as iniciativas mais marcantes contra os atuais megamonopólios das comunicações sejam fruto da ação de organizações não governamentais, como, entre outras, a ATTAC/Associação para a Taxação das Transações Financeiras, criada em 1998, ou de movimentos sociais não partidários ou suprapartidários, ou ainda por procuradores ou juízes que se insurgem contra os abusos das imensas empresas que pisoteiam alegremente as legislações nacionais de controle.
Em contraste com este quadro de abulia suicida, e paradoxalmente, são as direitas que se organizam internacionalmente.
Benjamin Cowan, em estudo recente, mostrou como o cristianismo conservador multiplica suas organizações internacionais num ativismo frenético que não conhece fronteiras. Superando ou contornando antigas divergências, no quadro de um ecumenismo anti-ecumênico, na feliz e irônica expressão do autor, criaram-se, entre outras, a ALADIC/American Alliance of Christian Churches, a CAL/Latin America Anti-Communist Confederation e a WACL/World Anti-Communist League. Benjamin Cowan identifica um eixo dinâmico constituído pelos cristãos conservadores no Brasil e nos EUA, fortemente apoiado por generosos financiamentos proporcionados por capitalistas liberais.
Em fins de março passado, Nicolas Truong, em longo artigo publicado no jornal Le Monde: L’Internationale réactionnaire/A Internacional reacionária, investigou e esmiuçou ações práticas empreendidas pelas direitas em escala mundial, além de suas referências teóricas e filosóficas.
O autor distinguiu três tendências. A primeira, já referida acima, constituída pelos cristãos de direita, envolveria católicos integristas, evangélicos e ortodoxos (cristianismo russo). Reacionários no sentido próprio, reivindicam um cristianismo fundamentalista e condenam a tradição iluminista fundada no contexto das revoluções americana e francesa. Consideram a família ameaçada, execram a interrupção voluntaria da gravidez, abominam as lutas e conquistas efetuadas nas últimas décadas pelas mulheres, gays e LGBTs e desconfiam dos avanços científicos, incluindo-se aí as vacinas e o aquecimento do planeta. Embora registrem contínuos avanços, cultivam uma atmosfera de cerco e conspirações que urge desmascarar e denunciar, pois seus valores e referências estariam correndo perigo iminente de destruição.
A segunda tendência articula os nacionalismos de direita, particularmente fortes na Europa, cujas maiores expressões políticas, mas não únicas, são Viktor Orbán (Hungria), Marine Le Pen (França) e Giorgia Meloni (Itália). Questionam os padrões assumidos pela integração europeia e defendem uma Europa das nações, na qual os Estados nacionais recuperariam poderes e controles perdidos no processo de construção da União Europeia. Preconizam uma democracia iliberal, com fortes restrições às liberdades democráticas.
A tendência tem sido estimulada e encorajada pela Rússia liderada por Vladimir Putin, cujos ideólogos, como, entre outros, Alexandr Dugin, não hesitam em considerar o regime democrático existente como inimigo a abater, as liberdades democráticas, como dissolventes, desagregadoras e mesmo anti-humanas. A eleição de Donald Trump e seus primeiros meses de governo vem contribuindo para reforçar a tendência. As conversações diretas entre Donald Trump e Vladimir Putin, o esboço tentativo de uma articulação entre eles, os propósitos comuns ultranacionalistas engrossam o caldo de cultura nacionalista que se expande pelo mundo (Turquia e Índia, entre outros).
Há ainda uma terceira tendência, despontando em especial, mas não apenas, nos Estados Unidos, reunindo grandes capitalistas (Elon Musk) e seu séquito de engenheiros e tecnocratas. Controlam grandes empresas monopolistas, que dispõem de tecnologia de ponta e de imenso poder nos meios de comunicação, liderando, em vários setores, a revolução digital em curso. Identificam-se como tecno-libertários ou tecno-futuristas. O historiador David Bell os apelidou de tecno-cesaristas, por suas afinidades com um governo de gênios, pelas suas referências e propensões aristocráticas e pelo desprezo explícito às pessoas comuns e aos valores democráticos.
4.
As intenções e os projetos de articulação internacional das direitas cobram dinamismo e estão em andamento. Entre os cristãos fundamentalistas, trata-se de um movimento real em expansão. Quanto aos nacionalistas europeus de extrema-direita, não raro patrocinados pela Rússia de Vladimir Putin, reúnem-se regularmente para intercambiar ideias, coordenar agendas e firmar compromissos.
Em fins de fevereiro de 2025, na Conservative Political Action Conference, reunião anual dos conservadores de direita estadunidenses, houve, como sempre, oportunidade de efetuar intercâmbios com lideranças do mesmo credo de diferentes procedências geográficas. Os aristocratas digitais, com Elon Musk e a chamada máfia do PayPal, (David Bell), unidos no governo de Donald Trump, e instrumentalizando seus monopólios de alcance mundial, permitem-se intervir em toda a parte, sempre reforçando as propostas e ideias de extrema direita. Em 2018, Steve Bannon, conhecido ideólogo da extrema-direita, lançou a ideia de uma organização que pudesse federar todas as forças radicais de direita. A ideia, como informa Nicolas Truong, não vingou, mas continua na agenda.
Em resumo: as direitas internacionalizam-se. Trata-se de uma evidência tão clara que chega a ofuscar. É o novo espectro que ronda o mundo.
Face a este processo, as esquerdas estão desafiadas e mesmo condenadas a lidar com sua crise de identidade, a se reinventar e a reencontrar a própria vocação internacionalista. É uma questão elementar de sobrevivência. Se não o fizerem, encaminham-se, nem mais nem menos, para o suicídio político, para o museu da História, onde se transformarão em meros objetos de curiosidade das gerações futuras.
DANIEL ARÃO REIS ” BLOG A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
*Daniel Aarão Reis é professor titular de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917 (Companhia das Letras). [https://amzn.to/3QBroUD]
Referências
Bell, David. Culte des chefs. Charisme et pouvoir à l’âge des révolutions. Fayard, Paris, 2022
Cowan, Benjamin. Moral Majorities across the Americas. Brazil, the United States and the creation of the religious right. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2021
Feher, Michel. Producteurs et parasites. L’imaginaire si désirable du Rassemblement National. La Découverte, Paris, 2024.
Truong, Nicolas. L’internationale réactionnaire. Le Monde, 29 de março de 2025.