
CHARGE DE BENETT
O apagão tem sido o tema da semana. Agora o desafio é dizer algo de novo, para além de sublinhar uma vez mais que a energia é uma área estratégica em matéria de governação. Quando falha, a vida fecha-se como uma ostra e as inquietações ganham asas. Já Vladimir Lenine o dizia, no contexto de 1920, quando afirmava que o paraíso na terra resultaria da combinação do poder popular, aquilo a que chamava os sovietes, com a eletrificação completa do país. Ninguém sabe o que diria agora. Mas vindo Putin da mesma escola, o apagão deve chamar a atenção dos dirigentes europeus de hoje para um certo número de questões essenciais, incluindo as dimensões securitárias.
Uma das questões relaciona-se com o crescimento acelerado da procura de eletricidade no espaço europeu. Os peritos estimam que se verifique um aumento do consumo de energia na Europa da ordem dos 60% nos próximos cinco anos e que a procura continue a crescer significativamente para além de 2030. Isto não resultará apenas da passagem dos motores de combustão aos elétricos, nos veículos que engarrafarão ainda mais dramaticamente as nossas cidades e estradas. A mentalidade europeia, como outras, está convencida que felicidade se resume a quatro rodas e um cabo elétrico. Mas há mais. A economia digital, a digitalização do dinheiro, a automização das unidades industriais, a Inteligência Artificial, os serviços de lazer e outros, tudo isso fará aumentar a pressão sobre a necessidade de se produzir mais energia, limpa e barata. Esse será um desafio político enorme.
As fontes renováveis não serão suficientes, nem são tão amigas do ambiente como muitos nos querem fazer acreditar – basta pensar no impacto das minas de onde são extraídos os componentes das baterias, dos painéis solares ou das asas dos moinhos de vento. E também não podemos continuar a apostar forte e feio nos recursos fósseis, por razões ecológicas e climáticas, e para evitar dependências arriscadas, acordos com países instáveis e potencialmente hostis. A energia de origem fóssil deve ser encarada como um recurso complementar ou de emergência, ligado em grande medida à segurança nacional e aos casos extremos de defesa. Tem de passar a ser essencialmente uma solução de reserva.
Assim, face ao crescimento exponencial da procura, o debate sobre a energia nuclear é agora cada vez mais inevitável. É aí que estará uma grande parte da resposta às novas necessidades, aos reptos climáticos e às diferentes dimensões da soberania europeia. A França gera cerca de 65% da sua eletricidade a partir de centrais nucleares, com a EDF (Électricité de France) a produzir 85% da sua com base no nuclear. O exemplo francês pode ser um dos pontos de partida para uma discussão aprofundada sobre os
parâmetros que devem reger a investigação científica e a produção nuclear para fins civis.
Uma outra questão essencial diz respeito à modernização e à integração das redes europeias de distribuição energética. Temos aqui duas dimensões.
Uma diz respeito à elucidação das razões técnicas e políticas que justificam a existência de sistemas plurinacionais de transmissão, exportação e importação de energia entre os países da UE. Há muito que explicar aos cidadãos sobre as vantagens de redes integradas e simultaneamente bem segmentadas, capazes de se conectar ou desconectar instantaneamente, quando for caso disso. Esses esclarecimentos devem fazer parte das prioridades para o sector.
A modernização das redes, a segurança das conexões e o investimento nas subestações são igualmente indispensáveis e urgentes. Estas componentes da infraestrutura energética devem ser coordenadas ao nível das várias grandes regiões europeias e reguladas de uma maneira absoluta, com critérios de exigência bastante rigorosos. Incluindo em matéria de proteção contra os ataques cibernéticos ou outros que possam ser levados a cabo de modo mais tradicional. Os nossos inimigos aprenderam, com o apagão da semana, que este é simultaneamente um sector crítico para a vida dos europeus e um sector com grandes fragilidades. Irão certamente estudar como poderão explorar as vulnerabilidades. Cabe-nos fazer o mesmo, para antecipar e proteger. As guerras de amanhã, que esperamos que não ocorram, podem ser ganhas paralisando o nosso dia-a-dia, criando o caos ou bloqueando-nos tão simplesmente nas nossas casas, a olhar para a chama de uma vela que se vai consumindo inexoravelmente.
Em matérias estratégicas não pode continuar a haver improvisações nem mais demoras. Liderar é saber construir alternativas, algo que se mete em movimento de imediato, quando o sistema principal é gravemente atacado ou entra em rutura. Os verdadeiros líderes têm sempre na manga um plano B. Custa assim tanto entender isso?
VICTOR ÂNGELO ” DIÁRIO DE NOTÍCIAS” ( PORTUGAL)
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU