OTÁVIO, OTAVINHO, CALDEIRA E O CORONEL ERASMO

Minhas memórias do tempo em que o pluralismo e a tolerância da Folha misturavam os apoiadores e esbirros da ditadura com defensores dos direitos humanos e da democracia

A pluralidade editorial indiscriminada de ideias e de interlocutores propagandeada pela Folha surgiu bem antes da campanha das diretas (1983) e do que os seus dirigentes consideram desde aquela época um novo projeto do jornal. Em 1977, esse pluralismo não criterioso já existia e resultou em convites dos proprietários do matutino a um chefe de polícia da ditadura para almoços na empresa. Ouviram pedidos desaforados relatados depois publicamente pelo próprio convidado como reproduzo a seguir:

“Tudo o que estou falando aqui, já disse mais de trinta vezes para o Octávio Frias de Oliveira, diretor-presidente da Folha de S. Paulo. Uma vez, num almoço com o Caldeira, o Frias e o filho dele (Otavinho), cheguei a dar murros na mesa porque eu dizia tudo isso e eles não quiseram me ouvir”.

O “tudo isso” dito aos anfitriões do almoço era um pedido afrontoso para que demitissem jornalistas.

As frases, esbravejadas pelo coronel Antônio Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública de São Paulo são parte de uma palestra proferida há 47 anos para um seleto grupo de umas 30 senhoras da União Cívica Feminina. O evento dessas remanescentes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964 acabou divulgado em reportagem publicada pela própria Folha, na página 6 da edição de 18 de agosto de 1977.

O coronel (amigo de Carlos Caldeira Filho, então sócio de Frias) alardeava para as atentas senhoras que pedira seguidamente as cabeças do diretor de redação Claudio Abramo e de outros jornalistas, como Alberto Dines e Newton Rodrigues. Repetia furioso que a imprensa estava infiltrada de esquerdistas. Essa situação, segundo ele, poderia ser facilmente resolvida “com meia dúzia de homens, como Lenildo Tabosa Pessoa e Jorge Boaventura”, este último, na opinião de Erasmo, o único sensato “numa página cheia de editoriais e comentários esquerdistas”. Referia-se à página Tendências/Debates da Folha, criada uns dois anos antes.

Lenildo Tabosa Pessoa, ex-seminarista pernambucano de Caruaru, não trabalhava na Folha. Era editorialista do Jornal da Tarde, onde destilava malevolência contra a esquerda em geral e, em particular, contra os setores progressistas da Igreja Católica. Jorge Boaventura, por sua vez, católico conservador com pensamento inspirado no integralismo de Plínio Salgado, expunha suas ideias na Escola de Aeronáutica dos Afonsos e na Escola Superior de Guerra, entre outros locais. Era também colaborador da Folha.

Não sei dizer qual foi a reação aos murros na mesa e aos pedidos descabidos do coronel no momento em que ocorreram. Os presentes naquele almoço não estão mais entre nós para contar. O que se soube 40 anos depois é que Frias ainda procurou remediar a situação num novo almoço oferecido a Erasmo, para o qual também foi convidado o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.

Essa segunda reunião, também com Caldeira e sem a presença de Otavinho, ocorreu duas semanas antes da palestra para as marchadeiras e está documentada num relato confidencial enviado dia 2 de agosto ao SNI pelo coronel frequentador de almoços na Folha. O relato foi descoberto na coordenadoria regional do Arquivo Nacional, em Brasília pelo jornalista Rubens Valente quando pesquisava documentos para seu livro Os fuzis e as flechas sobre o impacto da ditadura nos povos indígenas, lançado em 2017.

Erasmo comunicou ao SNI aquilo que considerava o apoio irrestrito de Dom Paulo à “fina-flor do esquerdismo intelectual” particularmente à Comissão Justiça e Paz. Segundo o coronel, durante o almoço, o anfitrião Frias concordava em gênero, número e grau com o cardeal e contestava até a contra- argumentação do sócio Caldeira. Na sua visão, a cobertura jornalística da Folha era inusitada sempre com ênfase aos posicionamentos de “direitos humanos”, “anistia” e “violência”. As aspas indicam seu tratamento irônico desses assuntos.

Dias depois dessa delação ao serviço de inteligência, na noite do dia 17, quando Frias recebeu e leu o texto do jovem repórter Rodolfo Gamberini que registrara e trouxera para a redação as vociferações da palestra de Erasmo, Frias, se sentiu obrigado a publicá-las. Eram uma traição da confiança que depositara no convidado para almoços.

Em sua arenga, entre outros disparates, o secretário de segurança dissera publicamente que “os dois maiores líderes políticos da oposição neste país são Dom Paulo, porque controla a Igreja, e Otávio Frias de Oliveira, porque controla um jornal”.

Reunido com o filho, ainda estudante de Direito, e com ajuda de Claudio Abramo, o diretor presidente da Folha limitou-se a redigir naquela noite uma lacônica N. da R. (Nota da Redação) no pé da matéria que saiu publicada sem a assinatura do repórter. Nessa notinha, explicou que o jornal estava cumprindo seu dever profissional de informar objetivamente e que a população já deveria ter juízo formado sobre as “exteriorizações” do secretário de Segurança. Evitou externar seu próprio juízo sobre o militar e sobre o que ele disse.

Fechada a edição, Frias levou os editores, as principais chefias e colaboradores que se encontravam na redação para jantar na churrascaria Rodeio. Não houve discurso ou explicação para o convite. Acredito que foi a maneira que encontrou para tentar se manifestar solidário aos jornalistas seus empregados. Talvez quisesse reparar sua imagem em face da situação vivida no almoço dos murros na mesa.  Afinal, além de atacar Frias publicamente, o boquirroto coronel expusera também a intimidade inadequada e a conversa constrangedora para proprietários de um órgão de imprensa com um chefe de polícia da ditadura.

Claudio não esteve no jantar do Rodeio. Durou depois mais um mês à frente da redação. Em 19 de setembro, foi afastado do cargo pelo patrão. Frias também anunciou que se retraia na mesma ocasião. Decidiu sair de cena e se afastou formalmente do comando. Os substitutos não foram Lenildo ou Jorge Boaventura, sugeridos pelo coronel Erasmo. Colocou para figurar em seu lugar no expediente da Folha, como diretor responsável, o jornalista Boris Casoy, bem quisto pelos militares de Brasília e com bom trânsito entre políticos da Arena, partido que dava sustentação à ditadura.

O dono da empresa deixou assim de responder como responsável pelo próprio jornal, mas não abriu mão de continuar a controlá-lo juntamente com todos os demais negócios que mantinha com o sócio Caldeira.  Ao comunicar a decisão de afastar Claudio, garantiu que nada mudaria. Obviamente, muito mudou e pouco ficou como antes.

Testemunhei esses acontecimentos como editor de Política da Folha. Era minha segunda passagem pelo jornal. A primeira tinha sido no fim dos anos 1960 e sai em 1970, ou seja, mais de um ano depois da promulgação do AI-5. Portanto, cheguei a ver o começo do período em que policiais ligados aos órgãos de repressão assumiram cargos de direção nas redações do grupo.

A Folha da Tarde foi o caso mais extremado. O comando da redação passara a ser de Antônio Aggio Jr. – funcionário da Secretaria de Segurança Pública, ou seja, um subordinado do então chefe de polícia Hely Lopes Meirelles. Os caminhões da empresa não participavam ainda de operações da recém-criada Operação Bandeirantes (Oban), um órgão de repressão financiado por empresários paulistas. Contudo, jornalistas do grupo de Frias e Caldeira já estavam sendo presos e torturados.

Esse período está detalhado em uma reportagem da Agência Pública, tendo como base pesquisa acadêmica no âmbito da Unifesp e apoio do Ministério Público Federal, com vasta documentação e em que foram ouvidas mais de 40 pessoas, entre jornalistas, antigos militantes de organizações políticas clandestinas, ex-agentes da repressão, além de empresários. Integram a equipe da pesquisa professores da UFRRJ, UFRJ, Fundação Casa de Rui Barbosa, UFG e PUC-SP.   Só acrescento à reportagem algumas recordações minhas.

Cheguei a primeira vez à redação da Folha em meados de 1968 como vários outros jovens focas, ou seja, iniciantes no jornalismo no jargão dos veteranos. Éramos estudantes universitários sem nenhuma experiência profissional. Foi a maneira que Claudio encontrara, depois de contratado por Frias e Caldeira em 1964, para renovar o corpo de jornalistas herdados de antigas administrações. Era praxe que muitos desses veteranos tivessem bicos no setor público, inclusive na polícia e em comandos militares. Alguns eram informantes policiais. Foram mantidos nas suas funções, considerados figuras secundárias.

Comecei na seção Internacional, chefiada por Victor Cunha Rego, um português exilado pela ditadura salazarista que trabalhara antes com Claudio, no Estadão. Depois da Revolução dos Cravos em 1975, Cunha Rego retornaria a Portugal ocupando cargos relevantes no governo. Pela nossa seção passou também Frei Beto, deslocado temporariamente de suas funções na Folha da Tarde para ajudar-nos a editar o noticiário da CELAM, a conferência episcopal de Medelin que trazia para a Igreja da América Latina as transformações resultantes do Concílio Ecumênico Vaticano II.  Ele seria preso meses depois, juntamente com outros frades dominicanos e colegas da redação, como parte da ação policial que resultou na emboscada e execução de Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN) que pregava a luta armada contra o regime vigente.

Frias e Caldeira expandiam então seus negócios, administrando simultaneamente a Rodoviária Júlio Prestes a eles concedida em 1961 pelo governador Ademar de Barros; diversos jornais que foram depois adquirindo ou criando; além de uma grande gráfica, a Companhia Lithográfica Ypiranga. Cresciam alavancados em bancos. Empurravam também com a barriga pesado passivo com o INPS que acabou judicializado e desapareceu do noticiário de repente. Os dois sócios figuravam entre os maiores devedores da Previdência Social.

A fragilidade financeira impactava a seção de Economia da Folha. Toda reportagem envolvendo bancos tinha que ser submetida à aprovação de Frias antes de publicada. Era evidente sua dependência do favor de credores. Ele tinha antigo relacionamento pessoal com o banqueiro Amador Aguiar que lhe cedia até o uso dos computadores do Bradesco para processar a folha de pagamento dos funcionários.

Nós, os recém contratados, trabalhávamos sem carteira assinada ou com registros atrasados numa embrulhada administrada por Antônio Piason, o chefe do Departamento Pessoal. Em março de 1969, quando foi regulamentada a profissão de jornalista, muitos ficaram arriscados de não poder continuar trabalhando na Folha ou em qualquer outro jornal.  Era exigida a comprovação de pelo menos dois anos de exercício da profissão para obter o registro. Formamos uma comissão dos ameaçados de ficar sem emprego e levamos o caso ao diretor jurídico do grupo, o advogado Francisco Rangel Pestana. Era um senhor alto, grisalho, usando um relógio de bolso com corrente. Nos recebeu sem animosidade.

Comunicamos que seríamos obrigados a ir à Justiça para garantir nosso direito de continuar a exercer a profissão. Não tínhamos alternativa. O nada bisonho advogado entendeu o recado.  Nos deu logo razão. Mostrou-se surpreendido pelas irregularidades relatadas como se não soubesse o que ocorria. Atribuiu a responsabilidade a Piason que, dias depois, sem maiores explicações, retificou e antecipou em nossas carteiras a data da admissão. Ou seja, sua embrulhada administrativa obedecia a determinações superiores.

Os registros profissionais não foram a única causa que nos mobilizava. A forma com que Frias e Caldeira aumentavam seu grupo de jornais dirigidos a diferentes públicos sem um aumento equivalente na contratação de jornalistas também vinha sendo por nós questionada através do Sindicato. Na nossa visão, a dupla de sócios tinha como meta só enxugar custos e abastecer de notícias todas as suas publicações. Se possível, até sem as redações. Para nós, a base do projeto era o Dics (Departamento do Interior, Correspondentes e Sucursais).  Ironizávamos a função do novo departamento instalado no mesmo andar da redação da Folha de São Paulo.

Óbvio que o Dics (precursor da Agência Folha) não chegou a atingir os limites da nossa ironia, mas cumpriu um papel sórdido no período mais violento da repressão e censura à imprensa que se seguiu ao AI-5, em dezembro de 1968. No grupo da Folha, ao contrário do que ocorreu nos principais jornais e revistas do país, não houve necessidade de censores externos nas redações.  O Dics produzia e distribuía sob a direção de policiais as versões autorizadas das notícias sensíveis ao regime militar. E passava o recado do que estava vetado e não poderia ser publicado.

Como se chegou a esse ponto? Foi rápido. Me dei conta da mudança, quando vi Paulo Nunes, um repórter de polícia semiletrado e sabidamente alcaguete, ser promovido a chefe do Dics. Figura até então insignificante, passou a fumar charuto e a entrar diretamente na sala do Claudio sem se anunciar. Outro que adquiriu importância foi Carlos Dias Torres, o setorista do jornal no Comando da Aeronáutica, que foi trabalhar num cargo de chefia com Aggio na Folha da Tarde. Sua única notoriedade até então era ser capaz de rasgar com as mãos uma lista telefônica. Seria hoje equivalente a rasgar um maço de 200 a 300 folhas de papel A4 para impressão.

Claudio passou a aparecer pouco na redação, para onde costumava sempre descer do andar da diretoria nos fechamentos da edição. Não esteve lá na noite em que chegaram do Dics as primeiras fotos no formato 3X4 com a determinação de serem publicadas como nos cartazes “procurado vivo ou morto” dos filmes de faroeste. Alguns dos retratados eu conhecia do movimento estudantil. Aderiram à luta armada contra a ditadura militar. Eram obrigatoriamente chamados de terroristas nos títulos e textos do jornal.

Meu emprego na seção Internacional durou até julho de 1970. Fui chamado à sala do Claudio para ouvir que Cunha Rego estava exigindo minha demissão. Alegava que eu falava demais no trabalho. Eu nunca antes fora advertido. Óbvio que se tratava de justificativa esfarrapada. O motivo era diferente. Embora sem participar e até divergir dos grupos que pregavam a luta armada, prestei ajuda a militantes dessas organizações. Cunha Rego sabia e provavelmente temeu ser envolvido.

Outros na redação não se intimidavam. João Batista Lemos, o chefe de reportagem, me repassara em certa ocasião um bloco de impressos para carteiras de identidade em branco. Não me disse por que; muito menos para que. A finalidade estava implícita. Recebera o bloco em branco de um dos setoristas do jornal que trabalhava na Secretária de Segurança. Fiz o material chegar aos que precisavam de nova documentação na clandestinidade.

Demitido, consegui logo emprego no Estadão. Só voltaria à redação da Folha em 1976. Claudio me convidou a retornar quando nos encontramos por acaso na Avenida São Luís, ao lado da Biblioteca Municipal. A reaproximação foi a seu modo. Ao me avistar, gritou: “Você tinha razão sobre o Cunha Rego”.

Juntou logo um palavrão ao nome do antigo chefe da seção Internacional que regressara um ano antes, após a Revolução dos Cravos, a Portugal. Ocupava então em Lisboa o cargo de secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro socialista Mário Soares de quem era amigo e correligionário. Não sei o que levou Claudio a execrar Cunha Rego. Talvez a aliança à direita dos socialistas portugueses com o centro liberal que acabara de derrotar a coligação de esquerda protagonizada pelo Partido Comunista de Álvaro Cunhal. Ou ainda a obstinação que Cunha Rego teve em adular o patrão. Passava inclusive os fins de semana na mesma praia em que Frias tinha casa no Litoral Norte de São Paulo.

Claudio se dizia avesso a muita proximidade com os patrões. Ao explicar esse relacionamento, alegava que só não podia brigar com três famílias para garantir seu emprego. Referia-se aos donos dos três grandes grupos de mídia de São Paulo. Porém, falava dessa gente com irreverências. Respeitava poucas pessoas. Entre elas, o intelectual Lívio Xavier e o jornalista português Miguel Urbano Rodrigues, amizades dos tempos de Estadão. Um tinha passado trotskista e o outro militava no PC de Álvaro Cunhal. Claudio misturava partidos antagônicos e facções da esquerda nas suas relações pessoais.

Certa vez, Miguel Urbano assim me definiu o relacionamento: “Só dá para ser amigo do Claudio irracionalmente e eu sou amigo do Claudio”.

Voltei à Folha de São Paulo como redator das chamadas de primeira página. O regime militar estava na fase da denominada abertura lenta, gradual e segura dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Em consequência, um ano antes, o Estadão deixara de publicar poemas de Camões no lugar das notícias censuradas, porque os censores pararam de aparecer na redação para decidir o que podia ou não ser publicado.  Os órgãos de repressão, no entanto, continuavam espionando, prendendo sem ordem judicial, torturando e matando. A censura não estava revogada. Sobrou assim para os donos de jornal e suas chefias de confiança nas redações a decisão de divulgar, destacar ou não as notícias e comentários que pudessem contrariar o governo.

No grupo empresarial de Frias e Caldeira, os sócios optaram pela duplicidade. Apostaram na oportunidade de ganhar novos leitores e mercado com a política de distensão de Geisel. Não abandonaram, porém, a promiscuidade com o regime militar e seus agentes policiais. Claudio voltou a ter protagonismo no novo projeto idealizado por Frias apenas para a Folha de São Paulo.   Em síntese, o plano consistia em voltar a publicar editoriais, conseguir respeitabilidade contratando jornalistas renomados e abrindo espaço para uma diversidade de opiniões, sem dispensar mediocridades do passado. Era um convívio de pessoas e de ideias, algumas inconciliáveis. No resto do grupo, pouco mudou. O Dics e a Folha da Tarde continuavam sob orientação e controle dos órgãos da repressão. Paulo Nunes não estava mais lá. Passara a trabalhar na TV Cultura, credenciado junto ao II Exército.  Foi quem acompanhou Vladimir Herzog até o DOI-Codi, quando o diretor de jornalismo da emissora se apresentou voluntariamente para depor e foi assassinado.

O projeto de Frias já existia há mais de um ano quando cheguei. Fui trabalhar num jornal que tinha agrupado veteranos conceituados como Newton Rodrigues, Alberto Dines, Mino Carta, Samuel Wainer, Osvaldo Peralva e Luiz Alberto Bahia. A página 3 (Tendências/Debates) reunia juristas, figuras do mundo acadêmico e políticos, num sarrabulho de artigos de opinião. Misturava Fernando Henrique Cardoso, Almino Afonso, Franco Montoro, Claudio Lembo, Dalmo Dallari, da Comissão Justiça e Paz da Igreja, com o líder da TFP Plínio Correa de Oliveira, o coronel Jarbas Passarinho e Jorge Boaventura (o preferido de Erasmo Dias).

Claudio insistiu também em reforçar a editoria de Política e de noticiário nacional com reportagens próprias que não dependessem apenas do Dics. A contratação de novos profissionais para a tarefa superava, porém, o limite do orçamento de redação a ele concedido. Foi buscar os recursos necessários renovando e enxugando a editoria de Esportes onde sobravam comentaristas de futebol. Colocou o jovem e dinâmico José Trajano para tocar essa área.

Em abril de 1977, passei a editar a Política, substituindo Getúlio Bitencourt que se tornou repórter especial. Esse jornalista tinha um talento raro. Getúlio era capaz de fazer longas entrevistas sem anotar ou gravar. Reproduzia de memória exatamente tudo o que ouvira. Não esquecia nenhuma palavra. Alexandre Gambirasio, que também editara a seção, ocupava então a secretaria de redação.

O novo projeto editorial da Folha mostrava resultados. A tiragem do jornal crescia com o aumento da venda em bancas e do número de assinantes. Havia espaço junto a um público de centro esquerda não atendido pelo reacionarismo do Estadão. Apesar da repressão, a contestação ao regime militar ganhava impulso. A inconformidade começara nas eleições legislativas de novembro de 1974, quando a oposição consentida do MDB fez maioria absoluta no Senado e quase chegou a ser majoritária na Câmara dos Deputados.

Outro polo de luta democrática aglutinava-se em torno da Igreja Católica, na sua opção preferencial pelos pobres e na defesa dos direitos humanos. Denunciava a tortura, mortes e condenação de presos políticos na Justiça Militar. Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho tinham sido assassinados pouco mais de um ano antes e os DOI-Codi continuavam ativos.

