A ECONOMIA DE FRANCISCO

Nossos olhares perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo.

O Editorial das “Notícias do Vaticano” relembra: na noite de 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio apareceu pela primeira vez na varanda central da Basílica de São Pedro vestido de branco. A sua saudação inicial já continha alguns traços salientes do pontificado: a oração por «uma grande fraternidade» no mundo dilacerado pela injustiça, violência e guerras.

Meses após a consagração papal, Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco, um texto cuidadosamente construído, aborda as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.

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Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.

Depois da encarnação, a escatologia judaico-cristã sofre uma transmutação: o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.

O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo grego-romano.

Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angustias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.

Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado nos exemplos de Francisco.

João XXIII escreveu na Mater et Magistra: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.

Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado” que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo.

Na Encíclica Fratelli Tutti,  Franscisco aborda as vicissitudes da vida moderna:

“A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.

Na Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “… que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem formas internas de solidariedade e confiança falhou”.

Já em 2015, durante outra audiência no Vaticano, o Papa disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. Aprisionado nas engrenagens impessoais da economia sem alma, o Homem sem Escolhas entrega seu destino ao diabo e seus estercos.

Na edição de 17/5/ 2018, o Osservatore Romano registra a divulgação do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé. O texto de 16 páginas contém “considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.

O documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson. Já na introdução o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros – os estercos do Diabo – e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.

Em carta aos jovens economistas do mundo, Papa Francisco sugeriu que se reunissem na cidade de Assis, Itália, entre 26 e 28 de março de 2020 para repensar uma nova doutrina econômica para o mundo. Uma doutrina que vá além das “diferenças de credo e nacionalidade”, inspirada “na fraternidade, sobretudo para os pobres e excluídos”.

LUIZ GONZAGA BELLUZZO ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).

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