A cobertura de política na Folha abriu espaço diário para direitos humanos. Não ignorávamos as notícias provenientes do Dics, mas pautávamos nossos repórteres para julgamentos em auditorias militares, denúncias de tortura, discursos de senadores e deputados da oposição. O noticiário proveniente da sucursal de Brasília era cauteloso nos assuntos sensíveis aos militares. As melhores informações da capital vinham para a direção do jornal na forma de relatório reservado e recados passados por alguma autoridade do regime. Nada disso era publicado.

Ao contrário de Caldeira, Frias ambicionava ter relevância no setor de mídia. Como a das famílias de herdeiros dos grandes jornais. Apreciava a proximidade com figuras de importância da política e do mundo acadêmico. Mantinha junto à diretoria uma cozinha e uma sala de refeições, onde promovia almoços para recebê-las. Agregava aos encontros jornalistas da empresa relacionados aos assuntos ou às tendências políticas do convidado. Estive em almoços oferecidos a políticos da oposição como os então senadores Franco Montoro e Paulo Brossard.

A recepção mais marcante de que participei foi o almoço oferecido ao general Dilermando Gomes Monteiro. Serve de exemplo do projeto de pluralismo de ocasião da Folha. Dilermando assumira no início de 1976 o comando do II Exército em substituição ao general Ednardo D’Ávila Mello demitido sumariamente por Geisel após a morte de Manoel Fiel Filho, preso e torturado no DOI-Codi. Pouco antes, Vladimir Herzog fora ali assassinado. O novo comandante procurava, um ano depois, aproximar-se da imprensa e outros setores da sociedade paulista.

Na sala dos almoços de Frias, os convidados daquele dia foram divididos em duas mesas. Uma para o general Dilermando, Otávio Frias e o chefe de redação da Folha Claudio Abramo juntamente com Antônio Aggio, representando a Folha da Tarde. A outra mesa, em que eu estava, agrupava Otavinho, um sorridente oficial de relações públicas do II Exército, Alexandre Gambirasio e José Tavares de Miranda, o colunista social da Folha que se auto intitulava “corneteiro José” e bajulava os militares na sua coluna da Ilustrada.

A comida foi precedida das saudações formais de boas-vindas e agradecimentos de Frias e do general. Servido o almoço, a conversa correu solta. Não lembro se o simpático oficial à nossa mesa era capitão ou major. Recordo que se empenhava em ressaltar que Dilermando chegara a São Paulo com a missão de promover a distensão e melhorar a imagem do Exército. A certa altura não resisti e perguntei por que não dissolvia então o DOI-Codi, gesto que contribuiria, em minha opinião, para a melhoria da imagem.

A reação não partiu do oficial à minha frente, mas de Tavares de Miranda. De olho fixado em mim, pôs-se proclamar seguidamente em voz alta, para ser ouvido em toda a sala: “eu sou verde-oliva, eu sou verde-oliva”, recorrendo à cor da farda do Exército para manifestar sua admiração pelo regime militar.

Admito que fiquei incomodado e sem reagir. Quem resolveu a situação foi Otavinho, sentado a meu lado. Fez um gesto de menos com a mão acompanhado de um olhar severo para Tavares que imediatamente se calou. Obviamente, a conversa mudou de assunto.

O atrevimento não era só meu na editoria política. Se estendia a quase toda a redação. Em fins de junho, a ousadia chegou à galhofa envolvendo a figura do ministro da Justiça Armando Falcão, notabilizado pelo “nada a declarar” sempre que questionado. O deboche foi numa reportagem publicada no Folhetim, suplemento semanal da Folha, editado por Tarso de Castro, um dos fundadores do Pasquim.

Otávio Folha

Folha de S. Paulo.

A reportagem narrava um encontro de amigos, regado a uísque e fumaça de cigarros, na casa de Sérgio Buarque de Holanda, no Pacaembu. Estavam lá, entre outros intelectuais e jornalistas, Paulo Duarte, Moacir Amâncio, Sérgio Gomes e Tarso de Castro. A conversa, reproduzida no Folhetim, era apimentada com críticas e ironias centradas na ditadura e seus representantes. Paulo Duarte fez troça do ministro da Justiça:

“Você olha a cara dele, do Falcão, aquela cara cavalar. É uma cara cavalar a do Falcão, né? Mas não é o único cavalar que existe. Há cavalares aí por toda parte, né? “

No Ministério da Justiça, a gozação pegou mal. Não havia mais respeito pela carranca das autoridades. Houve lá até quem quis enquadrar a zombaria na Lei de Segurança Nacional. O caso acabou arquivado um mês depois. Mas a tolerância com a pluralidade que incluía a manutenção de agentes da polícia junto aos que denunciavam a tortura estava se esgotando.

A abertura de espaço na Folha para as correntes da sociedade opostas à ditadura irritava alguns frequentadores dos almoços de Frias para os quais nós não éramos convidados. Queixavam-se, porque perderam o destaque que tinham antes garantido nas páginas do jornal. Alguns, apenas com palavras, como o ex-governador de São Paulo Abreu Sodré ou o ainda futuro governador Paulo Maluf, ambos bem relacionados com o proprietário do jornal. Outros, como o coronel Erasmo Dias, davam murros na mesa.

No início de agosto de 1977, o secretário de Segurança, através de seus agentes, armou uma cilada para provar que o noticiário distribuído pelo Dics para todos os jornais do grupo era boicotado na editoria de Política. Fui convocado por Claudio para esclarecer por que a Folha não publicara uma informação considerada relevante por Erasmo que saíra destacada nos demais jornais.  Ele se queixara com Frias. Expliquei que a acusação era forjada. O Dics sonegara a nota deliberadamente para a Folha. A história não passaria despercebida por mim.  Eu lia todo o material que chegava à editoria.

Não sei se a explicação foi convincente. Decidi, em consequência, a partir desse episódio, designar um repórter para acompanhar exclusivamente o coronel tanto na Secretaria de Segurança quanto em suas andanças. Rodolfo Gamberini, destacado para a tarefa, não descolou de Erasmo nos dias seguintes.  A companhia persistente do jovem jornalista, pelo visto, irritou o militar destemperado. Culminou com a disparatada palestra para o grupelho de senhoras da União Cívica Feminina e a decisão de Frias de publicar a preleção em que fora acusado de ser o líder da oposição no Brasil juntamente com o cardeal Arns.

Por coincidência naquele mesmo dia, Harry Shibata, diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, autorizado por seu chefe Erasmo Dias, deu entrevista ao repórter Ricardo Carvalho. Jornalista em início de carreira, Ricardão (como era conhecido) destacava-se por cobrir a área dos direitos humanos. O médico legista estava envolvido nas torturas e mortes no DOI-Codi.

Na entrevista, Shibata admitiu que assinou o atestado de óbito de Vladimir Herzog sem ver o corpo. Considerava normal essa conduta e se isentava de qualquer responsabilidade, como chefe do Instituto, no laudo que também dava como suicídio a morte de Manoel Fiel Filho. Negou ainda qualquer indício de tortura no exame que fizera em fevereiro de 1975 no ex-deputado Marco Antônio Tavares Coelho, preso no DOI-Codi. Um laudo posterior, feito por um capitão-médico do Exército, indicava lesões no corpo do ex-deputado que movia então uma ação contra Shibata no Conselho Regional de Medicina.

Entre outras barbaridades, Shibata encerrou com cinismo a entrevista ao tentar explicar a razão de sua condecoração pelo Exército com a Medalha do Pacificador:

“Deve ter sido porque dei mais de 50 sacos de amostra-grátis para a enfermaria do DOI-Codi e porque sempre que solicitado ia atender os presos medicando-os; nunca soube quem eram os presos, porque não perguntava os nomes”.

Os textos de Gamberini e Ricardão saíram um ao lado do outro no alto da página 6 da Folha. Óbvio que haveria consequências. Se na noite da edição dessas reportagens Frias nos levou para jantar no Rodeio, na tarde do dia seguinte veio a contrapartida: fomos informados que dali em diante todos os textos mais sensíveis do jornal teriam que passar antes pelo crivo da direção. Tudo seria obrigatoriamente lido e aprovado pelas chefias da confiança direta de Frias. Claudio, com a cabeça a prêmio, e Gambirasio ficaram encarregados dessa ingrata tarefa.

O controle era rigoroso, mas só abarcou os textos que pudessem causar problemas. O inesperado não entrou na conta das precauções.  A vigilância e a cautela deram certo, durante duas semanas, até o 31 de agosto. Nesta data, a Folha destacou, com fotos na capa, a morte na noite anterior do sargento do Exército Sílvio Delmar Hollenbach. O título era “Um drama no zoo de Brasília”. O sargento saltara três dias antes num fosso do zoológico repleto de ariranhas, onde um menino tinha caído. Salvou o garoto, mas levou mais de cem mordidas dos animais. Foi hospitalizado, porém não sobreviveu a uma infecção generalizada.

Numa situação de normalidade, a história do fim trágico e da coragem do sargento Hollenbach teria uma ampla cobertura e até chamada de primeira página como na edição daquele dia. Dificilmente, porém, seria também um tema de editorial. Mas os tempos não eram normais. Quando cheguei à redação, depois do almoço, Claudio me pediu que redigisse um editorial sobre o caso.

Jamais tinha escrito editoriais. Considerava entediantes as opiniões previsíveis de donos da mídia expressas em longos parágrafos de uma só frase adequados às circunstâncias ou aos próprios interesses. Fiz o que pude, mas meu texto não atendeu às expectativas da direção. Nada foi aproveitado. O principal editorial publicado teve outro redator e saiu com o título “O Humilde Grande Exemplo”. A intenção era clara: atenuar a tensão com a linha dura militar.

A preocupação foi com o editorial e não houve atenção para a crônica de Lourenço Diaféria na Ilustrada. Não havia motivos. O cronista nunca fora um troublemaker. O encarregado de fiscalizar naquele dia os textos problemáticos pode até ter atentado para o título “Herói. Morto. Nós”. Porém, se leu a crônica, não chegou às últimas palavras do nono parágrafo: “prefiro esse sargento ao Duque de Caxias”.

Dalí em diante, começava a encrenca. Diaféria contrapôs de forma figurada o sargento morto à estátua equestre em bronze do patrono do Exército na Praça Princesa Isabel, a dois quarteirões do prédio da Folha. O monumento concebido por Victor Brecheret, na imagem do cronista, “oxidou-se no coração do povo”. E o texto seguia dizendo que “o povo está cansado de espadas e de cavalos”. Mais ainda, “o povo urina nos heróis de pedestal”.

Levou dez dias para o ministro do Exército, general Sílvio Frota, pedir a Armando Falcão que enquadrasse Diaféria na Lei de Segurança Nacional e outros cinco dias para o jornalista ser preso pela Polícia Federal. O inquérito correria na Auditoria da Justiça Militar, a mesma que julgava os que eram chamados de terroristas. Na edição do dia 16 de setembro, uma sexta-feira, o espaço da Ilustrada reservado à crônica de Diaféria saiu em branco. A notícia de sua prisão na véspera teve chamada de primeira página.

As manifestações em defesa do jornalista já vinham movimentando o noticiário. Começaram assim que o general Frota alegou insulto às Forças Armadas e mandou enquadrá-lo na LSN. A arbitrariedade mobilizara a OAB, o cardeal Arns, Sindicato dos Jornalistas, ABI e outras entidades, além de lideranças políticas.  Conhecidos advogados de presos políticos ofereceram seus serviços. Para nossa surpresa, Diaféria escolheu um defensor inesperado. Optou pelo criminalista Leonardo Frankenthal que ganhara notoriedade como advogado do delegado Sérgio Fleury no caso do Esquadrão da Morte. Supostamente, um profissional de renome e com bom trânsito entre autoridades da repressão.

Presumo que Diaféria ou sua família quisessem evitar qualquer identificação com contestadores do regime militar. O que jamais tinha sido o caso. Suas crônicas versavam sobre amenidades, com manifesta preferência pelo Corinthians, seu time de coração. Era o que se chama de um bom sujeito, um veterano da Folha, simpático e de papo agradável. Um católico praticante que se comoveu com a história do sargento. Seu deslize foi a ingenuidade.

O fim de semana que se seguiu à prisão de Diaféria e à reação do jornal, mantendo o espaço da coluna em branco, foi intranquilo. Uma manifestação convocada pela Igreja no bairro da Penha foi dissolvida pela polícia do coronel Erasmo a cassetadas. O ato, que se seguira à missa daquele domingo, era de “solidariedade aos oprimidos”. Maria Helena Gregori, esposa de José Gregori, ambos da Comissão Justiça e Paz, estava entre os que foram detidos.

Na segunda-feira, a corda estourou do lado mais fraco. Claudio foi afastado do cargo. Frias comunicou a decisão a seu editor chefe à tarde, depois de retornar de viagem a Brasília. A Folha estava sujeita a ter a circulação suspensa com base na Lei de Segurança Nacional, segundo seu proprietário. A acusação que ele ouvira na capital federal era a mesma dos murros na mesa do coronel Erasmo: Claudio estaria se mostrando incapaz de controlar a redação.

O primeiro convidado para substituí-lo e para também ocupar o lugar do próprio Frias como diretor responsável pelo jornal foi Gambirasio que logo aceitou. A solução se mostrou inviável, porque o escolhido era cidadão italiano. Tinha que ser brasileiro, pela lei. Foi aí que se optou pelo nome de Boris Casoy. Era então o editor do Painel, uma coluna de pequenas notas, em sua maioria com informações sem fonte de origem. De preferência, bisbilhotices plantadas por políticos da Arena e também por autoridades militares.

Com origem profissional no rádio e na assessoria de imprensa em diferentes níveis de governos do regime militar, Boris já ocupara a direção de redação por breve período antes de Claudio. Não tinha durado no cargo, talvez pela falta de afinidade com o jornalismo escrito. Por suas boas relações até com o general Figueiredo, chefe do SNI, era um nome da confiança das autoridades de Brasília. Para ajudá-lo no controle dos jornalistas e no que escreviam, escolheu Odon Pereira para secretário de redação. Na noite daquela segunda-feira, quando Frias convocou a reunião de todos os editores e chefes de sucursais da Folha para comunicar sua decisão, José Trajano e eu pedimos demissão dos cargos.

Diaféria foi liberado pela Justiça Militar algumas horas depois da nomeação de Boris. No dia seguinte, terça feira, o jornalista saiu da prisão na Polícia Federal para responder ao processo em liberdade. Era coincidência demais para ser coincidência. Pelo visto, a contratação de Frankenthal pouco ajudou na rápida libertação. A promoção de Boris pesou mais.

Otavio Frias Filho.

Otavinho veio conversar comigo nessa mesma terça-feira, para solicitar que reconsiderasse a decisão da véspera. Repetiu o que já dissera o pai. Nada mudaria na orientação do jornal. Expliquei que não conseguiria conciliar meu trabalho como editor de política com as opiniões rasas de Boris. Pedi para voltar à função menos comprometedora de redator das chamadas da primeira página.

No começo, pouco mudou na cobertura do jornal. Na quinta-feira da mesma semana, Erasmo comandou pessoalmente a invasão da PUC. Policiais militares e civis atacaram os estudantes com cassetetes e bombas de gás. Cerca de 900 jovens foram detidos. A edição naquele dia foi coordenada por Perseu Abramo, editor de Educação, jornalista veterano e sobrinho de Claudio. Nada deixou de ser registrado ou atenuado. Não houve mais queixas a Frias ou ameaças de autoridades. O responsável era o insuspeito Boris.

O trabalho, porém, como redator da primeira página se mostrou inviável com a dupla Boris/Odon no comando. Fui demitido em 1978. Outros também foram dispensados, como Alberto Dines, demitido por Odon pelo telefone. As mudanças culminaram com a demissão de dezenas de jornalistas da empresa na derrotada greve da categoria em 1979.

Minha breve passagem pela editoria de Política aparece no depoimento redigido por Ricardo Carvalho para o cinquentenário da Folha. Foi publicado no livro História da Folha de São Paulo (1921 – 1981) editado pela IMPRES pertencente ao grupo. É de autoria dos acadêmicos Carlos Guilherme Mota e Maria Helena Capelato, convidados para a tarefa por Otávio Frias Filho. A decisão de afastar Claudio Abramo está descrita em reportagem do Jornal do Brasil (21/09/1977), transcrita no mesmo livro.

Os autores dividem em três fases a análise do período então de 19 anos da Folha sob controle societário de Frias e Caldeira: reorganização financeira-administrativa e tecnológica, de 1962 a 1967; revolução tecnológica, de 1968 a 1974; definição de um projeto político-cultural, de 1974 a 1981.

No livro, há pouca informação sobre as atividades anteriores dos dois. Frias é apresentado como proveniente do setor financeiro e Caldeira, da construção civil. Ambos não depõem. Muito menos Claudio Abramo e Otavinho, o proponente do trabalho aos acadêmicos. Seriam as quatro personagens dessa história que mais teriam o que contar.

Para ajudar a descrever a trajetória da Folha de 1962 a 1981, os autores reproduziram inúmeros editoriais do período. Omitem seletivamente um editorial marcante publicado na primeira página da edição de 22 de setembro de 1971 assinado em negrito por Octávio Frias de Oliveira. Três camionetes da empresa haviam sido incendiadas na véspera por militantes da ALN. Com o título em caixa alta “BANDITISMO”, o editorial dizia logo na primeira frase: “A sanha assassina do terrorismo voltou-se contra nós”.

Frias, nesse editorial, considerava o governo do general Médici “sério, responsável e com indiscutível apoio popular”. O texto prosseguia com rasgados elogios à ditadura. Já o livro sustenta que no período do “milagre econômico” e do “terror policial” o jornal se manteve em low profile. Aborda a queima das camionetes num simples paragrafo em meio à banalidade da análise política dos autores, segundo os quais, apesar da “postura liberal” da Folha desagradar o governo, ela foi combatida também pela extrema esquerda. Nem no editorial e muito menos no livro de quase 450 páginas existe qualquer referência ao uso das camionetas da empresa nas operações da Oban. A prisão e tortura de inúmeros jornalistas do grupo não é mencionada.

Também a presença de policiais trabalhando em funções jornalísticas de chefia nos jornais da dupla empresarial Frias e Caldeira é ignorada. Sobre o funcionamento da censura, há no livro a seguinte explicação bizarra sobre as relações dos policiais do Dics com a direção da empresa que os contratava:

“Uma central de notícias, do Dics, depois Agência Folhas, cuidava da censura. Uma grande parte do noticiário censurado não chegava sequer à redação do jornal; era retirada do Dics, até que a direção ordenasse que a redação poderia ser informada”.

Ao longo de mais de 40 anos desde então a Folha vem reescrevendo sucessivamente sua história. O período de 1968 a 1974 (o “da revolução tecnológica”, na primeira dessas versões históricas) passou por revisões posteriores em diferentes fases da autobiografia. Até agora, porém, a direção do jornal só aceitou que a Folha investigue a própria Folha. Ninguém mais. Foi o que se viu em julho de 2023, quando divulgou sua explicação sobre a colaboração com a ditadura em resposta antecipada às perguntas feitas pela reportagem ainda não publicada da Agência Pública sobre o papel do jornal no regime militar.

A dificuldade de lidar décadas depois com o próprio passado não é exclusiva da Folha. Os demais veículos de comunicação da chamada mídia corporativa sofrem também de lapsos de memórias constrangedoras. E não é só no Brasil. Há vários exemplos mundo afora. Na França, encarar o passado da imprensa continua difícil até hoje, 81 anos após o fim da ocupação nazista de 1940 a 1944. Obviamente, as situações não são iguais; a dimensão histórica é incomparável e as tragédias brasileira e francesa muito diferentes.

A lembrança dos colaboracionistas franceses, incluindo intelectuais e artistas, além dos jornalistas e jornais, durante o governo do marechal Pétain me ocorre após as pesquisas que fiz para o livro em que relato a fuga da Europa dos meus pais e avós durante a Segunda Guerra Mundial. Testemunharam na França, entre outras consequências da invasão alemã, o que aconteceu com a imprensa. Jornais foram fechados nas principais cidades, alguns passaram a ser impressos e distribuídos na clandestinidade. Uma grande parcela do jornalismo, porém, identificou-se com o governo colaboracionista de Vichy e teve papel de coadjuvante nas atrocidades do nazismo. Os principais colaboracionistas acabaram condenados após a derrota do nazismo. Aqui prevaleceu o esquecimento. Porém, tanto lá quanto cá, não há apenas histórias de heróis e heroísmos na resistência ao regime de opressão.

RUBENS GLASBERG ” BLOG ICL NOTÍCIAS” ( BRASIL)

*Rubens Glasberg é jornalista e autor do livro Os indesejados: uma história de refugiados no tempo do nazismo

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